Renda Fixa

Por Isabel Filgueiras, Valor Investe — São Paulo

No meio de uma pandemia que adoeceu o mundo e fez com que 7 em cada 10 brasileiros perdessem alguma parte da renda mensal, o Brasil bateu recorde atrás de recorde de depósitos na caderneta de poupança. Em vez dos saques em massa, houve captações volumosas.

Os aportes mensais de março, abril e maio foram, de longe, os maiores da série histórica do Banco Central, que começou em 1995.

Só em maio, a poupança arrecadou R$ 37,20 bilhões mais que o dobro de tudo que foi depositado no ano inteiro de 2019 (R$ 13,32 bilhões).

Isso tudo num contexto em que tanto se fala em educação financeira e no quanto a poupança se mostra uma alternativa de baixíssima rentabilidade. No atual patamar da taxa básica (Selic) a 2,25% ao ano, a poupança rende só 1,58% ao ano.

Sem falar que, esse tipo de aplicação, de alta liquidez (muita facilidade para tirar o dinheiro), é o mais usado para reservas de emergências, que costumam ser usadas em momentos de imprevisibilidade e escassez exatamente como o que vivemos agora.

Nem os consecutivos cortes da taxa básica de juros (Selic), que fizeram o rendimento da poupança se tornar ainda pior, foram suficientes para ameaçar o estoque da caderneta.

O romance entre o brasileiro e poupança é antigo. Ela pode até ser mal falada, mas ainda é a forma mais comum de guardar dinheiro que há por aqui. E num momento de pânico, perdas e incertezas, o brasileiro voltou para a velha conhecida.

"As pessoas buscam o mais seguro historicamente. Isso explica também porque ouro é tão buscado em tempos de crise e talvez explique porque o brasileiro sempre foi apegado à poupança. Então, ela acaba sendo esse porto seguro num momento de instabilidade onde já houve perdas em outras aplicações mais sofisticadas", explica Claudia Yoshinaga, professora de finanças comportamentais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Mas o fenômeno do dinheiro guardado em tempos de crise e taxa básica de juros é resultado de uma soma de fatores, como:

  • Uma pandemia que exige isolamento social e acaba reduzindo alguns tipos de gastos;
  • A injeção bilionária de dinheiro em contas de pessoas físicas em forma de auxílios do governo;
  • O receio de gastar diante de um cenário incerto;
  • A aversão a perdas depois do baque nos fundos e na renda variável;
  • Busca por liquidez imediata;
  • A falta de educação financeira e a facilidade de aplicar em poupança.

Era até natural que, na leva de novatos da bolsa, o susto pudesse tornar a poupança mais atrativa, como modo de compensar a carteira que via perdas em todas as aplicações, até nas conservadoras.

"Não duvido que tenha dinheiro de investidores importantes na poupança neste período de nervosismo. No passado, ela era o patinho feio, mesmo pagando o rendimento líquido (livre de imposto). Agora, não é qualquer fundo que vai bater a poupança", pontua o economista e administrador de investimentos Fabio Colombo.

“Em termos de finanças comportamentais, a razão mais direta para a alta captação é a aversão à perda. Depois do mês de março em que as aplicações de renda variável caíram e com toda a chacoalhada e receio de que economia pudesse ter recuperação lenta, a poupança sinaliza um investimento mais familiar e seguro", completa Claudia.

De março pra cá, os aportes em poupança só cresceram, mesmo com a bolsa em recuperação.

Dinheiro público

As altas mais acentuadas de depósitos foram em abril e maio, quando a poupança alcançou novos recordes de captação de R$ 30 bilhões e R$ 37 bilhões respectivamente. O volume de arrecadação mensal cresceu 150% entre março e abril.

O salto histórico ocorreu bem em meio aos depósitos do auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais, autônomos e microempreendedores individuais impactos economicamente pela pandemia.

De acordo com o Tesouro Nacional, até o momento, foram depositados R$ 95,57 bilhões nas contas dos brasileiros elegíveis ao auxílio emergencial. O benefício começou a ser pago em abril.

Em maio, no entanto, uma mudança de regras na forma de distribuir esse dinheiro também pode ter contribuído para o massivo aumento de estoque de poupança.

Na hora de pagar a segunda parcela do auxílio, a Caixa estipulou que todos os beneficiários receberiam o dinheiro diretamente numa conta poupança social da própria Caixa, aberta especialmente para o programa.

Assim, o montante reservado para as parcelas daquele mês foram automaticamente para a poupança.

Houve ainda outra injeção bilionária de dinheiro público na poupança dos brasileiros. O Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEM), que veio para complementar o salário de quem teve suspensão de contrato ou redução de carga horária, pagou R$ 11,72 bilhões, apontam os dados mais recentes do Tesouro Nacional.

Todo esse dinheiro, cujas parcelas variam entre R$ 261,25 e R$ 1.813,03 por trabalhador, também foi enviado diretamente para as contas poupança. Ele começou a ser pago (adivinha?) em maio e não podia, por regra, ser depositado em contas salário.

Fundos de renda fixa

Os saques dos fundos de renda fixa também podem ser uma das fontes do dinheiro que foi parar na poupança.

De acordo com o último levantamento da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), os fundos de renda fixa já acumulam perdas de R$ 120 bilhões neste ano.

Esse dinheiro pode ter ido para outros fundos multimercado, para a bolsa ou sido usado como reserva de emergência, mas parte dele pode ter ido parar na poupança.

Os sucessivos cortes da Selic foram um golpe para os fundos de renda fixa que remuneram primariamente por meio de juros. Agora, muitos estão com rentabilidade abaixo da inflação, isso quando não trazem prejuízos para os cotistas.

Alguns fundos de renda fixa acabaram perdendo o apelo na hora de diversificar o portfólio e a poupança voltou a ser uma opção para os investimentos de baixo risco que se recomenda que todos tenham na carteira.

Com a queda da taxa Selic para os padrões atuais, isso fez com que os fundos DI e renda fixa ficassem na desvantagem em função da taxa de administração que cobram e dos descontos de impostos. Principalmente para quem tem valores pequenos, o rendimento desses produtos ficou pequeno”, afirma o administrador de investimentos Fabio Colombo.

Ele lembra ainda que muitos fundos DI não tinham só títulos públicos, mas uma parte em crédito privado. Esses papéis de empresas (as debêntures) acabaram se desvalorizando diante da histeria causada pelas incertezas da pandemia da covid-19.

Por consequência, essa classe de fundos acabou tendo prejuízos. O rendimento ficou negativo. “Com a queda da taxa Selic, a poupança começou a ficar mais competitiva em relação aos fundos DI e de renda fixa. Quando o investidor vê, nos extratos, que o investimento está indo mal, pensa em voltar a poupança”, afirma o economista.

Zona de conforto

Há desvantagens na poupança, como a rentabilidade mensal, que só é possível quando a aplicação faz "aniversário". Tem ainda o rendimento baixo, que no momento perde para a inflação, e se limita a 70% dos já mirrados 2,25% ao ano da Selic.

Mas há uma coisa que não se pode negar: ela é simples. Não precisa de conta corrente, transferências para lá e para cá, fazer conta de desconto de imposto de renda, IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) nem taxa de administração. É mais fácil e mais conhecido. Dá menos trabalho e essa comodidade tem um custo, claro.

"Hoje tem outros investimentos mais rentáveis, mas tem imposto de renda, IOF se sacar com menos de 30 dias. As pessoas sabem que a poupança rende pouco, mas percebem redução mês a mês de rentabilidade em outras aplicações como Tesouro Selic e que dão mais trabalho de movimentar", afirma Yolanda Fordelone, a economista do aplicativo de gestão de finanças Guiabolso.

Para a professora de finanças comportamentais da FGV, Claudia, por mais que as plataformas estejam cada vez mais simples e acessíveis, elas ainda têm características naturalmente excludentes para algumas pessoas.

"Existem alternativas melhores, como bancos digitais que oferecem 100% do CDI com liquidez diária ou Tesouro Direto. Mas não sei dizer se isso alcança todos os brasileiros. Até um banco digital exige um smartphone, ter conhecimento mínimo para usar a tecnologia e internet boa para fazer essa conta", afirma Claudia.

"A grande atratividade da poupança é a simplicidade do investimento e a não necessidade de ter uma conta corrente. Ela permite algum rendimento sem um custo atrelado. Ela é uma alternativa pior por ter rendimento só no aniversário, mas é mais familiar. É um processo mais simples até de abrir a conta", completa.

Ela é uma aplicação para os mais inexperientes, que possuem menos recursos (porque não exige aporte mínimo). Apesar de ser considerada ruim em rentabilidade, ela não deixa de ser uma porta de entrada para uma vida financeira mais saudável, como bem pontuou a especialista em finanças comportamentais e colunista do Valor Investe, Vera Rita de Mello.

Para Vera, o progresso nos investimentos depende do amadurecimento e onde você se sente seguro de deixar o seu dinheiro. No fim das contas, é melhor colocá-lo num produto que conhece do que arriscar em coisas que mal sabe do que se trata.

Redução de gastos

Um levantamento do Guiabolso feito com 23 mil usuários do aplicativo mostra que as aplicações em poupança cresceram entre eles desde o começo do ano e se aceleraram na pandemia.

Em janeiro, 39% tinham algum dinheiro nesse produto. Até maio, o percentual de gente que aplica na caderneta foi para 44%, algo incomum para essa época do ano.

"É um momento em que parte das pessoas estão economizando forçadamente. Vemos aqui no Guiabolso economia com compras, gastos de cuidados pessoais, estética (depilação, cabeleireiro)", afirma.

A mudança de hábitos de consumo pode ter sido um dos fatores para economizar mais. De acordo com a pesquisa da empresa, de janeiro a maio, os gastos com aplicativos de transporte (Uber, Cabify, 99) caíram 46%.

Busca por liquidez

Outro motivo é o temor causado pela própria pandemia. Ainda não se sabe exatamente quando o cenário vai melhorar, quais as implicâncias da crise a longo prazo ou quando haverá uma vacina para prevenir da covid-19.

Com um horizonte tão cheio de dúvidas, a liquidez (facilidade de ter acesso ao dinheiro) acaba ganhando mais importância que a rentabilidade.

Ter uma reserva de emergência torna-se prioridade e o aumento de patrimônio fica em segundo plano. Está em jogo a sobrevivência num período turbulento.

"Há um receio quanto à queda de renda e como isso vai afetar o futuro. Por esse medo de ter queda da renda, ou por já ter sofrido perdas, as pessoas estão preocupadas em guardar dinheiro para o curtíssimo prazo. Não daqui seis meses ou um ano. Elas podem precisar na semana que vem", acrescenta Yolanda.

Mesmo quem já tem alguma reserva de emergência, tem tratado de deixá-la mais encorpada. Os que tinham o suficiente para três meses querem esticar ao máximo as economias, temendo tempos ainda mais difíceis a frente.

"As pessoas têm aumentado o valor da reserva porque ninguém sabe a extensão da crise. Há quem fale de recuperação no ano que vem, mas os mais pessimistas falam em três anos. Em momentos de normalidade você faz a reserva pensando em não usá-la. No momento em que estamos, sabemos que a emergência pode ser em curto prazo", afirma.

Por que ninguém tira o dinheiro?

Se o momento é delicado, de desemprego e perda de renda, por que os depósitos estão maiores que os saques?

"O que pode haver é um grau de precaução. Corte de gastos e intenção de guardar dinheiro e pensar em criar uma reserva. Uma das causas pode ser a preocupação das pessoas em ter uma reserva de emergência", afirma a professora Claudia.

Ela rende 0,5% ao mês mais Taxa Referencial (TR), que atualmente está zerada. Isso é bem acima da Selic, de fundos DI, do Tesouro e até de produtos mais arrojados como fundos multimercado.

Depois do preterido FGTS se vingar e virar o jogo e bater o CDI com sua rentabilidade de 3% ao ano mais TR, é a vez da poupança mostrar o seu valor num ambiente de Selic a 2,25% ao ano.

Outro motivo para números tão discrepantes tem a ver com os depósitos de auxílio do governo. Com a impossibilidade de sacar em determinadas datas, na hora de fechar a conta do saldo da poupança, ela pode ter ficado mais inflada por não considerar os saques mais recentes do início de junho.

“Eu me pergunto o quanto desse dinheiro captado não foram depositados pelo próprio governo na distribuição do auxílio emergencial? Precisaríamos ver se foram sacados e quando foram sacados”, diz a economista.

O administrador de investimentos Fabio Colombo argumenta que, se realmente o maior impacto tiver sido devido aos depósitos de auxílios, nos próximos meses o cenário deve se reverter na medida em que os beneficiários realizarem os saques.

Se for esse o caso, o ano de 2020 pode se tornar ainda mais atípico para a poupança, com captações recordes e, posteriormente, volume massivo de saques.

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