Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Leitura nos torna protagonistas do interminável diálogo com a tradição

Exercício de interagir com obras mostra que somos mais do que simples espectadores da cultura

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É sempre muito interessante quando descobrimos certa relação entre as obras de dois ou mais autores que admiramos.

Gosto de quando abro um livro e me deparo com imagens, enredos e ideias que remontam a experiências de leitura anteriores, dando-me a sensação de que não há nada de mais saudável na vida de um leitor do que tentar estabelecer associações entre textos de autores distintos, pois é a partir desse exercício que aprendemos a reconhecer o que há de realmente contrastante entre eles.

Lembro quando comecei a estudar filosofia e me deparei com a "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, livro em que o autor desenvolve o seu pensamento a partir de uma série de referências filosóficas e literárias que nos permitem vislumbrar o alcance do que ele quer dizer.

Assim, por exemplo, embora Hegel faça uso de temas que nos remetem à obra de Goethe, tal como a própria ideia de "Bildung" ou de formação do indivíduo, percebemos, através da sua aplicação desse tema, o quanto ele se aproxima ou procura se distanciar do seu predecessor.

Dois atores contracenam em ensaio da primeira versão integral da obra Fausto, de Goethe, em Hannover, na Alemanha. Bruno Ganz, à esquerda na foto, está sentado, veste roupa preta e gesticula a boca e as mãos. Robert Hunger-Bühler, em pé, à direita e ao lado de Ganz veste espécie de túnica vermelha e se curva sobre ele.
Bruno Ganz, à esquerda, como Fausto, e Robert Hunger-Bühler, como Mefistófeles, durante ensaio da primeira versão integral da obra de Goethe, em 2000, na Alemanha - Divulgação

Do mesmo modo, encontramos semelhante movimento no próprio Goethe em relação aos seus antecedentes intelectuais; exemplo disso é como ele trata de temas retirados de Rousseau ou até mesmo de Spinoza, sobre quem ele escreve em suas memórias:

"A calma de Spinoza, que parecia tudo apaziguar, contrastava com minha afobação habitual, que só resultava em agitação; assim como seu método matemático fazia contraponto com minha sensibilidade e meu tino poético. Mas foi justamente esse seu procedimento regrado no tratamento das coisas – que muitos nem mesmo admitiam como adequado para questões de ordem moral – o que fez de mim seu discípulo mais entusiasmado e seu admirador mais determinado".

O que a citação de Goethe nos ajuda a entender é que a relação entre um autor e as suas influências é muitas vezes prenhe de contradições. Pois é justamente por estar se propondo a criar algo novo, a partir de uma perspectiva diferente sobre o que já foi dito, que um autor –desses bons mesmo, que nos fazem queimar as pestanas– não pode ser reduzido a um simples decalque ou reflexo do seu predecessor.

É a partir do momento em que descobrimos e começamos a procurar entender as relações entre os autores que compõem a nossa biblioteca, que tomamos consciência de que o pensamento nunca é uma atividade solitária.

Trata-se, em verdade, de algo diferente do que costumamos imaginar quando caracterizamos a figura do autor ou do intelectual como sendo alguém que vive encerrado em seu gabinete ou em sua zona de conforto, sem jamais se permitir entrar em contato com outras mentes, como se ele tivesse receio de que tal contato pudesse colocar em risco o valor e a originalidade das suas próprias ideias.

A verdade é que, se refletirmos mais demoradamente sobre essa questão, acabaremos chegando à conclusão de que a atividade intelectual muito se assemelha à promiscuidade do drama amoroso retratado por Heinrich Heine em um dos seus mais célebres versos:

"O rapaz ama uma jovem
Que deseja outro rapaz;
Este de outra se enamora,
Lá se vão ao juiz de paz.
A donzela então decide
Desposar, só por despeito,
O primeiro que ela avista;
O rapaz ficou desfeito.
É uma história tão antiga,
Mas que sempre se renova;
E quem já passou por isso
Pôs seu coração à prova".

Retrato de Heinrich Heine
Retrato de Heinrich Heine (1797-1856) por Moritz Daniel Oppenheim - Wikimedia Commons/Reprodução

Versos que, talvez, sirvam de base para um poema de Carlos Drummond de Andrade e que, provavelmente, acompanham muitos dos leitores da Folha desde a época de escola –"João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém..."– e cujo desfecho complementa a mensagem de Heine, emprestando ainda mais força à ideia de que, embora não passemos de um simples elemento em uma rica teia de relações, o que importa não é exatamente o conjunto dessas relações em si, mas a maneira através da qual nos apropriamos delas para tentar pensar sobre as nossas trajetórias.

O fato de as coisas também funcionarem mais ou menos assim no mundo das ideias talvez seja um reflexo de uma dinâmica característica do pensamento.

Em "A Vida do Espírito" (1977), Hannah Arendt equipara a atividade do pensar ao incessante trabalho de Penélope a tecer a sua infindável teia. Gosto dessa imagem porque, no desfazer e refazer da sua trama, os pontos da tapeçaria de Penélope nunca se repetem, estabelecendo, portanto, novos laços a partir de um mesmo fio.

Nos meus estudos, sempre dei preferência aos autores que se mostram capazes de pensar a partir de um diálogo ou até mesmo de um embate com o longo fio da tradição, ao exemplo de figuras como a própria Arendt, que soube como ninguém expressar tal dinâmica através dos seus escritos, dando-nos a chance de vislumbrar na leitura um estímulo ao pensamento.

Embora Arendt acredite que temos necessidade de certa solidão voluntária para conseguirmos realizar a nossa capacidade de pensar –algo que ela chama de solitude–, ainda assim ela nos chama a atenção para o fato de que sempre pensamos na companhia de um outro, mesmo quando esse outro nada mais é do que um desdobramento do nosso próprio eu no silencioso diálogo que travamos com nós mesmos.

Ainda que a leitura não seja responsável por inaugurar esse diálogo de um indivíduo consigo mesmo, percebo que, além de nos dotar de conhecimento, o seu exercício acaba desempenhando um papel fundamental ao nos revelar que também somos capazes de pensar, principalmente quando o que estamos lendo nos provoca a refletir sobre os pormenores das várias relações de influência que podemos estabelecer entre os mais diversos autores.

A importância da leitura está em nos mostrar que somos muito mais do que simples espectadores da cultura pois, à medida que interagimos com uma obra, nós também passamos a ser protagonistas do interminável diálogo com uma tradição, seja ao nos permitir acrescentar novas perspectivas sobre um mesmo evento ou atenuar a importância de temas que já nos parecem obsoletos ou desnecessários, seja ao resgatarmos personagens esquecidos e marginalizados ou mesmo ao atualizarmos conceitos que nos ajudam a melhor refletir o presente.

O que realmente não podemos fazer, sob pena de renunciarmos à nossa própria criatividade, é tentar fingir que podemos romper com esse fio, como se sem ele nos restasse a mínima esperança de compreendermos o labirinto da vida.

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