Em julho deste ano, o advogado João (nome fictício) achou que valia a pena mentir na corretora para ter acesso a um investimento específico. Assinou a declaração atestando que é um investidor profissional, que possui mais de R$ 10 milhões em aplicações financeiras, para investir em um fundo de criptomoedas, um produto de alto risco e potencial de retorno, exclusivo para esse público.
João não tem esse valor em ativos financeiros, mas queria diversificar sua carteira e foi orientado a preencher o documento pelo seu assessor de investimentos. “Ele não me disse que eu não poderia, nem que não aconteceria nada. Só me falou que eu teria que assinar a declaração como investidor profissional para ter acesso ao fundo”, conta.
“Dei uma pesquisada e não vi problema em fazer isso. Acho que essa declaração não tem potencial de gerar grandes consequências e só serve para as empresas se eximirem da responsabilidade pelos riscos que os investidores estão tomando”, diz.
Após quase um semestre, João está satisfeito com o retorno do seu investimento, apesar de saber dos riscos de perder dinheiro, e já investiu em outros fundos de investimentos no exterior exclusivos para profissionais. “A liberdade de poder assumir o risco é minha. Por que eu simplesmente não assino uma declaração dizendo que eu estou assumindo o risco em vez de ficar limitado a investimentos muito bons porque não tenho R$ 10 milhões?”, questiona.
Em grupos on-line de pequenos investidores, volta e meia esse debate surge. Obviamente, é raro alguém assumir publicamente que mentiu que é qualificado, com acima de R$ 1 milhão, ou profissional para acessar produtos. Enquanto alguns criticam a categorização de investidores e defendem que nada acontece com quem mente, outros condenam a má-fé e apontam possíveis problemas com o Código Penal e a Receita Federal.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) criou essas definições para proteger pequenos investidores. Por trás da regra, está a ideia, questionada por alguns, de que quem tem mais dinheiro tem mais conhecimento sobre o mercado financeiro.
O único que pode se prejudicar com a mentira na declaração é o próprio investidor, segundo especialistas. “A pessoa vai se expor a aplicações que certamente não entende e vai comprar produtos que não são adequados para ela”, diz William Eid, coordenador do Centro de Estudos em Finanças da FGV. Se perder mais dinheiro do que esperava, o investidor perde o direito de alegar na CVM ou na Justiça que não sabia dos riscos que estava correndo.
Além disso, na teoria, quem mente pode ser acusado de crime de falsidade ideológica, cuja pena pode ser de até cinco anos de prisão, segundo José Luiz Rodrigues, especialista em regulação do mercado financeiro e sócio da consultoria JL Rodrigues & Consultores Associados. Ao declarar que é qualificado ou profissional, a pessoa está prestando uma informação falsa. “Além de estar se colocando em risco, o investidor que mente está cometendo um crime. E isso é problema dele, não da corretora.”
Na prática, porém, a mentira na declaração não é crime, na visão de alguns advogados. Isso porque, para a história ir parar na Justiça, o investidor precisaria reclamar que não teve conhecimento sobre os riscos ou precisaria ser acusado de crime pelo Ministério Público, após uma denúncia, ou pela própria corretora. Não faz sentido, segundo esse grupo de especialistas, já que as empresas estão protegidas com a declaração assinada e não têm prejuízo com a mentira.
“Não vejo isso como um problema criminal, salvo se a corretora processasse o cliente. Mas a corretora não tem nada a ganhar com isso”, diz o advogado Samir Choaib, especializado em planejamento sucessório e tributário. Segundo ele, o risco de o investidor ter problemas com a Receita Federal também é pequeno, já que o investidor qualificado ou profissional não tem nenhum benefício fiscal. “Sendo qualificado, profissional ou não, se tiver imposto a pagar, o contribuinte vai pagar.”
Em 18 anos de carreira, o advogado Felipe Hanszmann, sócio da área de societário do escritório Vieira Rezende, nunca viu nenhum caso desses ir parar na Justiça. “É um crime formal, mas quem buscaria essa responsabilização e iria contra o investidor para protegê-lo? É uma situação esdrúxula do ponto de vista prático, não consigo ver a máquina estatal fazendo isso”, afirma. Ele entende que a CVM precisa colocar travas para informar investidores dos riscos, mas acredita que volume de dinheiro não é o parâmetro mais eficiente para medir conhecimento.
Nas corretoras, é incomum flagrar investidores que mentiram. Na XP, Julia Duarte, gerente do jurídico, diz que não se lembra de ter flagrado alguma mentira depois de o cliente assinar a declaração de qualificado ou profissional.
José Ramos Rocha Neto, presidente do fórum de distribuição da Anbima, diz que manter diferentes classificações para investidores com perfis de risco distintos faz sentido para protegê-los. Porém, segundo ele, já existem grupos de trabalho na entidade para discutir melhorias nessas classificações.
Daniel Maeda, superintendente de relações com investidores institucionais da CVM, confirma que não há punição para o investidor que mente. Mas diz que ele perde o direito de reclamar de que algo está errado com o seu investimento.
As plataformas de investimentos são obrigadas a analisar o perfil do investidor desde 2013, por meio da Instrução CVM 539. Mas, não precisam checar as informações, cruzando a declaração com dados do Imposto de Renda, por exemplo. A CVM não pode se ater a quem não declara a sua situação real, nem impor mais custos e burocracias às empresas, completa.
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