Da comida mais cara até à perda de moradia, saiba como a emergência climática afeta a vida no dia a dia

Especialistas explicam consequências da crise climática no cotidiano e o que pode ser feito para aumentar a conscientização dos cidadãos sobre o problema

Por Nicole Wey Gasparini, do Um Só Planeta


Planejar as compras para evitar desperdícios é um dos primeiros passos Getty Images

A crise climática já passou para o estado de emergência. Este ano, cidades ao redor do mundo testemunharam de perto os eventos extremos e inesperados causados pelo aumento da temperatura média global - que já subiu 1.1ºC em relação aos níveis pré-industriais e que não deve ultrapassar o 1.5ºC até 2100, segundo a meta principal do Acordo de Paris. Ondas de calor, enchentes, incêndios, secas e tempestades foram vistos com frequência e intensidade inéditas em diversos países nos últimos meses.

Todas esses eventos extremos fazem parte de um mundo que passa por mudanças climáticas intensas e que podem prejudicar de forma irreversível a biodiversidade mundial e as sociedades. Enchentes, aumento no nível do mar e secas severas afetam negativamente o ambiente e o cotidiano das pessoas que, além de danos físicos, enfrentam o aumento do preço da comida e da conta de luz.

Para Carlos Rittl, ex-secretário-executivo do Observatório do Clima, e atual pesquisador visitante associado do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade de Potsdam, na Alemanha, muitas áreas ao redor do mundo estão deixando de ser aptas para a plantação agrícola. "No Brasil, 24% dessas áreas já perderam parte da sua capacidade de produção. Isso significa que algumas plantações terão de migrar para outras áreas e corremos o risco, por exemplo, de ter que importar o café argentino por talvez não conseguirmos mais produzi-lo em Minas Gerais. Essa possível escassez de alimentos impacta na pegada de carbono que será necessária para trazer os produtos para o Brasil e também no seu preço final", finaliza.

Segundo o especialista, essa oscilação entre fortes tempestades e fortes períodos de seca é o que tem afetado a agricultura. Quanto mais esses eventos forem frequentes, haverá menos disponibilidade de consumo, o que afeta diretamente a economia. "Entre 2013 e 2017 tivemos no Brasil mais de 2 mil cidades afetadas por secas e estiagens e mais de mil impactadas por enchentes e deslizamentos", pontua.

Segundo documento publicado pela Embrapa em 2019, só no estado do Mato Grosso, houve uma perda de 4,25% de área de cultivo de soja e milho em decorrência do aumento de 1ºC na temperatura. Outros estudos da organização indicam que por conta de eventos climáticos extremos, outras regiões perderão seu potencial agrícola, resultando em migração de culturas. O café e a cana, por exemplo, terão de ser deslocados para áreas de maiores latitudes.

"Ainda existem projeções do Banco Mundial que afirmam que o país corre o risco de perder 10,6 milhões de hectares de terras cultivadas e 4,6 milhões de toneladas de grãos até 2030. Esse declínio na produção impactará os preços, a demanda doméstica e as exportações", afirma Fernanda Iwasaka, analista de pesquisa e conteúdos do Instituto Akatu, organização não-governamental que trabalha pelo consumo consciente.

Como a crise climática tem afetado o bolso do consumidor

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) determinou taxa extra ainda mais cara na conta de luz no segundo semestre deste ano, enquanto o governo federal pediu esforço da população na redução do consumo de energia. O país presencia a pior crise hídrica do século, com os reservatórios que abastecem a grande São Paulo, por exemplo, abaixo do nível de 2013, pré-crise hídrica.

Segundo Lara Martins, gerente de Relacionamentos e Redes do Sistema B Brasil, as pessoas já sabem que os preços estão altos, mas talvez ainda não façam a conexão com as mudanças climáticas. "Essa conscientização só pode vir por meio da educação. Fazemos parte de um todo onde cada ação importa e todos são parte da solução. Por isso foi tão importante vermos a diversidade representando o Brasil na COP26, mulheres, pessoas negras, periféricas, indígenas. Nós enquanto Sistema B também fazemos um trabalho fundamental trazendo essa conscientização para dentro das empresas", pontua.

Além do aumento na conta de luz, quando o país passa por uma crise hídrica como esta e a bandeira vermelha é acionada, os cidadãos e as indústrias passam a depender das usinas termoelétricas ao invés da possibilidade de geração de energia pelas hidrelétricas. "Este é outro efeito da crise climática já que o uso das termoelétricas depende da queima de combustíveis fósseis e emite gases de efeito estufa poluentes para a atmosfera", reforça Rittl.

Justiça climática: como essa crise afeta desproporcionalmente as pessoas ao redor do mundo

As mudanças climáticas são diretamente responsáveis pelas enchentes que afetaram mais de 700 mil pessoas no Sudão do Sul, conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O país registrou as piores enchentes em algumas partes de seu território em quase 60 anos.

No Brasil, 40% da população vive no litoral e um dos maiores desafios está no Nordeste, onde as marés são mais extremas por conta da proximidade com o Equador. O Recife é uma das cidades mais suscetíveis aos eventos extremos e em Belém do Pará, mais de 50% das pessoas vive nas favelas.

Lara Martins reforça a necessidade de olharmos para as severas consequências da crise climática pelos recortes raciais e de gênero. "Os povos culturalmente mais vulneráveis, como as mulheres, os mais pobres, os pretos e pardos e os indígenas, além dos habitantes de áreas costeiras. Isso acontece justamente por já estarem vivendo em condições desfavoráveis em relação ao restante da população e por não terem recursos para combater a crise no seu dia a dia", ressalta.

A ativista também reforça que 70% das pessoas mais vulneráveis do planeta são mulheres por conta da sua função histórica e social de cuidar da família, plantar, colher, etc. Por isso a importância das mulheres estarem nesses espaços de tomada de decisão. "No Brasil, existe um número alto de jovens que sofrem de 'ansiedade climática', já que o que é acordado hoje refletirá na existência ou não do nosso futuro", conclui.

Além das consequências relacionadas à infraestrutura e aos gastos energéticos, vale pontuar como a crise climática também é responsável pelo surgimento de novas pandemias e epidemias. "Com o clima mais úmido, ele se torna mais favorável para a multiplicação de vetores, ou seja, de insetos transmissores de doenças, que envolvem tanto aquelas que já conhecemos como muitas ainda desconhecidas", reforça Rittl.

Cidadão mais conscientes para agir e cobrar

Segundo a Pesquisa Akatu 2018, que traçou um panorama do consumo consciente no Brasil, um dos principais gatilhos para a adoção de hábitos mais sustentáveis pelas pessoas é o econômico, ou seja, aquele que interfere no bolso.

"Geralmente, os primeiros hábitos mais conscientes surgem quando as pessoas entendem o benefício para o bolso, como economizando na água e a na luz, dentro de casa. Mas além de gerar este tipo de estímulo, é essencial que os governos e as empresas atuem conjuntamente na sensibilização e engajamento das pessoas em relação às mudanças climáticas. O fundo educacional é necessário, bem como o comprometimento das empresas com a transparência a respeito de seu processo produtivo", destaca Fernanda.

Quanto aos fatores que ainda impedem as populações de adotarem hábitos positivos, a mesma pesquisa afirma que a barreira de esforço é um dos principais obstáculos. "Muitos cidadãos ainda não optam pela bicicleta no lugar do carro ou pela compra de orgânicos por afirmarem que essas mudanças de comportamento exigem mais trabalho do que gostariam. Nosso trabalho no instituto é produzir conteúdos mobilizadores para as pessoas saberem que com poucas atitudes diárias elas já fazem parte da solução. Também desenvolvemos materiais que podem ser baixados gratuita e digitalmente na plataforma do Edukatu e que podem ser utilizados por qualquer escola do país", afirma a especialista.

Para Rittl, as iniciativas em educação devem incorporar as várias crises do Planeta dentro da grade curricular das escolas e universidades. "Os engenheiros, médicos e advogados, por exemplo, precisam escutar a ciência para exercer as suas profissões de forma mais consciente, levando em consideração o atual contexto global. Também precisamos que as políticas públicas incorporem o desenvolvimento sustentável no seu desenho e implementação. Precisamos das autoridades apresentando aos cidadãos a relação da crise climática com o Brasil atual", conclui Rittl.

Mais do que nunca, são necessárias soluções criativas e acessíveis, que levem em consideração a diversidade e a inclusão. E o incentivo do poder público é crucial aqui. "Não podemos deixar de cobrar, temos que ver o que nos afasta do nosso objetivo e agir. As crianças têm direito a este conhecimento, precisamos reforçar esses estímulos se quisermos ver um futuro melhor", crava Martins.

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