• Ana Beatriz Almeida (@ana_bee_a)
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Obra Cauris (2022) (Foto:  )

Obra Cauris (2022), de Gabriella Marinho (@marinhogabriella) (Foto: Cortesia MAC-Niteroí)

De todos os fenômenos da natureza, o mar figura como uma existência complexa e misteriosa. Um regulador climático global, que se conecta com a lua e que é representado como o inconsciente por várias culturas. E se o mar pudesse enfim prover uma narrativa da modernidade? Que histórias ele contaria? Quais seriam suas vozes? O que o mar diria de nós?

Na curadoria de Hu: Minha alegria atravessou o Mar, busquei explorar esta perspectiva a partir da evocação de Hu, o vodoun pré-colonial que rege o mar. É minimamente intrigante que o mar fosse de natureza masculina no período anterior à modernidade, e ainda mais sintomático que posterior a escravidão ele tenha assumido para muitos povos dos dois lados do Atlântico uma identidade feminina. Pois bem, não é a primeira vez que Hu é trazido à tona na contemporaneidade.

Na obra Black is King de Beyoncé ele é mencionado e tem um videoclipe só para ele, a canção "Already". A música representa o momento em que Simba encontra com o conselheiro Rafiki pela primeira vez depois de adulto e eles discutem sobre a identidade do felino que não sabe ainda que é rei, o vídeo inicia-se com vários homens pintados de azul tampando os olhos com a mão.

Cena do videoclipe Already, de Beyoncé (Foto: Reprodução)

Cena do videoclipe Already, de Beyoncé (Foto: Reprodução)

Esta imagem contrasta enormemente com a perspectiva arquitetônica que Niemayer elegeu para o mar no seu projeto do Museu de Arte Contemporânea de Niterói. No projeto do arquiteto, o mar é o componente principal do museu, de modo a tornar-se uma obra permanente, como uma memória intermitente da baía de Guanabara e todo processo histórico de invasão, ocupação e sequestro que fundaram o país. Neste sentido, pensei que fosse como se Niemayer tivesse acidentalmente proposto um eterno debate com Hu, tornando o visitante quase que hipnotizado pelo vodoun – de maneira a ser incapaz de virar as costas para a história totalmente. Nesse sentido é como se o mar fosse também um comunicador, aquele que está de maneira constante contando uma história.

A obra que abre a exposição é Marejo (2021) de Raphael Cruz (@rphl.cruz), uma cortina comum em muitas casas brasileiras e templos de matriz africana, relaciona-se com a casa da avó e as memórias de infância do artista, que após algumas mudanças se perderam totalmente. Na reconstrução desta cortina, o artista desenha com as contas tridentes de Exu, a fim de evocar a anunciação eterna dessas memórias.

Marejo (2021), de Rapahel Cruz (@rphl.cruz)  (Foto: Cortesia MAC-Niteroí)

Marejo (2021), de Rapahel Cruz (@rphl.cruz) (Foto: Cortesia MAC-Niteroí)

Em seguida, a obra CAIS faz com que o MAR atravesse a paisagem e invada o espaço expositivo, a paisagem sonora CAIS foi desenvolvida pelo pesquisador Danilo Pureza, que tem dedicado os últimos dez anos à investigação de manifestações populares e a cultura da celebração. Pureza também é um dos precursores da cultura sound system na Bahia e integra o coletivo Ministereo Público com outros dois grandes expoentes: Mc Regivan e seu irmão Raiz Pureza. Em CAIS, Pureza investiga as chegadas e partidas e as sonoridades da travessia da Baía de Todos-os-Santos entre Salvador e Itaparica. Numa provocação entre Rio e Bahia, desenvolve uma tensão de deslocamento com a Baía de Guanabara.

Em Cauris da Gabriella Marinho, as conchas que já serviram como moeda para povos da África Ocidental são esculpidas em cerâmica, retomando a relação com o material associado ao corpo humano em várias culturas. Tal como nos jogos de búzios onde as conchas abertas significam sim e as fechadas não de acordo com o olhar do consulente. A instalação plana no ar, em constante mudança – como se o próprio destino mudasse. Este mesmo destino é pensado como ancestralidade na obra Corrente de retorno (2020) do artista plástico Mulambo que recentemente ilustrou a última edição do livro Navio Negreiro do poeta Castro Alves, projeto que será apresentado dia 25 no Centro Afrocarioca de Cinema (@centroafrocariocadecinema).

Estas obras que versam sobre o destino, a ancestralidade e sua mutabilidade levam a figura feminilizada de HU, através da obra Restauração de Yemonjá #1, (2022) de May Agontime (@queen.agontime). A artista desenvolve um trabalho incessante de racializar figuras de matriz africana embranquecidas pelo imaginário colonial. Esta prática abre um segundo portal da exposição que são as obras sonoras que se intercalam e versam, primeiro sobre a construção do imaginário católico da gratidão e seu impacto sobre populações com o histórico de escravidão.

Ofo 1 é uma obra de Aretha Sadick que se dedica a desenvolver na prática da verbalização a lógica do encantamento. A segunda obra sonora desta seção e a última da exposição, é da griot e Egbomi Nancy de Souza (@cicideoxala) – figura central no candomblé baiano, e peça fundamental no trabalho de Pierre Verger – ela reproduz um itã sobre o surgimento do mundo de acordo com os povos yorubás.

Cici de Oxalá  (Foto: Tacun Lecy / DIvulgação)

Cici de Oxalá (Foto: Tacun Lecy / DIvulgação)

A instalação que encerra a exposição é de Carla Santana (@carlasssantana), a artista niteroiense que desenvolve há algum tempo práticas corporais, desdobra sua poética para escultura nesta instalação intitulada Aprofundar ou A vida como um lago de águas paradas  (2019-2022). Através de peças que lembram ao mesmo tempo corpos retorcidos e seres abissais, Santana promove uma reflexão sobre a água a relação com o fogo e a destrutibilidade da matéria – de modo que as peças submetidas a alta queima tornam-se resistentes a água.

Obra Aprofundar ou A vida como um lago de águas paradas (2019-2022), de Carla Santana (Foto: Cortesia MAC-Niteroí)

Obra 'Aprofundar ou A vida como um lago de águas paradas' (2019-2022), de Carla Santana (Foto: Cortesia MAC-Niteroí)

De maneira geral, a exposição traz diferentes perspectivas sobre o mar, todas propõem uma relação não-hegemônica com a história e a paisagem. A presença destas éticas dentro da proposta estética do MAC Niterói, visam provocar a percepção do conceito de modernismo num âmago mais profundo, uma vez que os espaços e a simplicidade arquitetônica desta geração visava a reinvenção da ideia de brasilidade. Entretanto, até a atualidade, artistas trans e/ou racializados somam menos de 1% do acervo do Museu. A programação de encerramento de Hu: minha alegria atravessou o Mar, visa também promover a doação das obras da exposição e de demais artistas identitariamente contra-hegemônicos através da Instituto 01.01 Art Platform (@0101artplatform_) e galerias parceiras.   

A exposição vai até o dia 26 de junho, mas as atividades de encerramento iniciam-se dia 17 de junho no MAC Niterói, com uma festa de lançamento, dois painéis e uma exibição da curadoria de videoarte Deep Sea. O primeiro painel é às 17h, acerca da função das instituições na produção de identidade, com o atual diretor da instituição Victor de Wolf e a curadora da exposição, Ana Beatriz Almeida. Além da presença de especialistas no tema como a coordenadora do curso de ciências sociais da UFF, Flavia Rios. Num segundo momento a coordenadora de projetos da secretaria municipal de Relações Internacionais de São Paulo, Adriana Vasconcellos, e a subsecretária de Cultura de Niterói, Walkiria Nitcheroy apontam maneiras práticas de combate ao racismo estrutural juntamente com o pesquisador Julio Alvares Tavares do departamento de Antropologia da UFF.

O evento encerra às 21h como a festa de lançamento do projeto Marujada – uma pesquisa festiva sobre produções negras atlânticas que conta com a pesquisadora sonora Lys Ventura, Pureza, artista integrante da exposição e convidados célebres como a cantora Ciana, Jef Rodriguez  e DJ Castro. Dia 25.06, um dia antes do encerramento da exposição, os inscritos no e-mail contatomacniteroi@gmail.com terão uma experiência expandida da mostra com encontro com os artistas no ateliê de Carla Santana e no Centro Afrocarioca de Cinema.