Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Escritor israelense aponta fragilidade de minorias diante do avanço do reacionarismo

Em sua última grande obra, Amos Elon registra a história conturbada de judeus na Alemanha

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Concluí recentemente a leitura de “The Pity of It All: a Portrait of Jews in Germany (1743-1933)” (2002), a última grande obra do historiador e jornalista israelense Amos Elon (1926-2009) —autor, entre outras coisas, de uma extensa biografia de Theodor Herzl, além de estudos sobre a fundação do Estado de Israel e de vários ensaios de teor crítico sobre o conflito árabe-israelense.

Nascido em Viena, Elon cataloga no seu último livro os principais acontecimentos que marcaram o percurso dos judeus nos territórios de língua alemã a partir da trajetória dos seus mais ilustres representantes, ao exemplo do filósofo Moses Mendelssohn, do poeta Heinrich Heine e da pensadora política Hannah Arendt.

Segundo Elon, até 1933, os judeus que habitavam esses territórios tinham razões para acreditar haver sido bem-sucedidos em um processo de integração, apesar da sua longa e conturbada história na Alemanha —a alternar períodos de relativa tolerância com outros de violenta perseguição a culminar na catástrofe do século 20. Sobre esse processo de integração, Elon comenta que já no final do século 18 Mendelssohn teria testemunhado avanços até então improváveis na relação entre judeus e alemães.

Da sua chegada em Berlim, em 1743, aos 14 anos de idade, até 1786, no ano da sua morte, Mendelssohn, um dos maiores expoentes do Iluminismo alemão, apoiou esforços de modernização do judaísmo a partir do ensino de disciplinas seculares. Ele também foi testemunha de uma maior repercussão popular da causa pela emancipação política dessa minoria, algo que só veio a se consolidar em 1871.

Ao nos contar sobre a vida de Mendelssohn e de tantos outros judeus inspirados pela sua trajetória, Elon leva-nos a refletir sobre quão frágeis permanecem as conquistas sociais de uma minoria ante à imprevisibilidade da história.

Exemplo disso é o retrocesso que caracteriza a relação entre judeus e alemães durante a primeira metade do século 19, à medida que a atmosfera de tolerância motivada pelo Iluminismo foi gradualmente substituída pelo culto ao passado de inspiração romântica, a resgatar antigos preconceitos religiosos como justificativa para as atitudes persecutórias e as práticas de exclusão social direcionadas contra a população judia.

A bem ilustrar essa reviravolta, o historiador oferece alguns apontamentos sobre o surgimento e o desmonte dos salões literários de Berlim, ambientes de notória tolerância religiosa e cultural, a exemplo dos espaços comandados por Henriette Herz, esposa do médico e filósofo Markus Herz, e Rahel Varnhagen, cujo testemunho da época, colecionado em numerosas correspondências, inspirou Hannah Arendt a escrever a obra “Rahel Varnhagen: a Vida de uma Judia” (1957).

Elon também comenta a vida do poeta Henrich Heine, amigo e frequentador dos salões de Rahel. Nascido em Düsseldorf, em 1797, Heine ainda conseguiu usufruir das liberdades civis garantidas pela presença das tropas francesas de Napoleão na região.

Ainda muito jovem, Heine tornou-se um dos poetas mais prestigiados entre os seus conterrâneos. É dele a famosa canção sobre a Lorelei, figura mitológica a habitar as águas do Reno, e o belíssimo ciclo de poemas de amor musicado pelo compositor Robert Schumann e por nós conhecido como Dichterliebe.

Sobre importância de Heine para a literatura alemã, Friedrich Nietzsche comenta em “Ecce Homo” (1888): “O mais alto conceito de lirismo foi-me dado por Heinrich Heine [...]. Ele possuía aquela ironia divina, sem a qual não consigo imaginar a perfeição [...] e como maneja o alemão! Dir-se-á um dia que Heine e eu fomos de longe os primeiros artistas da língua alemã — a uma distância incalculável de tudo o que com ela fizeram os simples alemães”.

Tamanha é a importância da contribuição de Heine para a cultura alemã que, já no século 20, nem mesmo os nazistas foram capazes de apagar todas as referências ao bardo. Assim, embora muitos dos seus livros houvessem sido queimados durante a infame noite de 10 de maio de 1933, o seu poema sobre a Lorelei estava tão visceralmente ligado à cultura popular que os nazistas passaram a divulgá-lo como sendo uma obra de autoria anônima.

Em 1820, ainda sob o impacto dos pogroms do ano anterior contra a população judia, a resultarem, entre outras coisas, na perda das conquistas sociais alcançadas durante o período napoleônico, Heine teria dito que a sua única pátria era a língua alemã. Segundo ele, o idioma deveria ser para os seus pares: “[A] nossa posse mais sagrada, ... uma pátria até mesmo para aquele a quem ela foi negada por malícia e loucura”.

Anos mais tarde, na década de 1960, algo semelhante seria dito por Hannah Arendt em célebre entrevista ao jornalista Günter Gaus. Questionada sobre a sua vida na Alemanha durante o período que antecedeu o nazismo, ela comentou não sentir falta da Europa pré-Hitler, a ressaltar que, apesar de todo o sofrimento, para ela, restou a língua materna: “Em geral, a língua alemã é a coisa essencial que permaneceu e que, também, deliberadamente eu sempre preservei [...]. Eu pensava comigo mesma: fazer o quê? Não foi a língua alemã que enlouqueceu”.

Amos Elon encerra “The Pity of It All” com um breve relato das últimas horas de Arendt em Berlim, em 1933, antes desta tomar o trem rumo à fronteira com a antiga Tchecoslováquia, a traçar o percurso oposto ao que o jovem Mendelssohn fizera no passado.

Da conclusão do livro, lembrei do filósofo Gershom Scholem, quando este questionou a pertinência do diálogo entre judeus e alemães. Para Scholem, esse diálogo jamais aconteceu (“it takes two to tango,” como diriam os americanos).

Para Elon, no entanto —ainda que frágil, reiteradamente interrompido e, por fim, brutalmente silenciado—, esse diálogo existiu, sim, e, de tempos em tempos, foi capaz de nutrir a esperança de algumas gerações com relação à possibilidade de se poder levar, finalmente, a vida em uma sociedade plural, guiada pelos mais nobres ideais do esclarecimento, com ênfase no exercício da razão, na valorização do conhecimento científico e na autonomia do indivíduo.

Há uma parábola de Franz Kafka na qual ele descreve o predicamento de um personagem meio a um embate entre duas forças, uma a representar o passado e outra, o futuro. Como bem observou Arendt, ao interpretar a situação do personagem, ironicamente, o futuro aparenta ser aquilo que nos impulsiona em direção ao passado e vice-versa.

De minha parte, pergunto-me se não seria, em verdade, o medo que sentimos em relação ao futuro que nos impulsiona em direção ao passado, a incitar, muitas vezes, posicionamentos reacionários.

É nesse sentido que a leitura de Amos Elon talvez possa nos ajudar a compreender a fragilidade das conquistas sociais e das vidas que estão em jogo a partir do momento em que uma sociedade se deixa corromper pelos seus mais primitivos impulsos.

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