Leituras em Educação Infantil: Contribuições para a formação docente

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Catarina Moro Daniele Marques Vieira Organizadoras

NEPIE/UFPR



Catarina Moro Daniele Marques Vieira (Organizadoras)

Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente

2019


Universidade Federal do Paraná Reitoria Reitor Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca Vice-Reitora Profª. Drª. Graciela Inês Bolzón de Muniz Setor de Educação Diretor Prof. Dr. Marcos Alexandre dos Santos Ferraz Vice-Diretora Profª. Drª. Odisséa Boaventura de Oliveira Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil Coordenadora Profª. Drª. Gizele de Souza e Vice- Coordenadora Profª. Drª. Marynelma Camargo Garanhani Coordenação Editorial Catarina Moro e Gizele de Souza - UFPR Conselho Editorial Adriana Aparecida Dragone Silveira - UFPR Andréa Cordeiro Bezerra - UFPR Angela Maria Scalabrin Coutinho – UFPR Anna Bondioli – UNIPV Antonio Gariboldi – UNIMORE Bianca Cristina Correa – USP-Ribeirão Preto Donatella Savio – UNIPV Elena Mignosi – UNIPA Eliane Teresinha Peres - UFPel Fabiana Silva Fernandes – FCC Fernanda de Lourdes Almeida Leal - UFCG Geysa Spitz Alcoforado de Abreu – UDESC Heloísa Helena Pimenta Rocha - UNICAMP Isabel de Oliveira e Silva – UFMG Juarez José Tuchinski dos Anjos – UNB Juri Meda - UNIMC Mônica Correia Baptista - UFMG Natalia Fernandes - UMINHO Patrícia Corsino - UFRJ Silvia Helena Vieira Cruz – UFC Susana Sosenski - UNAM Vera Lucia Gaspar da Silva – UDESC


Catarina Moro Daniele Marques Vieira (Organizadoras)

Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente

2019 Curitiba NEPIE/UFPR


Copyright © 2019 by NEPIE/UFPR Coordenação Editorial Catarina Moro e Gizele de Souza Projeto Gráfico e Editoração Catarina Moro e Franciele F. França Capa Catarina Moro Fotografias - Capa Catarina Moro Revisão Dos autores UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS BIBLIOTECA CENTRAL – COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS

L533

Leituras em educação infantil [recurso eletrônico] : contribuições para a formação docente / Catarina Moro, Daniele Marques Vieira, organizadoras. – Dados eletrônicos. – Curitiba : NEPIE/ UFPR, 2019. 1 arquivo [256 p.] : il., color Vários autores. Inclui referências. e-ISBN 978-65-80043-03-3 1. Educação infantil. 2. Crianças - Livros e leitura. 3. Incentivo à leitura. I. Moro, Catarina de Souza, 1966- . II. Vieira, Daniele Marques. III. Título. CDD: 379.24 CDU: 372.41 Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548

Direitos dessa edição reservados ao NEPIE/UFPR Este livro foi impresso para o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil da UFPR em dezembro de 2019


SUMÁRIO PREFÁCIO Rita Coelho UMA EDUCAÇÃO INFANTIL ESPERANÇADA Catarina Moro & Daniele Marques Vieira

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SONHADA,

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PARTE 1: APROFUNDANDO A COMPREENSÃO DE PERSPECTIVAS PARA PENSAR A EDUCAÇÃO INFANTIL RETRATOS DO COTIDIANO: ILUMINANDO “PONTOS CEGOS” DAS PRÁTICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Adrianne Ogêda Guedes, Lívia Larissa de Lima Lage & Michelle Dantas Ferreira EXPERIÊNCIAS SENSORIAIS, EXPRESSIVAS, CORPORAIS E DE MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL Márcia Buss-Simão LIVROS DE LITERATURA PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA: A QUESTÃO DA QUALIDADE Mônica Correia Baptista, Camila Petrovitch & Mariana Parreira Lara do Amaral PORTFÓLIO DA CRIANÇA: ARTICULAÇÃO ENTRE FORMAÇÃO INICIAL E FORMAÇÃO CONTINUADA EM SERVIÇO Catarina Moro, Cybelle Andrade & Etienne Baldez O TRABALHO DA COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA: A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA DE FORMAÇÃO CONTINUADA Ana Julia Lucht Rodrigues

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PARTE 2: POSSIBILIDADE DE DIÁLOGOS ENTRE PERSPECTIVAS E AÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL A POTENCIALIDADE DA BRINCADEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DAS COISAS QUE APRENDI COM AS CRIANÇAS Giselle Silva Machado de Vasconcelos O ESPAÇO QUE SE TRANSFORMA EM AMBIENTE: EXPERIÊNCIAS HUMANIZADORAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Cassiana Magalhães

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LITERATURA COM BEBÊS: SEMEAR A ESCUTA E O IMAGINÁRIO Daniele Marques Vieira & Silvia Pandini

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A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA INFANTIL Emerson Rolkouski

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NA

EDUCAÇÃO

A ARTE E A CRIANÇA: UMA DISCUSSÃO TEÓRICO-PRÁTICA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL COM ÊNFASE NAS ARTES VISUAIS Andréa Bertoletti & Catarina Moro SOBRE AS AUTORAS E AUTORES

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Prefácio Este livro apresenta um esforço de articulação entre teoria e prática, entre profissionais do ensino superior e da educação básica e aborda diversas dimensões decorrentes da concepção de Educação Infantil presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais, de 2009. Em seus coerentes capítulos, afirma esta concepção em rico diálogo entre professores e professoras a partir da centralidade da criança. Às vezes tenho a impressão de que nós, profissionais e ativistas políticos, esquecemos que o direito à Educação Infantil nasceu da luta pelo direito do OUTRO: a criança. Nestes textos a criança é foco, a razão de ser da Educação Infantil. O que é imprescindível! Sem dúvida as últimas décadas foram férteis no Brasil para a Educação Infantil como campo de pesquisa e produção de conhecimento, de formulação e implementação de políticas públicas e de reconhecimento social do direito das crianças. Tivemos muitos avanços! Quando consideramos estes períodos temos evidências de que, para além dos muitos e cíclicos retrocessos, a trajetória das políticas de Educação Infantil e de efetivação dos direitos das crianças apresenta avanços significativos; sobretudo em relação à legislação e normas oficiais, ao padrão de financiamento, à oferta de serviços, à produção de conhecimento, à mobilização social, à organização judicial da demanda por atendimento, à expansão da oferta de serviços. A maior visibilidade dos problemas deve ser considerada também como um avanço no reconhecimento social coletivo dos direitos das crianças. Em relação a uma parte dos conhecimentos acerca da Educação Infantil, sugiro uma análise das produções, publicações e ações do Ministério da Educação (MEC) divulgadas no site até Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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2017. Constata-se na pluralidade de concepções pedagógicas uma coerência na construção da identidade da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, na regulação do campo, no debate sobre currículo, formação de professoras e qualidade. Claro que estes avanços ocorrem num contexto de contradições que configuram as características e desafios estruturais do Brasil. Não estou negando os problemas como a invisibilidade dos bebês, a inadequação da formação inicial das professoras, a não valorização dos docentes e principalmente a baixa qualidade das interações no cotidiano com as crianças. São problemas seríssimos que muitas vezes infringem de forma grave os direitos das crianças, mas ressalto que a Educação Infantil é uma área que vem crescendo como política pública, necessidade social e movimento organizado. Essa combinação que considero significativa não se observa em outras etapas da Educação Básica. Infelizmente, vivemos a partir de 2017 um tempo e contexto de autoritarismo, retrocessos sociais, desrespeito à Constituição, que exigem novas e fortes estratégias de defesa das infâncias, das crianças, dos direitos sociais e naturalmente da Educação Infantil. Reagir polarizando sempre em termos negativos consome energias e articulações que poderiam estar investidas em diálogos e proposições. Não me refiro em ser tolerante com quem é intolerante, mas sim em não esvaziar nossas interações, em reconhecer entre nós diferenças e, principalmente, possibilidades. Destacar perdas é colocar-se no lugar de perdedor, é negar os significativos, reais, históricos e coletivos avanços da sociedade brasileira ao reconhecer, em um relativo curto tempo histórico, a Educação Infantil como direito de todas as crianças, dever de Estado, campo de atuação profissionalizado, primeira etapa da Educação Básica com recursos constitucionalmente sub vinculados às matrículas. Problemas, contradições, disputas sempre existiram e Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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existirão. A questão é: e agora, o que fazer? Acho importante distinguir dois tipos de problemas os específicos da Educação Infantil e os estruturais do nosso país que se manifestam na Educação Infantil. Neste sentido, destaco duas grandes dificuldades nacionais a desigualdade social do Brasil e as insuficiências da formação de professores. Ou seja, existem decorrências dos problemas estruturais na educação, como na assistência social, na cultura, na saúde. A forma como as consequências atingem cada área são específicas, mas as causas, as razões do problema não estão no âmbito da governabilidade ou do conhecimento específico dos profissionais da Educação Infantil. Diferente, por exemplo, das questões referentes às práticas pedagógicas, ao currículo, à avaliação, à identidade e valorização do profissional ou à qualidade do cotidiano nas creches, aspectos da competência prioritária e específica dos pesquisadores, professores, gestores e militantes da Educação Infantil. Proponho esta distinção como uma medida estratégica para a nossa resistência na luta pela qualidade da Educação Infantil uma vez que na luta pelas mudanças estruturais somos um dos interlocutores e atuamos de forma articulada a inúmeros atores políticos de diferentes campos e áreas. Mas, não somos os propositores principais ou exclusivos, não concebemos propostas, somos parte de um coletivo muito maior. Porém, na luta pelo currículo, pela avaliação, pela qualidade do atendimento educacional de bebês, pela formação dos profissionais da Educação Infantil somos formuladores e precisamos ocupar o lugar de interlocutores principais, um lugar propositivo, coletivo a partir do cotidiano das escolas de Educação Infantil. Ou seja, no contexto atual devemos afirmar os avanços, indicar possibilidades, fazer propostas dialogando com professores e professoras, com famílias e crianças no cotidiano. A Educação Infantil configura-se atualmente como um novo Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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mercado explorado por investidores de vários campos, seja na expansão de escolas, na formação de profissionais, na produção de material, no debate sobre currículo, avaliação, alfabetização e várias outras questões. Precisamos estar nas escolas no dia a dia das rotinas, dos dramas reais, dos desafios dos nossos companheiros trabalhadores da Educação Infantil. Para mim é um dever republicano de quem como os autores e autoras deste livro tivemos as oportunidades privilegiadas que tivemos. Confio nas nossas conquistas que estão sim ameaçadas, mas existem reais possibilidades na nossa atuação políticoprofissional. Tenho defendido duas estratégias, afirmar a concepção de Educação Infantil e atuar na base com as escolas. Por que concepção? Porque perder programas, projetos e recursos é recuperável, mas fragilizar a concepção, abrir mão da identidade e das condições estruturais não tem volta, uma vez que novos atores se constituem na disputa política defendendo outros interesses. Por que na base? Para alargar diálogos, transpor muros. Ficamos na bolha dos “convertidos”, dialogando ou debatendo entre nós e muitas vezes com dificuldades institucionais absurdas de fazer os confrontos na própria área, que dirá com outras áreas. Com alegria recebi o convite de “apreciar” este livro fazendo seu prefácio. Considero que esta obra constitui uma proposta efetiva de resistência apresentando intervenções e defesa política clara da concepção de Educação Infantil no cotidiano de escolas. Espero que a leitura contribua não apenas para o necessário debate sobre concepção, relações democráticas de cooperação, mas sobretudo para fortalecer uma estratégia política de atuação comprometida com as crianças, as professoras e professores e o cotidiano. Rita Coelho Socióloga e Ativista Política do MIEIB Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Uma Educação Infantil sonhada, esperançada Catarina Moro Daniele Marques Vieira O título que escolhemos para introduzir a presente obra dialoga e se inspira nas ideias de Paulo Freire. Entendemos com o autor que nosso existir e persistir se entrelaçam à nossa capacidade de sonhar, esperançar, criar e recriar nos nossos contextos aos quais tomamos parte pessoal, social e profissionalmente. Desde a instituição da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica temos discutido a especificidade que a caracteriza e distingue das demais etapas, realçando a superação da dicotomia entre cuidar/educar para cuidar-educando, ou educar cuidando e, do entendimento de que ensinar bebês e crianças bem pequenas não se resume a introduzi-las no “mundo sistematizado e didatizado” das letras, dos números ou de outros conteúdos. Mas, mais do que isso, dar sentido ao conhecimento que envolve o cotidiano nesse contexto educativo, garantindo vivências culturais de pertencimento, ampliando referências para a construção de repertórios significativos e relativos aos processos vividos pelas crianças e pelos adultos que com elas compartilham aprendizagens, desafios e conquistas em seu desenvolvimento. A problematização do sentido educativo na Educação Infantil decorre do necessário enfrentamento que vimos acontecer nas primeiras décadas deste século, com a regularização da oferta, sua ampliação e constituição mediante as especificidades que envolvem as crianças nesse tempo de vida, enquanto políticas públicas pautadas nos marcos legais antecedentes, como a Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996/2013), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL 1999; BRASIL 2009), o FUNDEB (BRASIL, 2007), o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014). Nesse contexto, as redes municipais de educação precisaram se organizar, tanto acerca da estruturação físico-material – equipamentos e materialidades quanto à composição de quadro de profissionais qualificados com a formação exigida pela LDB nº 9.394/96, o que trouxe como consequência o confronto com a especificidade da etapa, seja em relação aos sujeitos – as crianças, as famílias e os profissionais em suas necessidades e demandas, seja na explicitação dos objetivos educativos pertinentes a ela. Entre a efetivação do direito das crianças à Educação Infantil e os desafios impostos pelo próprio sistema educacional – constructo pedagógico, financiamento e acesso -, denotam-se conquistas que significam avanços em relação à cidadania desses sujeitos. Urge que tenhamos um olhar crítico para não permitirmos retrocessos do estado brasileiro que, conforme a Constituição (BRASIL, 1988), é responsável por garantir a oferta, viabilizar a permanência e, sobretudo, a qualidade educativa. Para isso, é essencial compreender as crianças em seus contextos de vida, reconhecer suas potencialidades e valorizá-las como sujeitos de cultura; que se constituem por meio das relações, do contato com o conhecimento e pela possibilidade de interagir, explorar e construir referências e saberes sobre o mundo em que vivem. A atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), em 2009, abrangeu aspectos concernentes às particularidades do trabalho pedagógico, bem como explicitou, um olhar para as crianças em sua diversidade sociocultural, o que passou a também pautar as políticas públicas em prol da Educação Infantil, exigindo das redes de ensino e Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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instituições privadas, diversas adequações e a consolidação de concepções implicadas nas DCNEI. Mais recentemente, a emblemática construção nacional em torno do currículo, representada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nos convoca a pensar o sentido educativo que temos construído como direito das crianças. Cabe lembrar que a BNCC estava prevista na Constituição (BRASIL, 1988) pela articulação do sistema nacional de educação e, na LDB (BRASIL, 1996) pelo regime de colaboração entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, dada a incumbência da União de estabelecer competências e diretrizes à Educação Infantil a nortear o currículo e os conteúdos mínimos para uma formação básica comum. Paulo Freire (2000), em Pedagogia da Indignação, assevera que "o passado não se muda. Compreende-se, recusa-se, aceita-se, mas não se muda" (p. 73), está implícita nessa afirmação a necessidade de, todavia não ignorarmos o passado, mensagem tão importante nos tempos atuais, em muitos âmbitos, principalmente no que tange a área da educação. Assim é importante lembramos que tivemos conquistas notórias para a Educação Infantil brasileira, nesse breve tempo histórico pós Constituição de 1988. Contudo, não nos deve escapar que para além das conquistas acumulamos impasses, questões não resolvidas e, recentemente, temos nos defrontado com o que consideramos ameaças de retrocessos ou uma retrogressão de fato. A saber, enfatizamos, como avanços: a instituição da Educação Infantil enquanto primeira etapa da educação básica e, com isso, sua regulamentação no âmbito educacional; a inclusão da creche em 2007 no FUNDEB; os programas e ações do governo federal no período de 2003 a 2016 - PROINFANTIL, PROINFÂNCIA, BRASIL CARINHOSO -, a mobilização em torno de se constituir uma concepção de avaliação própria à Educação Infantil pela Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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criação da Avaliação Nacional da Educação Infantil (ANEI) com a participação direta do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP - o que infelizmente não se concretizou), o Projeto “Leitura e Escrita na Educação Infantil”. Tais ações e programas construíram sentidos para promover a ampliação da oferta da Educação Infantil, a busca pela qualificação dos profissionais, bem como a melhoria nas condições institucionais conforme as DCNEI. De outra monta destacamos dentre os impasses: a legislação da educação básica com incidência na organização da Educação Infantil, instaurando o debate acerca da ampliação do ensino de 8 para 9 anos, pela inclusão das crianças de 6 anos no ensino fundamental; e a questão da obrigatoriedade de matrícula a partir dos 4 anos de idade que, apesar de garantir a oferta para todas as crianças dessa idade, significou em muitos lugares a diminuição ou não oferta da creche. E, muito mais preocupante, como retrocesso ou risco, a fragilização da concepção de Educação Infantil, em virtude da mudança de paradigma - do estado de bem estar social pela garantia de direitos, ao estado mínimo como expressão genuína dos preceitos neoliberais -, pela diminuição dos gastos públicos, temos: a terceirização e precarização da oferta da Educação Infantil, o que tem sido amplamente estabelecido pelos governos municipais, estaduais e federal, a exemplo do voucher creche, da contratação de profissionais temporários ou sem concurso via organizações sociais. É importante assumirmos enquanto professores e demais agentes políticos no âmbito da educação que nossa incumbência, nossa missão, em harmonia com as ideias de Paulo Freire (2008) é transformar, colocarmos em prática uma educação que provoque criticamente nossa consciência para também provocarmos a consciência dos outros, contestarmos alguns mitos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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e algumas ideias que nos de-formam. Precisamos continuar nutrindo nosso potencial criativo, imaginativo e também onírico e utópico, lembrando e entendendo o passado, reconhecendo e denunciando o presente para irmos construindo o futuro mais possível, (im)possível. Com isso, evidenciamos com premência a necessidade de imbuir as relações teórico-práticas, na Educação Infantil, para melhor compreender como as crianças, desde bebês, se desenvolvem e se relacionam no e com o mundo à sua volta, como constituem suas aprendizagens, como constroem conhecimento e que papel a cultura tem nesse processo. Há alguns anos, Cleido Roberto Franchi e Vasconcelos; Katia de Souza Amorim; Adriana Mara dos Anjos e Maria Clotilde Rossetti-Ferreira (2003), discutiram admirável e distintamente, o quanto a incompletude motora do bebê e das crianças bem pequenas as predispunha para as aprendizagens, sendo vista por eles “como fator promotor das interações dos bebês” (p. 299), desde muito cedo, após o nascimento. Nas palavras dos autores o que ao mesmo tempo pode ser “caótico, indefinido, repleto de instabilidade” e é por e “com isso mesmo, um campo fértil para o surgimento do novo.” (p. 297). Tais considerações, fruto da análise das observações in loco das interações de bebês em uma instituição de Educação Infantil, permitiram aos autores considerar a incompletude humana no início das nossas vidas como uma virtude. Essa percepção, sem dúvida, deve ser comum para todos aqueles que desfrutam cotidianamente do convívio com crianças bem pequenas e bebês, sobretudo, professoras e professores que organizam as interações e interagem com elas/eles em contextos coletivos de educação e cuidado. Entendemos que a prática educativa, representada pela ação direta de professoras e professores com as crianças, configura importante referência sobre modos de ser e se Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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relacionar com o outro, a qual as crianças têm contato diariamente. Consiste, portanto, em influência relevante à sua própria constituição, uma vez que se entenda o adulto como sujeito experiente da cultura que representa modelo a ser apreendido, contestado, relacionado por elas. E que se considere a docência na Educação Infantil como um modo próprio e diverso das outras etapas, na qual, se realiza uma docência compartilhada; com uma ética específica a ser melhor discutida e consensuada. Temos olhado como um paradigma interessante o documento português, da Associação de Profissionais de Educação de Infância, “Carta de Princípios para uma Ética Profissional”1, que entre outros aspectos: - afirma a profissionalidade, enquanto prática reflexiva, numa perspectiva ética; - contribui para uma cultura de responsabilidade, a partir do interior do próprio grupo profissional; - consciencializa os profissionais de que o seu modo de agir tem necessariamente consequências naqueles que encontra no decurso da sua prática profissional; - apoia os profissionais na tomada de consciência da complexidade das situações com que se deparam, avaliando-as e ponderando o que está em jogo, para que possam decidir e agir de modo eticamente sustentado; - promove uma procura activa dos valores e princípios que estão na génese dos critérios que sustentam as tomadas de decisão; - constitui um instrumento que propicia a interrogação crítica das práticas, tendo em vista o bem do outro, o bem comum; - permite a cada profissional em função do seu contexto, um reequacionamento permanente dos princípios nela A carta pode ser encontrada no endereço web: http://apei.pt/associacao/cartaetica.pdf 1

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| 11 enunciados, de modo a que possa mobilizá-los ou ampliálos numa resposta ética. (APEI, s/d, p. 1)

Interessa sobremaneira realçarmos o que Estrela (1999, p. 31) refere como “dimensão do autoquestionamento ético” e se articula ao “desenvolvimento de uma consciência crítica que se exerce sobre o mundo e sobre si própria e que não se alheia da dimensão relacional e afectiva que deverá constituir a dimensão central da formação”. Daí a relevância em fomentar os processos formativos à compreensão dessa docência como oportunidade, consciente e decisiva à construção de repertórios culturais e relacionais das crianças. As crianças têm direito a conviver com adultos qualificados para atuar na Educação Infantil mediante formação e perfil, dando-lhes a possibilidade de vivenciar sentidos ao Ser que vai se constituindo humano. Tal como Boff nos ensina sobre se tornar humano, como atitude originária de “precisar ser cuidado e sentir impulso de cuidar. A dupla ser cuidado e cuidar constitui a energia fontal e seminal que vai construir, ao longo do tempo e do espaço, a humanidade do ser humano” (BOFF, 2012, p. 58). Assim, podemos pensar que disso depende a relação estabelecida nos processos interativos, para a qual a professora ou o professor tem responsabilidade de colocar aquilo que se elegeu da cultura como pertinente ao contexto educativo, privilegiando modos de estar sendo como referências ao repertório das crianças para se relacionar com outros e que, na dinâmica relacional significa também impactar o outro daquilo que ela mesma, a criança, coloca de si na relação. Essa ideia se fortifica como resposta ao reconhecimento da nossa condição enquanto professores, de inacabados, no sentido freireano do termo. Para Freire (2017) entre outras exigências ser professor implica a consciência do inacabamento, que significa ser “um “aventureiro” responsável, predisposto à mudança, à aceitação do Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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diferente” (p. 49), para além desse estatuto, “o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital” (p. 50). Para o autor o conhecimento de nos sabermos inacabados é alcançado social e historicamente. Como seres humanos não nos construímos no isolamento. A conscientização sobre essa nossa condição, nos chama a responsabilidade e a eticidade por nosso estar no mundo e pela nossa potencialidade de ir além, num permanente movimento de busca. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem ideias de formação, sem politizar não é possível. (FREIRE, 2017, p. 57).

Nossa intenção com esta publicação é que seu conteúdo possa fazer parte de diferentes ações formativas, dos muitos movimentos de busca, considerando âmbitos distintos que se complementam, a saber: a formação continuada como contexto de investigação; a ação pedagógica e sua relação com a prática e a reflexividade no pensar a própria prática. Com isso, procedemos a organização dos textos, que compõem a presente publicação, em duas partes, dando ênfase a aspectos constituintes do fenômeno educativo com o sentido de possibilitar aos leitores visualizarem as relações educativas por meio de leituras do cotidiano, que nos convidam a olhar de novo para aquilo fazemos. Oportunidade esta que permite relacionar saberes; reconsiderar perspectivas; construir conhecimento com o outro, na interação com os pares e entre agentes da área nas suas distintas funções – professores, coordenação pedagógica, formadores. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Assim, a primeira parte, Aprofundando a compreensão de perspectivas para pensar a Educação Infantil, representa a possibilidade de aproximação com temáticas emblemáticas do contexto atual da Educação Infantil, que envolvem a escuta como condição ao diálogo, o corpo como constituição do sujeito desde si e na interação com o mundo, a linguagem e sua relação com a cultura literária enquanto oportunidade para os adultos exercerem a escolha de qual repertório apresentar às crianças e construir com elas o reconhecimento do outro, em sua particularidade e diferença, como qualidade humana e, ainda, a importância da “documentação pedagógica” para possibilitar uma análise do trabalho efetivado pelas professoras em seus contextos de grupo/turma e para a coordenação pedagógica com sua função formativa. A segunda parte, Possibilidades de diálogos entre perspectivas e ação pedagógica na Educação Infantil, visualiza a instituição como espaço coletivo, cujos atores – professoras e professores, coordenação pedagógica, direção e demais profissionais – empenhados em promover a sua proposta pedagógica buscam efetivar, por meio de estratégias coerentes e concernentes à etapa em questão, processos significativos às crianças, sujeitos e atores sociais, em foco. Nos textos dessa parte do livro temos discussões acerca da espacialidade, das materialidades e das potencialidades imaginativas, lúdicas, resolutivas, problematizadoras e criativas das crianças em meio a práticas que dão centralidade às interações e às brincadeiras. Foi nosso intuito contemplar na presente obra, textos produzidos no âmbito mesmo da formação continuada, bem como, derivados da prática pedagógica, que vem sendo construída em diversos contextos educativos – públicos e privados -, e ainda, resultantes de pesquisas derivadas da formação inicial no Curso de Pedagogia, da Universidade Federal do Paraná. Entendemos Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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que nosso intuito foi exitoso, por isso, é com imensa alegria que apresentamos o livro “Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente”, como perspectiva e possibilidades de fomento a discussões e estudos em torno da prática educativa com crianças de 0 a 6 anos de idade nos mais diversos espaços para a formação de professoras e professoras que atuam e pretendem atuar na Educação Infantil. Sintam-se todas (e todos) provocadas e convidadas a mais essa interlocução! Referências APEI. Carta de Princípios para uma Ética Profissional. Lisboa, SEM DATA, Versão em PDF. BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética, na espiritualidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1988. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1990. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez 1996. BRASIL. Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007. Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jun. 2007. BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 2014. BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 01, de 07 de abril de 1999. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 abr. 1999. BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 05, de 17 de dezembro de 2009. Fixa Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 15 as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 dez. 2009. ESTRELA, Maria Teresa. Ética e Formação Profissional dos Educadores de Infância. Cadernos de Educação de Infância, 1999, 52, 27-35. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Editora Unesp, 2000. FREIRE, Paulo. Medo e ousadia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 55. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2017. VASCONCELOS, Cleido Roberto Franchi e et al. A incompletude como virtude: interação de bebês na creche. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 293-301, 2003.

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PARTE 1: Aprofundando a compreensão de perspectivas para pensar a Educação Infantil

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Retratos do Cotidiano: Iluminando “pontos cegos”2 das Práticas na Educação Infantil Adrianne Ogêda Guedes Lívia Larissa de Lima Lage Michelle Dantas Ferreira Introduzindo a conversa3 Recebemos um convite: compartilhar com professores e professoras de Educação Infantil o que temos pesquisado e descoberto em nossas práticas de formação docente. Que assunto apetitoso para nós! Preparamos, então, este texto, do mesmo jeito que cozinhamos para amigos. Escolhemos o que seria servido: um pouco da nossa história de professoras-pesquisadoras e das nossas aprendizagens; a combinação dos ingredientes: infância, docência, experiências sensíveis; o tempero: nossas reflexões e também as dos professores que participaram das propostas formativas oferecidas pelo núcleo de pesquisa que integramos4. Esse conjunto de vozes fala das experiências formativas vividas de um ponto de vista pessoal e profissional e dão sabores aos saberes que temos construído. Saberes esses que nutrem e encorajam a ampliar os sentidos humanos na docência, na pesquisa, na vida. Utilizamos a expressão “ponto cego” metaforicamente para nos referirmos a ideia de que determinados acontecimentos escapam ao nossos campos perceptivos habituais, campos esses social e culturalmente construídos. 3 Agradecemos a Maria Alice Garcia de Mattos pela revisão graciosa do presente capítulo. 4 Somos integrantes do Grupo FRESTAS (Formação e Ressignificação do Educador: Saberes, Troca, Arte e Sentidos), vinculado ao Núcleo Infância, Natureza e Arte (NINA) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 2

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As vozes de outros professores/autores se fazem presentes ao longo deste texto não como simples relatos que corroboram o que é dito, mas como narrativas com as quais dialogamos e que estão registradas em relatos escritos a partir das aulas do curso de extensão “Infâncias Cariocas”5, na versão realizada no primeiro semestre de 2018, que teve como metodologia mesclar aspectos teóricos e vivenciais na formação dos professores, oportunizando novas formas de produzir conhecimento ao convidar os sujeitos em formação ao movimento, à arte, à natureza, à dança, à cultura popular, à brincadeira e também à leitura de textos e à reflexão conjunta sobre como essas experiências nos mobilizam, tanto na dimensão pessoal quanto na profissional. É dessa maneira que temos nos dedicado a refletir sobre a educação de crianças nas instituições de Educação Infantil brasileiras: coletiva, sensível, cuidadosa, criativa, concretamente. Somos professoras nessa etapa educacional, pesquisadoras e formadoras de professores e compreendemos que para falar de Educação Infantil e formação docente é preciso falar, ao mesmo tempo, das crianças, dos professores e da infância. A partir de nossas docências, do diálogo com colegas, autores, pesquisas, teorias e também com as crianças, temos desenhado o que chamamos de “processos formativos sensíveis” ou “formações estéticas”. Sensíveis por reconhecermos que o professor é profissional e pessoa, pessoa inteira, que tem sua história, suas experiências, sua inserção social, suas crenças, desafios, certezas e incertezas, características as quais leva consigo para a profissão. Sensíveis Esse curso é uma ação ligada a dois Projetos de extensão coordenados pelas professoras Adrianne Ogêda e Léa Tiriba da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Temos atuado neles seja como coordenadoras e/ou professoras. O público é prioritariamente composto por professoras da Educação Infantil das escolas públicas do Rio de Janeiro e em 2018 tivemos duas turmas, uma em cada semestre. 5

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por incluir o afeto, o cuidado, os sentimentos, as emoções, as memórias, a força (cri)ativa da pessoa em formação. Sensíveis porque são processos permeados pelas informações que nos chegam não somente pela via do intelecto, mas também a partir do corpo, pelas vias sensoriais e perceptivas, que muitas vezes são deixadas de lado nas aprendizagens escolares (de adultos e de crianças). Sensíveis por compreender o espaço formativo como ambiente de acolhimento e compartilhamento de experiências – pessoais e profissionais – uma vez que a docência é atividade de grande demanda e responsabilidade e a “partilha fortalece” (J., 05/2018). Sensíveis porque humanizar as relações com a aprendizagem é essencial para o exercício de uma profissão fundamentalmente interativa, relacional e humana (TARDIF; LESSARD, 2014). Sensíveis, porque a aproximação da infância requer sensibilidade! Esse ponto é essencial: a necessidade de que professores de Educação Infantil sejam sensíveis às crianças e à infância. Ao dizer isso, estamos enfatizando a ideia de que as crianças são diferentes dos adultos e por isso precisamos aprender a perceber suas peculiaridades, a fim de respeitá-las, evitando impor sobre as mesmas o modo adulto como forma legítima de ser e estar no mundo. Contudo, entendemos também que conhecer as crianças não é tarefa simples: não é algo que se aprende apenas retoricamente, à distância da infância, ou naturalmente, por gostar de crianças. O fato de sermos professoras(es) de crianças pequenas e conviver com elas diariamente não garante a proximidade necessária para conhecê-las empaticamente. A aproximação da criança requer do adulto um resgate dos laços com a infância. Importante esclarecer que enquanto as crianças são os indivíduos de pouca idade – e sujeitos de direito no Brasil –, que Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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se assemelham em aspectos biológicos e se diferenciam em relação à origem socioeconômica, familiar, étnica, de gênero; a infância é não somente um tempo na vida pelo qual todos passamos, mas também uma ideia, uma força novidadeira (OSTETTO, 2014), curiosa, intrigada, criativa de estar no mundo. Compreendemos a infância como determinada qualidade de experiência de cultura que não se resume a uma assimilação passiva da mesma. À vista disso, Kohan (2015) nos lembra que há muita infância fora das crianças. Posto isso, quando falamos em aproximação e resgate dos laços com a infância, não estamos sugerindo a infantilização dos adultos. Há uma assimetria entre ambos e afirmar as diferenças reforça o compromisso ético necessário para legitimar a alteridade das crianças e a necessidade de que os adultos aprendam a aproximar-se do universo infantil com cumplicidade e empatia, sabendo ser este um ambiente misterioso, estrangeiro, “estranheiro”. A infância existe na sintonia das experiências poéticas – não codificadas, não cristalizadas, não padronizadas –, na transgressão aos significados já dados para as coisas, na gramática que brota do mundo sentido, percebido, experimentado. Quando uma criança fala, por exemplo, que percebe que as pessoas de determinado lugar são “desalegres”, ela comunica suas impressões inaugurando uma expressão nova, impregnada de suas percepções e sentimentos e que revela sua competência para dizer-se, compartilhando poeticamente seu entendimento. Poetas, artistas, crianças cultivam esse talento de expressar seus sentimentos, compreensões, impressões, reflexões por meio de muitas formas. Essa flexibilidade transgressora às maneiras convencionais de lidar com a linguagem revela a competência expressiva da criança que “abocanha” o mundo, o saboreia e processa com todos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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os sentidos, inventando jeitos de (r)existir. Andrade (2009) 6 compreende a linguagem como um meio ambiente onde as interações com as coisas não são apenas pragmáticas, funcionais, utilitárias, mas principalmente expressivas. Um meio ambiente de possibilidades, sonho, imaginação e criação onde é viável (re)inventar as experiências de mundo. De acordo com o autor, a infância permite “o contato com uma experiência da linguagem diferente da que usualmente temos – e com a qual, diga-se de passagem, dificilmente fazemos qualquer experiência real” (ANDRADE, 2009, p. 284). As experiências infantis têm intensidades e lógicas próprias. As “pérolas” que as crianças dizem e fazem, as perguntas que elaboram, o que constatam em suas observações aguçadas são pistas de como elaboram o mundo. É preciso polir nossas lentes para alcançar o “microcosmo infantil” (FREITAS, 2007), caso contrário, esse ambiente complexo, sensível, deslumbrado da infância permanece na invisibilidade, aprisionando no campo discursivo a ideia de que crianças são sujeitos competentes, ricos em suas interações, invenções, intervenções. Nos perguntamos, então, onde e como tal discurso se evidencia concretamente? Compreendemos que além da importância de se conhecer as teorias e estudos sobre as crianças e a infância, é igualmente necessário olhar para os sujeitos-crianças e suas ações com proximidade, atenção e encantamento a fim de conhecê-las direta e concretamente. O encontro sensível e reflexivo entre o que se aprende de maneira abstrata e o que se vivencia de maneira concreta, torna-se aspecto chave para a construção de saberes significativos, que funcionam como pontes que conectam sensibilidade e cognição. Com as lentes polidas e o alcance da visão ampliado, as 6O

autor refere-se a uma concepção de linguagem a partir de seus estudos da obra do filósofo Walter Benjamin.

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novas percepções nos permitem desafiar a maneira como estamos acostumados a conhecer as crianças e que condicionam nossa capacidade de ver o que fazem, de escutar o que dizem, de reconhecer o que expressam. Conhecimentos esses que, às vezes, mais funcionam como cortinas que nos impedem de vislumbrar as paisagens da infância, de dar ouvidos para os assuntos da imaginação, de construir empatia com os jeitos das crianças se relacionarem com o mundo. À distância, permanecemos alheios às culturas infantis (CORSARO, 2011), o que reduz a possibilidade de conhecê-las de fato, concretamente, testemunhando e respeitando suas especificidades. Por isso, estudiosos da infância insistem em pontuar o fato de que as crianças não somente assimilam e reproduzem a cultura, como também a criam, modificam, transformam (CORSARO, 2005, 2011; SARMENTO, 2005; SOUZA, 1994; KRAMER, 2012, 2013) aos seus modos. Não é à toa que sejam tão desconcertantes! Elas remexem no que parece estar consolidado, solicitam explicações, nos fazem falar do mundo uma e outra vez. Incomodam e desacomodam. Não acostumados à cultura que vivenciam como novidade, se revelam sujeitos críticos (SOUZA, 1994). Esse jeito “crianceiro” de estar no mundo tem o potencial de nos fazer refletir e de desvelar nossas próprias lógicas, às vezes sem sentido, arbitrárias, contraditórias. E mais, as crianças reproduzem, reinterpretam (CORSARO, 2011), criam e transformam a cultura enquanto brincam, vasculham, cutucam, perguntam, imaginam, fantasiam, desenham, gesticulam… Essas “desimportâncias” são imprescindíveis para o desenvolvimento infantil e se revelam como ocasiões privilegiadas de aprendizagem para as crianças e sobre elas. Nessas ações, as crianças se assumem protagonistas do seu processo de desenvolvimento. Corsaro (2011) entende, inclusive, que as interações das crianças entre si, com o ambiente, com o Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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outro, são as situações mais propícias para acontecer sua “criatividade cultural” (BARBOSA, 2014). Essa compreensão ressalta a competência da criança no tempo presente de sua tenra idade. Nos perguntamos, contudo, que importância conferimos aos saberes e fazeres infantis em nossa sociedade? Que lugar eles ocupam nas formações de professores e nas práticas pedagógicas das creches e pré-escolas? E mais: como os professores(as) de Educação Infantil poderiam favorecer tais situações de aprendizagem e desenvolvimento, onde a criança e suas formas de se relacionar com o mundo têm protagonismo? Não seria uma função da Educação Infantil promover e priorizar as experiências de infância? As representações sociais, escolares, professorais se baseiam, muitas vezes, na ideia de que a criança é um projeto de adulto, alguém para quem está reservado o futuro e que, portanto, deve ser preparada, educada, socializada. Isso acaba por negarlhes o momento presente: o que já são, o que já dizem, já fazem e, com isso, suas formas de interação e participação no mundo são subjugadas. Como ajustamos nossas percepções e ações pedagógicas de modo a presentear a infância com nossa atenção? Nessa reflexão, partilhamos nossas descobertas sobre caminhos que levam ao despertar da criança no adulto, ou seja, caminhos que se abrem às experiências no ambiente criativo da linguagem, que nutrem a sensibilidade dos professores às crianças, suas manifestações e expressões. De fato, não precisa ser criança para experimentar essa qualidade de interação com o mundo! Quando o encontro entre adultos e crianças se dá no universo lúdico da linguagem, é possível compartilhar compreensões sobre o mundo, onde lógicas diversas passam a coexistir. Como, então, se adentra ao ambiente de infância? Onde e Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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como se aprende a aproximar compreensões de mundo entre adultos e crianças? Esse é um ponto essencial do que temos investigado: como sensibilizar o educador às crianças e suas manifestações? É possível educar para a sensibilidade? Acreditamos que sim: a educação tanto pode refinar, dilatar e aprofundar a sensibilidade, como pode também estreitar, afunilar, murchar e empobrecê-la. O que colhemos das falas dos professores em seus registros é a predominância de uma relação com o tempo, com o trabalho docente, com os afazeres da vida, que lhes distancia da possibilidade de nutrir sua sensibilidade e de aproximarem-se da infância. Uma qualidade de vida que se reflete diretamente na qualidade da sua presença/existência, inclusive junto às crianças, na situação do trabalho docente. Termos como “a carga pesada do dia a dia”, “a correria”, “a pressa”, “a exaustão”, “a tensão”, aparecem com frequência em suas falas ao expressarem como se sentem cotidianamente: “mergulhados em um ritmo mecânico e ‘empacotado’” (M., 05/2018). Ritmo que anestesia, desconecta e os mantém indiferentes aos próprios sentidos. Responsabilidade individual do professor? Não. Seria demasiado reducionista chegar a essa conclusão. Já há algum tempo filósofos, educadores, psicólogos vêm denunciando a desumanização da vida na modernidade. Tempos de produtividade, lucro, automatizações que mecanizam a vida, acinzentam seu colorido (OSTETTO, 2010), tornam seu sabor insosso, robotizam as pessoas. Parece acertada a fala de uma professora ao constatar que “no mundo em que vivemos está faltando muito a criança dentro de nós” (C., 05/2018). Como despertar essa criança que nos falta? Não somente denúncias como também respostas para as questões colocadas acima têm surgido dos processos formativos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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que vivenciamos e propomos, apontando caminhos que nos permitem “sair do comodismo” (L., 05/2018), “sentir de outra forma” (J., 05/2018), “mudar o olhar” (L.,05/2018), “libertar a criatividade” (R.,05/2018), “em uma vida rotineira que te trava” (R., 05/2018) e indicam o papel que cumprem tais processos, ao favorecer os vínculos com a infância, despertando a criança no próprio educador. Trata-se de processos formativos que, como dissemos, conferem especial valor aos sabores e saberes das experiências vividas pelos sujeitos em formação – individual e coletivamente – e, por isso, têm como estratégia ampliar o aspecto experiencial da formação docente, mobilizando simultaneamente as dimensões pessoais e profissionais, propondo fricções entre cognição e sensibilidade, conceitos e experiências. Assim, a formação tornase um processo autoformativo da pessoa/professor, em sua integralidade. Se por um lado a rotinização do cotidiano é necessária para a estruturação do dia a dia, a fim de conferir estabilidade e previsibilidade necessárias à organização da vida individual e coletiva, por outro lado, a repetitividade da rotina pode automatizar, normalizar acontecimentos sem sentido, anestesiar a vitalidade da vida que, então, passa a se repetir sem qualquer reflexão. Larrosa (2014, p. 28) nos ajuda a compreender que “é experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos transforma”. Mas também nos alerta para o fato de que vivemos em tempos de muitas informações, opiniões e poucos acontecimentos. As experiências que têm o vigor de formar e transformar são cada vez mais raras. É no empenho de provocar experiências que formam e transformam que trabalhamos com a formação de professores. Temos constatado que ampliar as oportunidades de interação Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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com as linguagens nas suas dimensões expressivas, lúdicas, poéticas, sensíveis, potencializa a qualidade transformadora das experiências de mundo, nos conectando ao que estamos chamando de lugar da infância. A sensibilidade é característica do humano que vem sendo diluída no caldo fervilhante das atribulações rotineiras; torna-se, assim, um tempero tão imperceptível que parece até ser dispensável. Acreditamos que a infância é uma qualidade de estar no mundo em que a dimensão sensível é especialmente provocada e sentida. O trabalho com professores tem confirmado a importância das experiências sensíveis para/no exercício da docência em cumplicidade com a infância. A partir das nossas pesquisas, estudos e experiências formativas, nos arriscamos a dizer que para assumir uma prática pedagógica sensível é imprescindível afirmar a experiência de que “somos corpo” (LE BRETON, 2013), ou seja, não é possível alcançar a integridade humana – nem da criança nem do adulto – na perspectiva da fragmentação corpo/mente fundante do pensamento e do estilo de vida moderno. Quando nos dispomos a reconhecer a criança e suas expressões, é primordial compreender que ela está integralmente, multidimensionalmente mergulhada nesse mundo e que a ênfase que geralmente conferimos à dimensão intelectual apenas reduz a potencialidade de reconhecermos essa integralidade. “Reconhecer o corpo leva ao resgate de memórias e experiências” (I., 05/2018), e diríamos, ainda, que nos leva a resgatar nossa identidade. Ao afirmar que somos corpo, iluminamos a importância dos aspectos sensíveis, sensoriais, perceptivos, presentes nas interações humanas com o mundo e questionamos os conhecimentos construídos apenas abstratamente, desenraizados da concretude da realidade que testemunhamos. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Por isso, consideramos tão importante aproximarmo-nos das experiências significativas vividas pelos professores – profissional e pessoalmente – como metodologia formativa. Temos percebido e colhido testemunhos de que relacionar as experiências vividas ao saber acumulado é caminho para construir conhecimentos com significado e sentido, por serem conectados à vida, o que “é mais que conhecimento” (A., 05/2018). Nessa trajetória de interação com a Educação Infantil, no chão da escola e na universidade, foi ficando cada vez mais claro que os processos formativos dos professores guardam alguns “pontos cegos”, ou seja, aspectos que passam despercebidos e que precisam ser iluminados para avançarmos em um problema já há algum tempo detectado, mas que ainda fica na penumbra: o lugar da pessoa inteira nos processos formativos, seja de professores ou de crianças. Nos fiamos no princípio de que “há forte homologia entre as experiências dos professores e as experiências dos alunos” (DUBET, 2002, apud CANÁRIO, 2006, p. 87) e compreendemos com isso que não é possível desenvolver práticas pedagógicas que contemplem a integridade do outro criança e tudo o que fazem, inventam, criam, se na própria pessoa/professor não for cultivada e provocada sua condição de ser sujeito e atuar na cultura, a integridade de si mesmo, suas formas de expressão e autoria. A partir desse princípio podemos inventariar algumas questões: como reconhecer a poética infantil se nossa relação com o mundo tende ao enquadramento da gramática normativa? Como sustentar as experiências de infância, quando estamos soterrados por demandas e tarefas que inibem nossa força lúdica, imaginativa, expressiva? Como priorizar a característica relacional e humana da docência quando a rotina do trabalho tende a mecanizar e controlar nossos fazeres? Despertar a infância que existe fora das crianças nos parece ser um caminho promissor para lutar contra Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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a desumanização da vida, da docência, das práticas pedagógicas e da própria infância. O foco dessa argumentação não é apenas a formação docente. Contudo, como dissemos anteriormente, não há como conhecer e versar sobre as crianças e suas especificidades à distância da infância. Aproximar os âmbitos de interação entre docência e infância demanda acionar o frescor do olhar infantil para o mundo em todos nós. Olhar que funciona como lanterna, que ilumina e faz brilhar os detalhes apagados pela indiferença do olhar adulto que geralmente desqualifica a experiência de infância, apequenando a qualidade da existência humana. Seria possível fazer da pedagogia um campo de experiências transformadoras? Como se traduz práticas pedagógicas em experiências? Atividade X Experiência: a escuta que acolhe e promove a produção dos sentidos no cotidiano "Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando ao redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo, jeito? Ou a gente só principia ser quando cresce? É terrível ser? Dói? É bom? É triste? Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas. Repito: ser, ser, ser. SER. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá pra entender. Não vou ser. Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer." Carlos Drummond de Andrade

Até aqui enfatizamos o valor das experiências infantis – das crianças e dos adultos educadores! –, entendendo que uma sequência de acontecimentos que não envolvam os sujeitos de Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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modo especial, revitalizando suas interações com a cultura, acaba sendo, mais das vezes, uma forma de preencher o cotidiano de atividades mecânicas que, cumpridas burocraticamente, esvaziam-se em seu potencial “trans-formativo”. Assim, seguimos socializando, ocupando e controlando as crianças, sem necessariamente favorecer suas expressões e criatividade, deslocando o protagonismo das suas interações para seu desempenho nas atividades pedagógicas que lhes propomos. O poema de Drummond atenta para o incômodo da sensação da criança de não poder ser já, no momento presente da vida, quando tanta expectativa é depositada no seu “vir a ser”. O poeta formula uma resposta à pergunta “o que você vai ser quando crescer?”, que tem a força da resistência afirmativa da vida na infância: “Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser.”. Há nessa frase uma desistência em corresponder a tais expectativas, pois assim, quem sabe, torna-se possível ter escolhas sobre o que se quer ser, escolhas que se apresentam apenas sendo... Nesse sentido, cabe refletir sobre a forma como temos vivido nosso dia a dia com as crianças. Que expectativas, depositamos sobre elas? Preenchemos o tempo a fim de “vir a ser”, ou vivemos mais plenamente o presente, simplesmente sendo? Quais são as experiências que convocam a produzir sentidos no momento presente das interações? Como tais experiências acontecem e como nos relacionamos com elas? Que participação temos, enquanto docentes, em favorecer as experiências infantis? E como elas nos afetam e nos fazem sentir? Compreender que para que um acontecimento seja experiência é preciso que ele faça sentido, é uma boa pista. Mas... o que é fazer sentido? Que experiências tocam a força inventiva e criativa do humano? João Francisco Duarte Jr. (2010, p. 89) traz uma compreensão ampliada da palavra sentido na língua portuguesa, entendendo-a como significado; como Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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referente aos órgãos dos sentidos; também como consciência – que é perdida quando perdemos os sentidos –, podendo também indicar uma direção, um rumo para chegar, ou ainda, referindo-se àquilo tudo que é sentido pelo nosso corpo. Essa é outra pista importante: para que algo faça sentido é preciso que nos envolva de corpo inteiro; requer experimentar, estar integralmente imerso no mundo! Por meio da sensibilidade do corpo a experiência vívida no, e com o mundo, se faz em nós a cada instante. Os bebês ilustram bem esta premissa. Seus primeiros encontros com o mundo são essencialmente o contato do corpo sensível com as cores, luminosidades, contrastes, sons, temperaturas, odores, texturas, sabores. Tudo isso vai compondo suas referências e assim, sensivelmente, em conjunto às interações que têm com os adultos cuidadores, vão incorporando o mundo em si mesmos e conferindo-lhe significados. O sentir é, portanto, um elo vital com o mundo, o que o torna familiar (RICHTER, 2016), uma forma primordial de conhecer (HILLMAN, 1993). As crianças são sujeitos sociais, com ideias e iniciativas que contribuem na organização da vida do grupo ao qual pertencem. Relacionam-se ativamente com seus pares-crianças e com os adultos, estabelecendo trocas, inventando enredos próprios, contribuindo para criar uma cultura comum. Produtoras de cultura, portanto, elas vão compreendendo sobre o mundo e sobre si mesmas nessa qualidade imersiva. A cena a seguir, registrada em tempos de coordenação pedagógica em uma instituição de Educação Infantil, retrata o protagonismo das crianças nas brincadeiras que se articulam com as ações corriqueiras do seu dia a dia: Certo dia a professora de uma das turmas faltou e fiquei um bom tempo com seu grupo. O grupo era heterogêneo, com Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 33 crianças entre 3 e 4 anos. Estávamos no pátio da escola, onde havia uma casinha de madeira e uma rampa próxima. Começamos a brincar que éramos uma família de gatos. A brincadeira consistia em viver o cotidiano da vida de uma família de gatos. Eu era a mãe. Entre banhos, comida, idas para a escola, íamos articulando o grupo. Alguns participavam trazendo sugestões de desdobramentos para os enredos que inventávamos. Outros circulavam ao redor, de quatro, e eram “cuidados” pela mãe e irmãos gatos. Ficamos um bom tempo envolvidos naquela cotidianidade felina. Alguns dias depois, quando cheguei à escola, assim que me avistaram, vários ficaram de quatro e começaram a miar. Criamos uma brincadeira que só para nós fazia sentido. Nossa cultura. A professora me perguntava curiosa.... “Eles tem virado gatos todos os dias, o que aconteceu quando eu não vim?”. (GUEDES, 2000).

O prazer vivido na cena descrita acima marcou o grupo de modo especial. Nessa experiência o grupo integrou-se em um enredo comum, inventado coletivamente, vivendo de corpo inteiro o que foi mobilizador da capacidade inventiva, propulsor de relacionamentos e de alegria. Constituiu-se em uma experiência memorável, daquelas que não se esquecem e entram no repertório do que é comum, pois não foi imposta, não foi mecânica. Tomou os sujeitos como protagonistas. As crianças sugeriram os rumos dos acontecimentos, divertiram-se com as invenções e a brincadeira foi para valer, não era pretexto para finalidades pedagógicas outras. De fato, não é incomum que a atividade proposta pelo adulto, ainda que seja uma brincadeira, tenha um objetivo encoberto, prévio e mais importante do que o próprio brincar. Atividade como pretexto para “ensinar algo” costuma ser recorrente no cotidiano da Educação Infantil. Essa é uma questão também importante ao considerarmos o que é relevante para as crianças e diz da nossa responsabilidade como docentes em não anular nelas, Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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desde bebês, suas possibilidades de aprenderem “o extraordinário que vale a pena ser vivido” (RICHTER, 2016, p. 16), atentando para seus interesses e motivações. Aprendizagens acontecem não somente em situações de ensino. Guimarães (2011) afirma que para compreendermos a criança como aquela que surpreende, desequilibra as convicções dos adultos, altera, é fundamental que tenhamos a escuta como um eixo do trabalho. É por meio de uma escuta atenta que podemos visualizar as crianças e as manifestações das suas cem linguagens – dramatizações, gestos, falas, construções de objetos, etc. (MALAGUZZI, 1999). A escuta é instrumento de conhecimento sobre a criança concreta com quem interagimos presencialmente. Escuta, portanto, como metáfora para a abertura e a sensibilidade de ouvir e ser ouvido – ouvir não somente com as orelhas, mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, olfato, paladar, audição e também direção). (RINALDI, 2017, p. 124).

Tal escuta se amplia à medida em que inibimos nossa tendência de controlar, prever, dirigir as aprendizagens e desenvolvimento infantil e nos tornamos disponíveis para visualizar e apoiar as crianças e suas invenções que tomam formas na realidade compartilhada. Dessa maneira, sua participação é acolhida, a criança é “tirada do anonimato” (RINALDI, 2017, p. 125) e ela se torna co-criadora do processo educacional que vivencia. Quando suas ideias, iniciativas e sugestões são consideradas no planejamento diário da proposta educativa, suas brincadeiras certamente ganham destaque, uma vez que brincar é maneira privilegiada da criança dialogar com a cultura e exercer sua atividade interativa. Ao observarmos com proximidade, atenção, escuta os fazeres e saberes das crianças em suas brincadeiras e interações, estes tornam-se, de fato, fontes de reflexões sobre os

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processos de aprendizagem singularmente vividos por cada criança, potencializando o conhecimento que temos sobre elas. Haveria melhor indicativo para orientar nossas ações pedagógicas do que indícios colhidos a partir das próprias crianças? A maneira como realizam suas produções, as falas, os desenhos, os gestos, a forma como se expressam, o jeito como movimentam seus corpos no espaço, os interesses e desafios demonstrados por cada uma são elementos fundamentais para a construção de um cotidiano agradável, interessante, motivador, acolhedor e repleto de situações de aprendizagem. Ser escutada e ter suas produções e invenções acolhidas, favorece a constituição da autoestima e autoconfiança da criança. O olhar que a percebe competente lhe permite exercer suas competências. Os vínculos entre adultos e crianças são fortalecidos, elas podem se perceber capazes, importantes para o grupo, aprendendo a escutar com a experiência de ser escutada e a considerar a presença e a ideia do outro, afinal, como diz Rinaldi (2017, p. 228) “escutar é um verbo recíproco”. As crianças têm, com isso, o aprendizado de ocupar um lugar ativo e interativo, de apropriarem-se da importância de sua palavra e presença pela experiência de falar e ter sua existência reconhecida. Sentem-se, assim, protagonistas e autoras dos projetos que vivenciam em seu cotidiano, junto com o professor e todos os envolvidos – crianças e adultos. Estreitam-se laços de afeto e sentidos de pertencimento. É por meio do diálogo estabelecido na escuta e no compartilhamento, que o planejamento é, então, construído e alimentado a partir das observações docentes das manifestações infantis. Isso não destitui o professor de seu papel de partícipe dessa relação. Professores são sujeitos, têm sua história e imprimem suas marcas nas interações com as crianças onde também colocam em jogo seus gostos, interesses, referências, Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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resistências, etc.. É justamente nessas interações, feitas de escuta e diálogo mútuos, que vai se desdobrando o dia a dia na instituição educativa, com sentido para todos. Importante destacarmos que há uma especificidade no trabalho com crianças de 0 a 5 anos que o diferencia do Ensino Fundamental, à medida em que neste segmento privilegia-se o domínio dos conhecimentos básicos, socialmente organizados. Na Educação Infantil, por outro lado, o eixo curricular é flexível, lúdico, amplo: consiste nas brincadeiras e nos relacionamentos (interações) que norteiam as práticas pedagógicas constituintes da proposta educativa (BRASIL, 2009). Desse modo, o processo de constituição da identidade da criança, o afeto, a expressão, o brincar, o movimento corporal, os relacionamentos são centrais nas propostas pedagógicas, e os conhecimentos sistematizados – se e quando surgem e são mobilizados – precisam estar a eles vinculados. A aprendizagem é um efeito indireto da relação que se estabelece com o conhecimento, ou seja, não é resultado somente de atividades de ensino. Cabe aos professores de Educação Infantil serem cúmplices das curiosidades, investigações, descobertas das crianças criando ambientes e contextos onde as linguagens da infância possam se manifestar. As práticas pedagógicas encharcam-se de sentido para as crianças, apenas, se seus interesses, motivações e desafios estiverem nelas contemplados. Isso exige do professor a arte da escuta, do olhar, da apreciação sensível, do compartilhamento e cumplicidade com as lógicas infantis. Lanternas que iluminam “pontos cegos”: o papel do professor Durante muito tempo, em nossas pesquisas e práticas, priorizamos olhar para as relações que os professores Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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estabelecem com as crianças no exercício da docência, definindo ser este o ponto de partida para a qualidade dos vínculos que diariamente firmamos com elas. De fato, muitos são os encontros travados no cotidiano vivido nas instituições educativas. O que tais encontros nos revelam? Para onde nos levam? Algumas vezes, no entanto, predominam desencontros que dificilmente se traduzem em momentos de experiência, no sentido atribuído por Larrosa (2014). Para que os encontros se desdobrem como acontecimentos que estreitam vínculos é necessária a suspensão de uma rotina adormecida, que cumprimos de maneira mecânica, e o despertar da disponibilidade para que os sentidos, o corpo e a mente estejam harmonicamente conectados às situações presentes, concretas, vivas onde se dão as interações e se constroem os vínculos interpessoais. Rotineiramente vivemos uma profusão de instantes estanques, que se atropelam sucessivamente por conta de demandas aparentemente urgentes, imprimindo um ritmo desenfreado, picotado, que não permite pausas, respirações, reflexões. Não há espaço/tempo para a decantação do pensamento, para uma atenção detalhada ao que está acontecendo, ou para simplesmente estar inteiro naquilo que se está fazendo. Essa aceleração acaba por conferir uma qualidade burocrática ao trabalho docente – e ao processo educativo – que, assim, adere a um modo de produtividade e eficácia que mais se parece com um trabalho industrial 7 . Nesse ritmo maquínico o tempo de todos – professores e crianças – é constantemente ocupado com atividades que dificilmente acontecem como Tardif e Lessard (2014) fazem uma distinção pormenorizada entre o trabalho humano e o trabalho industrial afirmando a humanidade da atividade docente como característica fundamental do mesmo. 7

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experiências. São recorrentes os relatos de professoras(es) que sinalizam “a necessidade de repensar a rotina corrida” (J., 05/18), de buscar algo que “fortaleça a vida diária” (J., 06/18), potencializando “[sua] criatividade e aciona[ndo] o olhar para as sutilezas e minúcias do cotidiano” (J., 06/18). Essas falas (re)afirmam nossa crença sobre o quão fundamental é a nutrição da dimensão sensível/estética do próprio sujeito docente. Parece um alerta para que a dimensão do cuidado seja melhor cuidada no dia a dia da instituição educativa. A estética a qual nos referimos “se baseia na experiência direta dos sentidos, legitimando-os como fonte de conhecimento” (RORIZ, 2015, p. 119). Assim como o alimento é necessário à saúde quando pensamos numa dimensão física da existência, a nutrição estética fortalece a dimensão sensível, renova o espírito e abastece as emoções. Nutrir esteticamente – ou sensivelmente – significa “alimentar olhares, percepções, pensamentos” (MARTINS, 2011, p. 313), impregnar nossa subjetividade e nossos conhecimentos das informações que chegam pelas vias sensoriais. Informações que emocionam, causam estranhamento, provocam sentimentos e, assim, não permitem que estejamos indiferentes diante da vida. Nos nutrimos esteticamente quando estabelecemos uma relação vívida de diálogo com o mundo, produzindo interações que desmancham fronteiras entre realidade exterior e interior, ampliam nossas impressões, sensibilidade e senso de pertencimento. Trata-se de uma nutrição que “alimenta a alma”, a dimensão emocional e afetiva. Quando a dimensão estética está subnutrida o mundo se apresenta adormecido, desencantado, anestesiado, assim como aqueles que o vivenciam. Afinal, um depende do outro: pessoas e ambientes se compõem mutuamente (HILLMAN, 1993). O cinema, a música, o teatro, a poesia, a literatura, a arte Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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enfim, são especialmente nutritivos da dimensão estética: provocam as relações sensíveis com o mundo. Talvez por isso, fazem os olhos transbordar, aceleram o coração, suspendem a respiração, fazem suar, tremular as mãos, bambear o corpo. O universo infantil é repleto dessa qualidade encantada de se relacionar com o mundo! Não à toa, as brincadeiras mobilizam tanto as crianças, como portais mágicos, através dos quais a realidade se dobra à imaginação (SOUZA, 1996). A nutrição estética não acontece abstratamente, sem o corpo, sem a existência sensível. Por isso, podemos novamente lembrar da ideia de “experiência” de Larrosa, como “algo que nos acontece” e nos afeta por inteiro. Criar outra relação com o tempo parece ser essencial para estar presente/existente de outras formas, ver outras paisagens, sentir de outras maneiras, produzindo desvios que permitam outros pontos de partida e de chegada nas ações que realizamos cotidianamente. Pausas são necessárias para romper com o encadeamento habitual das ações e, assim, abrir espaço para sentir, refletir, reorganizar nossos empenhos no dia a dia. Mas se estamos buscando inteireza – a pessoa inteira –, devemos pontuar que os conhecimentos humanos têm muitas dimensões. Detectar a necessidade de nutrir a dimensão estética que tem sido silenciada na cultura moderna, não significa abrir mão da dimensão cognitiva ou de substituir racionalidade pela sensibilidade. Trata-se de buscar uma harmonia, construindo conhecimentos que mobilizam tanto o campo das ideias quanto da sensibilidade, que impulsionam ações concretas e significativas. Retornando para a questão específica da docência, sabemos como o dia a dia do trabalho docente é demandante, repleto de cobranças e responsabilidades e responsabilizações. Os professores atuam no “olho do furacão”, mediando exigências e expectativas das crianças, das famílias das crianças, das Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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instituições educativas, da vida profissional e também pessoal (LAGE, 2018). Dessa forma, “a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho” (LARROSA, 2014, p. 26), ficando relegada a momentos raros. Portanto, sem propor rupturas com a rotina anestesiada e adormecida, sobrecarregada e adoecida, o “ciclo de precarização” das experiências continua a girar, impedindo que se estabeleça uma relação outra, cuidadosa, com os processos de aprendizagem vivenciados singularmente pelas crianças e docentes, onde seria possível atentar para as sutilezas das expressões infantis. Acreditamos que um cotidiano que se faz presente com presenças inteiras, propicia “ouvir mais, observar detalhes, descobrir, entender, desconstruir ideias engessadas sobre a infância e a Educação Infantil. Dar ouvidos às ideias das crianças e suas dimensões artísticas” (E., 06/18). Propomos, então, que os professores(as) sejam sujeitos “exposto[s]”, ou seja, “sujeitos da experiência” (LARROSA, 2014, p. 26), que se definem não pela produtividade, eficácia, domínio e controle das aprendizagens das crianças, mas sim por sua “passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2014, p. 25-26) diante do que lhe acontece. Atitudes estas que ampliam o campo de visão e possibilitam compartilhar com as crianças o ambiente da infância. Ostetto (2017) complementa essas ideias quando escreve que (...) para que professoras e professores vejam e ouçam a criança – suas brincadeiras, suas perguntas e descobertas sobre o mundo, suas aprendizagens e expressões que dizem do mundo descoberto e apropriado –, é imprescindível que vejam e ouçam a si mesmos. É fundamental que estejam mobilizados por uma estética cotidiana que provoque a imaginação, que mobilize razão e sensibilidade, pensamento e intuição, no convite à criação. (OSTETTO, 2017, p. 31).

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O trecho acima sintetiza bem o que queremos comunicar: a nutrição estética do próprio sujeito docente é necessária para que o professor de Educação Infantil alcance as crianças e as acompanhe em seus itinerários de descobertas, aprendizagens e desenvolvimento. Para tanto é preciso, em primeiro lugar, que o professor tenha despertado em si mesmo o encantamento pelo mundo. Nos aproximamos aqui da ideia de um professor-curador. A palavra “curadoria” significa “a ação de zelar, de cuidar, de ter atenção com alguma coisa”8; etimologicamente, deriva da palavra latina “curator” que tem como um de seus significados “aquele que tem cuidado e apreço”9. Pensar o profissional da docência como curador é iluminar a dimensão do cuidado na educação, o que demanda os sentidos abertos, disponíveis para zelar pela centralidade das crianças no trabalho pedagógico. É comum ouvir falar de curadoria no campo da arte. O curador artístico seleciona objetos ou obras, as agrupa, organiza, escolhe onde e como exibi-las. São escolhas que carregam o que consideramos uma “intencionalidade sensível” do curador e que constroem para o público um percurso de olhar e maneiras de entrar em contato com determinada produção artística. Segundo Martins (2011, p. 313) a curadoria educativa é “uma atitude, um modo de operar consciente na escolha criteriosa do que levamos [ofertamos para as crianças]”. Assim como o curador artístico desenvolve familiaridade com o(s) artista(s) e suas obras, precisamos, enquanto professores-curadores, desenvolver maneiras de conhecer as crianças, aproximando-nos da essência de suas produções, participando como observadores sensíveis dos processos de aprendizagens, oportunizando De acordo com referências https://www.significados.com.br/curadoria/ 9 Idem acima. 8

disponíveis

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ocasiões em que é possível dar visibilidade às suas expressões, incentivar e ressaltar sua autoria, compreendendo os desejos que motivam suas ações e colocando-nos disponíveis para auxiliá-las em suas concretizações. A curadoria pode operar como holofotes, que, a depender da direção em que estão apontados e da inclinação da luz, iluminam uma coisa ou outra, fazem sombras e também ressaltam o que está sob seu foco. As escolhas do curador interferem no que está sendo iluminado, produzindo formas, contrastes e expressões que introduzem novos elementos àquilo que está sendo mostrado. O curador tem um papel importante naquilo que se torna público sobre determinada produção artística, sobre a forma como esta é vista – a obra e o artista. A noção de professor-curador ressalta o papel do professor de Educação Infantil de cuidar/educar das crianças ao valorizar, acompanhar, respeitar e conferir visibilidade aos processos de aprendizagem, autoria, formas de expressão de cada uma delas e do grupo zelando pela “imagem da infância” (RINALDI, 2017) que é compartilhada com outras pessoas. O professor-curador é coautor e cúmplice das expressões infantis; ele apropria-se de variadas lentes para olhar o cotidiano nas sutilezas, no detalhe e também na paisagem geral. Dispensa atenção ao que não se mostra facilmente, às miudezas, detalhes, sussurros que, mesmo discretamente, reverbera e, de alguma maneira, faz conhecer a criança concreta. Ser professor-curador é apostar na ação do cuidado para dar visibilidade à alteridade da criança, fazendo aparecer sua autoria: o conhecido, o desconhecido, o improvável e até o absurdo. É usar o discernimento para não sufocar os traços peculiares, incompreensíveis, rabiscados, ousados, tímidos, desarmônicos que possam aparecer como paisagens produzidas pelas intensidades infantis. Para ser um bom curador, no entanto, Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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o professor precisa reconhecer ser essa uma especificidade da sua docência e apostar na sensibilização do próprio olhar para ampliar a visibilidade sobre que as crianças já fazem. Um olhar cuidador/curador se propõe a aventurar junto, poetizando o cotidiano ao considerar os percursos tão valiosos quanto as chegadas, e que essas possam ser imprevisíveis. Este é um ato de cuidado na educação de crianças: possibilitar que suas expressões aconteçam para além do que podemos prever dentro das lógicas adultocêntricas que são muitas vezes nossas referências. Assim, temos visto, as experiências de infância se reanimam tanto para professores quanto para as crianças. Roteiro de olhar O olhar tem que ter os atributos principais: lucidez e a reflexidade. Para ser lúcido, o olhar tem que se libertar dos obstáculos que cerceiam a vista; para ser reflexo, ele tem que admitir a reversibilidade, de modo que o olhar que vê possa por sua vez ser visto (ROUANET, 1989, p. 131 apud BRUNO, 2008, p. 18).

Pensamos que seria interessante concluir essa conversa apontando alguns indícios para os quais podemos olhar com maior cuidado e cuidar com mais sensibilidade, a fim de que o cotidiano das práticas pedagógicas na Educação Infantil, possa tornar-se um contexto privilegiado para os acontecimentos da infância, onde se possa vivenciar mais experiências que atividades, mais encontros que desencontros, mais vínculos que antagonismos. O silenciamento dos corpos – tanto de adultos quanto das crianças – nos processos de aprendizagens escolares é uma problemática central com a qual precisamos nos confrontar. É algo que apontamos ao longo de todo o texto, afinal, a dimensão sensível não prescinde do corpo. A esse respeito, sugerimos um Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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olhar crítico para questões que nos parecem rotineiras e estáveis à primeira vista, mas que carecem de reflexão e atenção. Pensando nos espaços e materiais que se têm disponíveis nas instituições de Educação Infantil, podemos nos intrigar com as seguintes perguntas: como são os ambientes que ocupamos com as crianças? Há luminosidade, janelas, arejamento? O chão é um espaço convidativo? Há possibilidade de usar espaços ao ar livre? Como é o mobiliário disponível para as crianças? Há ocasiões de contato com a natureza? Como os espaços e materiais estão organizados? O que está acessível para as crianças? Os materiais disponíveis favorecem as brincadeiras, inventividades, criações das crianças? Estimulam os sentidos? Ampliam as possibilidades de explorar o mundo e os próprios movimentos? Os espaços “falam” sobre as crianças ou delas? Elas se veem representadas neles? Além da qualidade dos espaços, havemos de nos perguntar sobre as regras de uso do mesmo: o que é permitido e o que é cerceado? Por quê? Questionar as regras estabelecidas é oportunidade de refletir sobre a adequação das mesmas às crianças na Educação Infantil. E quanto ao uso do tempo: como o tempo é planejado? Já pensaram sobre isso? Quem define os horários, a duração das atividades? Quais são os tempos livres e os tempos de atividades dirigidas? Qual importância se confere ao tempo em que as crianças brincam sem que haja direcionamento dos adultos? Onde estamos nesse momento? Que atenção podemos dar às crianças quando não estamos orientando seus fazeres? Qual tempo temos, no trabalho, para dirigir uma atenção qualitativa para as crianças singular e coletivamente? É possível escutá-las? Espaço e tempo são fatores essenciais e determinantes das formas como a pessoa pode envolver-se, mover-se, expressar-se. A respeito das produções das crianças: o que elas gostam de Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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fazer? Quando escolhem o quê e como fazer as atividades cotidianas? Quando e como acontecem suas produções? Há atividades artísticas? Qual relação as crianças têm com essas atividades? O que é feito dos desenhos/pinturas/colagens das crianças? Elas escolhem o que deve ficar exposto no mural? Elas levam para casa o que produzem, ou fica arquivado na escola? De que maneira? A respeito das interações, podemos nos perguntar sobre a forma como os dias são organizados, se as atividades planejadas permitem ou inibem as interações das crianças entre si. E mais: o que se visualiza nessas interações? O que as crianças comentam, dizem, inventam, sugerem? Quais conflitos surgem? Como procuram solucioná-los? Como se relacionam com os adultos com os quais convive nas instituições? Qual(is) concepção(ões) temos a respeito de criança e infância? E quanto às brincadeiras: do que as crianças brincam? Qual repertório trazem de casa? Qual aprendem na escola? Cantam? Dançam? Se fantasiam? Correm? Se escondem? Que importância tem isso para suas aprendizagens e desenvolvimento? À medida em que pensávamos esse roteiro, vimos que seria uma infinidade de sugestões que não caberiam nas páginas finais deste ensaio. Nossa ideia é suscitar questões que dialoguem com o leitor, que provoquem incômodos, os deixem com a “pulga atrás da orelha” e retirem da zona de conforto, mas de maneira positiva: mobilizando estranhamentos, empoderando olhares, provocando atitudes inovadoras, instigue mais perguntas, impulsionando ações, sensibilizando à integridade do processo educacional. Uma coisa, no entanto, ficou clara: o cotidiano guarda tesouros que precisamos procurar/encontrar. Os acontecimentos cotidianos são singelos, mas é justamente aí que se desdobram as interações das crianças entre si, com o ambiente, com as regras, com os adultos. É aí que se encontram e se revelam diante de nós Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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o incomum no comum (HILLMAN, 1993, p. 131). Temos, contudo, um instrumento riquíssimo por meio do qual podemos tornar visível o que testemunhamos: a prática regular de registro sobre o cotidiano vivido na Educação Infantil. Seguindo as analogias feitas ao longo do texto, o registro surge aqui como um farol, que norteia as práticas, servindo de referência para iluminar escolhas e clarear caminhos. Registros são documentos que qualificam a prática pedagógica (OSTETTO, 2017). Pensar nessa documentação como parceira e conselheira do vivido, suscita questionamentos: como as crianças aparecem nos registros que fazemos? Eles falam sobre ou das crianças? Dialogam sobre suas especificidades ou apontam suas falhas e incompletudes? Nós estamos presentes neles? De que forma? A memória é o fio que conduz nossas narrativas, tecendo as tramas, enredando atores e costurando os acontecimentos. Os registros produzem memória! Não como reprodutores de ações exatamente como aconteceram, tal qual um quadro congelado, estático, sem a pulsação do movimento, mas como interlocutores, instrumentos de diálogo, reflexão e percepção das sutilezas dos encontros, das propostas, espaços e interações, de aproximação e de distanciamento de si simultaneamente. Aproximação quando fala de si, distanciamento quando revisita-se o que foi falado. Os registros são então, como o “mapa do tesouro”, pois marcam caminhos, constroem possibilidades, convidam à aventura e deixam rastros onde percorremos. Isso não significa estarmos presos a uma rota, mas nos permite situar entre tantas possibilidades, vislumbrando percursos possíveis. O que precisamos ter claro é o quão responsáveis somos por aquilo que é dito nas linhas e entrelinhas... Isso fará toda a diferença na organização dos espaços, nas propostas que serão pensadas para e com as crianças, na qualidade das vivências e das Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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interações, na riqueza dos registros como vias não só de documentar e acompanhar o processo de construção do conhecimento, mas como de oportunizar a reflexão sobre o que oferecemos às crianças enquanto curadores, que não só mediam as relações, mas selecionam materiais, pensam nos espaços e em suas ocupações, interagem com aportes teóricos e convidam a experimentar. O papel da escola pode ser o de fomentar experiências que afetam, e não distribuir um mar de informações fragmentadas que não fazem sentido, nem dialogam com as curiosidades das crianças por não estarem, necessariamente, vinculadas a seus interesses e contextos. Aprendizagem é afetação, que se torna acontecimento estético por atravessar os sentidos, envolver as emoções e se passar nas relações. Dessa forma, os registros tanto podem potencializar a infância e a aprendizagem sobre as crianças, quanto invisibilizar, dependendo do olhar que lhes é conferido e das concepções que o professor tem sobre elas e sobre a Educação Infantil e o seu papel nessa relação. Como toda prática, por melhor intencionada que seja, as concepções e percurso de realização da mesma devem ser desvelados para que não representem apenas mais uma atribuição docente. Registrar, guarda dimensões significativas para a construção de uma memória viva, para a formulação contextualizada da profissionalidade docente na Educação Infantil, para a aproximação das singularidades das crianças e compartilhamento com a comunidade educativa. A não burocratização desse processo, no entanto, implica em conectar a formação docente com a formação da criança e, para tanto, apostamos no despertar da dimensão estética como fonte iluminadora de um processo educacional mais humano, vivo, intenso e profundo em que práticas pedagógicas sejam traduzidas/convertidas em experiências significativas nos Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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processos educacionais, tanto para os adultos, quanto para as crianças. Referências ANDRADE, Carlos Drummond. Boitempo II - Menino Antigo. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973. ANDRADE, Pedro Duarte. Linguagem da infância ou infância da linguagem: a história no pensamento de Walter Benjamin. In: SOUZA, Solange Jobim; KRAMER, Sonia (Orgs.). Política, cidade, educação: Itinerários de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUCRio, 2009. p. 279-288. BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Culturas infantis: contribuições e reflexões. Revista Diálogo Educacional, v. 14, n. 43, set./dez. 2014, pp. 645-667. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=189132834002. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Camara da Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 05/2009, de 17 de dezembro de 2009. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009. BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Definição de curadoria: os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial. In: BITTENCOURT, José Neves (Org.); JULIÃO, Letícia (Coord.). Cadernos de Diretrizes Museológicas II: mediação em museus curadorias, exposições, ação educativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, Superintendência de Museus, 2008. CANÁRIO, Rui. A escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed, 2006. CORSARO, Willian. A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educ. Soc., Campinas, v. 26, n. 91, p. 443-464, Maio/Ago. 2005. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br CORSARO, Willian. A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011. DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação do

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Experiências sensoriais, expressivas, corporais e de movimento na Educação Infantil10 Márcia Buss-Simão Para a escrita desse texto buscamos reunir reflexões acerca de situações e cenas cotidianas vividas na docência na Educação Infantil que envolvem a dimensão corporal e suas implicações na organização e nos arranjos espaciais e temporais e, especialmente, no que se refere: a) aos cuidados corporais, b) as relações de gênero, sexualidade e étnicas; c) as experiências com o movimento e com o corpo expressivo. Nesse sentido, dirigimos as reflexões, mais detidamente, às ações docentes que privilegiam as crianças pequenas, desde bebês, pois, pesquisas recentes têm apontado que a docência com bebês, difere da docência com crianças maiores, trata-se de uma docência que envolve ações de cuidado e educação que se entrelaçam com o corpo e as emoções de maneira mais intensa. Essas relações, segundo Schmitt (2008) e Duarte (2011), constituem-se por meio de dimensões educativas, que consolidam a especificidade da ação docente das professoras de bebês, sobretudo ao que se refere às formas comunicativas, a

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Parte das reflexões desse texto compuseram o produto resultante da consultoria prestada ao MEC-Coedi/UNESCO em apoio à consolidação do documento de referência da Base Nacional Comum Curricular para Educação Infantil. Gostaria de deixar o registro de que a concepção de corpo, que aqui apresentamos, não coaduna com a concepção de corpo presente na versão final da BNCC, da qual fomos consultora, antes do golpe jurídico e parlamentar e, que teve sua redação alterada. A alteração da redação da BNCC retirou a dimensão cultural e simbólica do corpo, dando privilégio a uma concepção de corpo como natureza, em suas dimensões biológicas, físicas e motoras, enfim um corpo a ser educado e controlado pelo viés da higiene e do treino de exercícios e movimentos.

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autonomia e a necessidade intensa de ações que envolvem a dimensão do cuidado corporal e emocional. Para organização da escrita, iniciaremos com uma breve contextualização de como compreendemos os fundamentos conceituais referentes ao corpo com o objetivo de justificar, para fins didáticos, um desmembramento das dimensões, ou faces, que envolvem o corpo em quatro dimensões: Corpo como conhecimento; Corpo como expressividade-comunicativa; Corpo como experiência espaço-temporal; Corpo como identidade e direito ético. Importante ter em atenção que o desmembramento visa somente dar visibilidade a complexidade que envolve o corpo e não tem a intenção de separar o que é uma unidade: o corpo. Contextualizando os Fundamentos Conceituais Historicamente, o corpo ora foi concebido como herança da natureza, biológica, ora como herança cultural, social e histórica. Sendo que, até muito recentemente, estas duas dimensões vinham sendo estudadas separadamente, sem se considerar as mútuas relações entre elas. Por exemplo, quando se concebe o corpo como natureza se acredita na homogeneidade e que todos os corpos se desenvolvem da mesma forma, como se a ‘carga’ genética fosse a única a determinar o que temos condições para desenvolver, aprender e fazer. Ao se conceber o corpo como natureza se desconsidera a determinação de outras dimensões como classe, gênero, etnia, cultura, etc. na constituição desse corpo. Quando se concebe o corpo como natureza a posição e perspectiva educativa que se assume é de uma educação também homogeneizadora, ou seja, igual para todas as crianças a fim de ensinar, treinar, controlar e até reprimir e castigar esse corpo. Essa perspectiva constituiu-se como hegemônica no Brasil, especialmente com o advento do movimento higienista, extrapolando inclusive o Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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âmbito médico e político (SOARES, 1994; 1998; 2001; GONDRA, 2002; ROCHA, 2000, 2003). Em contrapartida a essa perspectiva, o corpo foi concebido como construção histórica, social e cultural, em que se considera que, essas dimensões são determinantes na sua constituição, ou seja, o momento histórico, a sociedade e a cultura em que se vive são fatores que influenciam e determinam os modos de viver e educar o corpo. Com base nessa concepção, por exemplo, se confere valor para as especificidades que constituem os modos próprios de viver o corpo das meninas e dos meninos, das crianças pobres e ricas, das crianças com necessidades educativas, das crianças indígenas, ribeirinhas e rurais. Essa perspectiva se tornou um contraponto teórico, tencionando os reducionismos e determinismos biológicos. Entretanto, na ânsia de legitimar as determinações sociais, culturais e históricas na constituição do corpo, deixou-se de considerar a inegável parcela de contribuição da determinação biológica, repercutindo numa certa biofobia, como destacam Almeida (2002), Schilling (1996, 2008), Turner (1992, 1996, 2009) ao analisar a produção das ciências humanas e sociais, a qual, durante décadas, mostra elementos de horror a tudo que lembra o biológico. A busca em compreender, de modo menos dicotômico e fragmentado o corpo é uma necessidade apontada por muitos pesquisadores 11 que afirmam ser preciso compreender o corpo como uma interconexão entre natureza e cultura, em que ambas mantêm relações de mútua produção. Tais estudos destacam que o ser humano deve ser considerado em sua inteireza biocultural, pois se constitui, ao mesmo tempo, como totalmente biológico e totalmente cultural; dito de outra forma, no ser humano, o Entre tais pesquisadores podemos citar: Almeida (2002); James, Jenks e Prout (2000); Le Breton (2006, 2009); Ribeiro (2003); Silva (1999, 2001); Schilling (1996, 2008); Turner (1992, 1996, 2009). 11

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biológico se constitui na e pela cultura. É importante compreender que essas dualidades e reducionismos trouxeram, e ainda trazem, limitações no âmbito das intervenções sociais, em especial, para a educação, pois, desconsideram a complexidade presente ao não levarem em conta que o corpo se realiza na interconexão entre natureza e cultura, estando presente em sua constituição elementos dessas duas heranças. Os efeitos desse modo dicotômico de compreender o corpo tem repercussões até hoje também para a docência na Educação Infantil. Por exemplo, é com base numa concepção de corpo como herança da natureza e biológica que nesta primeira etapa da educação básica, as atividades ligadas ao corpo, à higiene, alimentação, sono das crianças são menos valorizadas, ou até depreciadas, pois envolvem tarefas tais como alimentar, dar banho, trocar fraldas, manter contatos corporais constantes com as crianças e estabelecer formas de comunicação cuja predominância reside em manifestações emocionais-corporais. Essas ações, parte integrante da especificidade da docência eram - e ainda são em alguns contextos - desvalorizadas e diferenciadas das atividades tidas como pedagógicas, estas sim, entendidas como sérias e merecedoras de atenção e valor. Ao lidar, separadamente, com essas duas concepções a tendência é que se elaborem reducionismos e determinismos sobre as noções de corpo e sobre as experiências sensoriais, expressivas e de movimento, compreendendo as heranças da natureza e da cultura sempre como oposições. Também Shilling (1996) traz essa concepção de que o corpo é ao mesmo tempo natural e cultural, argumentando que este deveria ser considerado um fenômeno biológico e social inacabado que se transforma, dentro de certos limites, como resultado da sua entrada e participação em sociedade. No que se refere a questão da dualidade natureza e cultura Berger e Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Luckmann (1985, p. 71) contribuem afirmando que: “Desde o nascimento o desenvolvimento orgânico do homem, e na verdade uma grande parte de seu ser biológico enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência socialmente determinada”. Tendo em conta essa interferência social que ‘molda’ a nossa humanização e, tendo em conta a diversidade social e cultural, é possível uma infinidade de variações. Com base nessa ideia, Berger e Luckmann (1985) afirmam que é possível dizer que o homem tem uma natureza, mas que melhor seria dizer que o homem constrói sua própria natureza e a si mesmo, não sendo esse processo solitário, mas, um empreendimento social, ou seja, uma formação sociocultural. Também Le Breton (2006, p. 8), aponta essa imersão das disposições antropológicas no campo simbólico e nas relações com os outros como constitutivo da natureza e da cultura no homem: “Ao nascer, a criança é constituída pela soma infinita de disposições antropológicas que só a imersão no campo simbólico, isto é, a relação com os outros, poderá permitir o desenvolvimento”. Assim, moldado pelo contexto social e cultural o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída. Por meio do corpo se evidenciam as [...] atividades perceptivas, mas também a expressão dos sentimentos, cerimoniais e ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc. (LE BRETON, 2006, p. 7).

A partir dessa concepção de corpo como interface do biológico e do social, histórico e cultural na Educação Infantil, buscamos apresentar quatro dimensões, ou faces como denominou Vigarello (2003) 12 , que constituem o corpo e que A definição e delimitação dessas quatro dimensões surge das leituras, pesquisas e reflexões que temos realizado ao longo de 10 anos sobre corpo e 12

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devem ser observadas nas ações pedagógicas com as crianças, desde bebês. Por ser somente um desmembramento para fins didáticos13, consideramos importante ter em conta que as quatro dimensões também estão interligadas, ou seja, se entrelaçam, se entretecem e se complementam: Corpo como conhecimento; Corpo como expressividade-comunicativa; Corpo como experiência espaço-temporal; Corpo como identidade e direito ético. A dimensão que nomeamos corpo como conhecimento se refere aos conhecimentos com o corpo. Esse conhecimento envolve tanto perceber, conhecer e significar as sensações, funções e movimentos internos do corpo, quanto os desafios corporais e o domínio de movimentos que permitem agir sobre os objetos e artefatos culturais e se relacionar socialmente numa determinada sociedade. O processo de perceber, conhecer e significar as sensações, funções e movimentos internos do corpo demanda atenção ao seu corpo, essa atenção pode se dar por intermédio do outro que ‘sente junto’ ao perceber, nomear e significar. Por exemplo, o processo de compreender as próprias sensações e desconfortos de sono, de fome, calor, de irritação, de alegria e os efeitos que causam em nosso corpo como batimentos cardíacos acelerados, dores, rubores, sudorese, tremores, bocejos e também os movimentos intestinais internos, precisam ser aprendidos, significados e nomeados e se referem a uma gama de conhecimentos e experiências sensoriais que adquirimos sobre e infância e, parte inicialmente, da definição realizada por Vigarello (2003) a fim de delimitar a legitimidade do corpo em que ele nomeia essa legitimidade como faces da existência corporal: 1) face do princípio da eficácia; 2) face do princípio de propriedade; 3) face do princípio da identidade. Além de renomear (buscando uma aproximação com a área da educação infantil) e agrupar, julgamos necessária a criação de mais uma face/dimensão. 13 Reafirmamos que o desmembramento em dimensões, ou faces, visa dar visibilidade para a complexidade que envolve o corpo e, de modo algum, visa compartimentá-lo ou separá-lo.

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com o corpo. Os conhecimentos referentes ao domínio de movimentos que permitem agir sobre os objetos e artefatos culturais e se relacionar socialmente, fazem parte de uma concepção que se diferencia da concepção do movimento funcional e mecânico. Trata-se da experiência de viver o movimento, ou seja, um bebê ao aprender a caminhar não tem noções teóricas sobre inclinação e ângulos do corpo, de distância e força que tem que empregar nos pés e nas pernas ou da função de equilíbrio dos braços. Para aprender a caminhar o bebê precisa viver esse movimento, precisa cair e levantar muitas vezes e, ao viver diversas vezes essa experiência de movimento, vai aprendendo a equilibrar o corpo, a controlar os movimentos dos pés, das pernas e dos braços, do tronco, da cabeça, enfim, vai aprendendo e tendo domínio sobre o conhecimento do caminhar. Para Kunz (2005) esse modo de viver o movimento prescinde de três (3) premissas: primeiro tem que ser vivida por um ator, por um sujeito social que vai experimentar os movimentos; segundo, esse movimento deve ser vivido em uma situação concreta que faça sentido para esse ator, uma situação concreta também no contexto social e cultural em que esse movimento é realizado e; terceiro, que haja sentido e significado que orienta as ações e os movimentos vividos. Nessa concepção, o movimento adquire uma forma de conhecimento, de compreender o mundo pela experiência com o corpo. Para que as crianças possam viver experiências educativas que promovam e ampliem as possibilidades de aprender esse conhecimento e domínio com o corpo é preciso intervenções educativas, incluindo a organização espaço-temporal, que possibilite gestos e movimentos amplos e finos, expressivos, ritmados ou livres, de modo a permitir às crianças construírem conhecimento sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural. Esse Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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conhecimento advém da possibilidade de experienciar gestos e movimentos como sentar, engatinhar, ficar de pé, caminhar, correr, saltar, rolar, alongar, escalar, rastejar, dar cambalhotas, escorregar, puxar, empurrar, bater palmas, pegar e segurar objetos, se alimentar, sentir cheiros, odores, escutar o outro, ouvir sons e barulhos, vozes, falar alto, baixo, gritar, sussurrar, fazer ruídos e sons e repertórios da cultura corporal. A segunda dimensão ou face nomeamos corpo como expressividade-comunicativa que se refere ao corpo expressivo como comunicação do corpo e com base em Le Breton (2009, p. 46) compreendemos que: “A substância semântica do corpo não é o som, mas os gestos, mímicas, posturas, olhares, deslocamentos e os distanciamentos do outro ou de um objeto”. O corpo como expressão e comunicação revela nossa singularidade em relação ao outro, nossa identidade no modo como nos relacionamos corporalmente com o outro, revela e informa também se estamos dormindo bem, alimentando e exercitando de forma saudável, se estamos doentes, se estamos tristes ou alegres, tensos ou maravilhados. Para que essa dimensão do corpo expressividadecomunicativa seja considerada nas instituições de Educação Infantil é preciso, primeiramente, observar as possibilidades de expressão, os repertórios, discursos e gestos referentes ao corpo oferecidos às crianças e as famílias nas propostas pedagógicas diárias, nas decorações das salas, nas histórias contadas, nas músicas, danças, brincadeiras e brinquedos que temos proporcionado e privilegiado. Para além da necessidade de ampliação dos repertórios artístico-culturais na formação docente das professoras e dos professores, entendemos ser imperativo questionar a influência da cultura televisiva e midiática na definição e impregnação dos padrões de corpo, de movimento, de desejos, das necessidades e estética corporal. Isso Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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possibilita um planejamento intencional na medida em que propomos repertórios de conhecimentos referentes ao corpo, aos gestos e as expressões que não só reproduzam esses da cultura televisiva e midiática. Essa dimensão do corpo expressivo-comunicativo exige, portanto, uma organização educativo-pedagógica que envolve dança, música, teatro, artes circenses, jogos, brincadeiras de faz de conta, de roda, tradicionais, folclóricas e de tradições culturais brasileiras e de cultura local. Podemos sugerir às crianças, como indica Marques (2003) que brinquem com seus corpos e suas possibilidades de expressão, que inventem suas histórias, dramatizações e danças a partir de suas histórias corporais. Que percebam como é dançar lentamente escutando músicas rápidas, dançar rápido ao som de músicas lentas, que lancem mão de adereços (chapéus, luvas, colares, saias, bengalas, etc.) e materiais não estruturados como tecidos, elásticos, fitas para que criem expressões, histórias, movimentos e danças com eles em duplas, trios ou grupos maiores incluindo aquelas com necessidades especiais. Que observem os movimentos de objetos do cotidiano como o de carros, máquina de lavar roupas, esguichos, pessoas, vento movendo as folhas, lenços ou fitas e os refaçam com o corpo. A terceira dimensão que nomeamos de corpo como experiência espaço-temporal se refere às relações e experiências corporais entre as pessoas, com espaços, tempos e objetos. A partir de Hall (1977, 1994) e sua definição de proxêmica, ou seja, o uso do espaço pessoal num meio social enquanto produto cultural específico, ao observar como as crianças se colocam espacialmente em relação às outras e aos adultos nas suas interações, é possível evidenciar que elas se colocam numa distância íntima ou pessoal – aquela mantida nos contatos íntimos. A análise de como as crianças se colocam espacialmente em relação às outras, torna evidente a centralidade do corpo na Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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distância social íntima assumidas pelas crianças que envolve o toque, o tato, o afeto e a proximidade nas relações que elas estabelecem entre si e com os adultos. Ao observar as crianças podemos perceber que elas tocam o corpo do outro, chegam bem perto a ponto dos rostos se tocarem para juntas verem algo, em que parecem experimentar ou compartilhar a mesma experiência. Esse modo de viver das crianças contraria as ordens de civilidade segundo Norbert Elias (1994, p. 200), já anunciadas em 1774 por La Salle, em seu manual de Civilité, em que o autor indica que a ânsia das crianças de tocarem objetos, roupas ou outras coisas deve ser corrigida “[...] e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos”. Esses preceitos fazem parte de todo um processo civilizador, no qual, “[...] o olho, assume importância muito específica”, retirando de cena a experiência, o envolvimento sensorial com as coisas e os objetos e, sobretudo, com o corpo. As crianças, no entanto, contrariam esse pressuposto civilizador e, nos atreveríamos a dizer de ‘morte da experiência’, pois é por meio dessa experiência que elas conhecem o mundo e a si mesmas e se envolvem sensorial e emocionalmente com seus pares e adultos e, também com os espaços, objetos e materiais. Para que, nos contextos de Educação Infantil, essa dimensão seja privilegiada é preciso uma organização educativopedagógica que amplie e diversifique as possibilidades das crianças, desde bebês, de explorarem os espaços com o corpo e não somente conter o corpo nos berços e bebês confortos, nas cadeiras e mesas da sala, nas mesas do refeitório, nas almofadas e cadeiras da biblioteca, nas filas pelos corredores e passeios. Mas sim, espaços e tempos, que permitam às crianças experienciar os espaços com o corpo e um amplo repertório de movimentos, gestos e mímicas com o corpo - individualmente, em pares, trios, grupos e coletivamente - em espaços e tempos intencionalmente organizados com bolas, pneus, mangueiras, cordas, arcos, escadas, Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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túneis, labirintos, fantasias, adereços, água, terra, ar e até fogo e outros materiais não estruturados, sempre norteadas pelas brincadeiras e interações. Nessa dimensão do corpo como experiência espaço-temporal o tempo da experiência com o corpo se distingue do tempo da ‘atividade’ sobre o corpo que tem uma perspectiva tradicional e conservadora, sendo recortado, esquadrinhado: o tempo para correr, para pintar, desenhar, dormir e que tem uma intenção do controle do corpo. O tempo no corpo também se faz presente entre as crianças por meio da categoria idade como indicam James, Jenks e Prout (2000), pelo fato dos corpos das crianças se constituírem de uma materialidade instável, faz com que as crianças precisem chegar a um entendimento do corpo como em constante mudança, mudanças essas aplicáveis tanto a si mesmas como às outras crianças. Essa relevância decorre do fato de que, especialmente na infância, as alterações e mudanças no corpo são não apenas mais visíveis como, por exemplo, seu crescimento acentuado, mas também que todos esses processos são definidores da sua identidade social e pessoal. Além disso, essas mudanças podem assumir diferentes significados em cada contexto ou situação. Por exemplo, quando crianças de 2 a 3 anos interagem com um grupo de crianças do berçário, elas podem se considerar ou se perceber grandes ao serem comparadas com as crianças do berçário, sentindo-se em tamanho corporal, maiores que os bebês. Por outro lado, quando elas interagem com crianças de 5 e 6 anos elas voltam a ser, em tamanho corporal, as menores. Desse modo, essa experiência do tempo que se materializa no tamanho corporal das crianças é, na infância, um recurso essencial na constituição e na ruptura da identidade, com o qual, as crianças aprendem a lidar, algumas vezes, em uma lógica de conformação e integração aos estereótipos, outras vezes, de forma estratégica e de subjetivação, processo que requer e traz muitos aprendizados e conhecimentos Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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para elas (BUSS-SIMÃO, 2013). A quarta dimensão que nomeamos corpo como direito ético e identidade se refere ao corpo como “[...] propriedade: posse, pelo corpo, de um espaço e, nele, de um território totalmente pessoal, ou seja, apropriação do ser no mais íntimo de si, nos limites de sua dimensão biológica” (VIGARELLO, 2003, p. 22). O corpo como direito ético e identidade deve ser compreendido como um território inviolável que jamais deve ser o destinatário de negligência, de violência, de maltrato, de punição e castigo. Refere-se a uma dimensão relacionada à socialização, interação e afetividade, em que a constituição do corpo se dá num entrelaçamento com a emoção, a cognição e a linguagem, pois a visão que temos do nosso corpo, as formas como sentimos esse corpo vem da relação com o outro. São os outros que conformam nosso corpo em categorias cognitivas, éticas e estéticas. Para tanto, é preciso uma organização pedagógica que possibilite intervenções educativas que proporcionem e contemplem, sistematicamente, nas ações docentes, possibilidades das crianças, desde bebês, viverem experiências que respeitem as diferenças sexuais, físicas, de gênero, étnicas, regionais, etc. Essa dimensão do corpo como identidade também se aproxima da ideia de corporalidade14, assim, o corpo não é uma substância fixa dada pela ‘natureza’, mas sim performado, praticado e, nessa prática, a pessoa se constitui pela corporalidade. Em nossa sociedade, exemplos semelhantes podem ser observados no que se refere ao gênero e etnia e também ao se portar uma tatuagem ou um piercing, que é também uma forma de Corporalidade é um termo presente nos estudos antropológicos que envolvem o corpo e a noção de pessoa, que envolve desde as maneiras como os homens sabem servir-se de seus corpos, até as representações coletivas, pelas quais a vida social se inscreve no corpo. 14

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se constituir como um determinado tipo de sujeito, ou pessoa, ou identidade. É preciso lembrar que as formas de educação e cuidado de crianças pequenas não são ‘naturais’, mas sim marcadas pelas condições históricas, sociais, culturais, econômicas, geográficas. São marcadas também pelas concepções de criança, de infância e de corpo dos adultos e da sociedade onde estão inseridas. Por isso, é preciso atenção as particularidades da educação corporal das crianças, ligadas às tradições impostas, aos modos como nos referimos ao corpo, os modos de treinamento, as ‘maneiras’ e os ‘jeitos’ de falar, alimentar, trocar, assear, brincar, dormir, etc. Assim, como a forma como cuidamos de nosso corpo ou do corpo do outro, como nos vestimos ou vestimos as crianças, desde bebês, como arrumamos o cabelo; como damos banho, alimentamos, seguramos as crianças; como as sentamos e retiramos das cadeiras, do vaso sanitário, da cadeira de rodas; como deitamos e retiramos os bebês do berço, da rede ao longo do dia numa creche ou pré-escola, revelam tradições, comportamentos, concepções de criança, de infância e também de higiene, de relações, afetos, poder, entre outros. Todas as ações de cuidado e educação são em sua essência, práticas socioculturais apropriadas pelos seres humanos nas relações constituídas com o outro. Ao estabelecer ações de cuidados com o corpo das crianças estamos inserindo e enunciando hábitos sociais, carregados de sentidos construídos em nossa cultura que vão constituindo sua identidade. Para tanto, é preciso uma organização educativopedagógica que promova ações que permitam às crianças conhecer a si e aos outros, num processo de reconhecimento da sua localização social, entrelaçada com suas identidades de gênero, étnica ou raça, classe, religião e sexual que estão marcadas em seus corpos. Nesse sentido é preciso viver com as crianças, experiências Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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ampliadas e diversificadas com o corpo, que proporcionem o reconhecimento e compreensão de suas sensações, de sua intimidade e afetividade nas relações com os adultos e com seus pares, por meio de massagens, banhos coletivos de mangueira, toques de carinho, em momentos de sentir a respiração, o pulsar e as batidas do coração, os paladares, os perfumes e odores, os sons e ruídos do corpo e da natureza, as sensações de calor, frio, seco e molhado. Ou seja, proposições sistemáticas nas ações e relações com as crianças que promovam uma educação para a sensibilidade corporal, para as trocas de afetos como: abraços, carinhos, massagens entre as crianças do grupo e com as outras de outros grupos e faixas etárias. Experiências movimento

sensoriais,

expressivas,

corporais

e

de

A Educação Infantil, desde a LDB é reconhecida como primeira etapa da educação básica e tem como finalidade o desenvolvimento integral das crianças de zero a cinco anos e 11 meses de idade, em seus aspectos físico, afetivo, intelectual, linguístico e social, complementando a ação da família e da comunidade. Essa concepção de educação, fundada no paradigma do desenvolvimento integral da criança, dimensiona suas finalidades de educação e cuidado considerando as formas como as crianças, nesse momento de suas vidas, vivenciam o mundo, constroem conhecimentos, expressam-se, interagem e manifestam desejos e curiosidades de modo bastante peculiares. Essa concepção requer que as ações educativas sejam intencionalmente planejadas e permanentemente observadas, registradas e avaliadas e devem considerar a integralidade e indissociabilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural das crianças. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Assim, como já asseguradas nas DCNEI de 2009, as práticas pedagógicas devem ocorrer de modo a não fragmentar a criança nas suas possibilidades de viver experiências, na sua compreensão do mundo feita pela totalidade de seus sentidos. Desse modo, o movimento, a linguagem, o pensamento, a afetividade e a sociabilidade são aspectos integrados e se desenvolvem a partir das interações que, as crianças, desde bebês, estabelecem com diferentes parceiros, a depender da maneira como suas capacidades para construir conhecimento são possibilitadas e trabalhadas nas relações e situações em que elas participam. O que repercute numa responsabilidade de dirigir o desenvolvimento da ação educativa que envolve, como indica Rocha (2011, p. 375) (...) um compromisso com a valorização das culturas e experiências infantis em direção a uma apropriação de conhecimentos no âmbito mais ampliado e plural, porém sem finalidade cumulativa ou com caráter de terminalidade em relação a elaboração conceitual.

As proposições e discussões que se seguirão partem da concepção de Educação Infantil, mencionada aqui brevemente, tendo em conta, os fundamentos conceituais apresentados sobre o corpo, pretendemos detalhar o Inciso I do Art. 9º das DCNEI, o qual indica que as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira, garantindo experiências que: “promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança” (BRASIL 2009). Para o detalhamento buscamos reunir reflexões de cenas e situações cotidianas vividas na docência na Educação Infantil que envolvem as dimensões ou faces do corpo (Corpo como conhecimento;

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Corpo como expressividade-comunicativa; Corpo como experiência espaço-temporal; Corpo como identidade e direito ético) e suas implicações na organização e nos arranjos espaciais e temporais e, especialmente, aos alusivos: a) aos cuidados corporais, b) as relações de gênero, sexualidade e étnicas; c) as experiências com o movimento e com o corpo expressivo. Garantir práticas pedagógicas em que as interações e a brincadeira possibilitem experiências que promovam o conhecimento de si e do mundo por meio das linguagens, ampliando as experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança, requer que superemos uma concepção de criança e de corpo apenas como natureza. Essa concepção, de criança e corpo como natureza, embasou durante muito tempo o processo de educação e institucionalização da infância. O corpo das crianças tornou-se meio e base da educação ao longo da história 15 , sendo objeto constante de contenção, disciplinamento e higienização, ou sendo explorado como recurso pedagógico a fim de que as crianças alcançassem sucesso no domínio do corpo, predominantemente no aspecto funcional, como meio para o desenvolvimento das aprendizagens cognitivas. Ao longo da história da educação, as formas instituídas de intervir sobre os corpos ou de reconhecer a intervenção, podem variar, conforme a perspectiva assumida, no entanto, como destaca Louro (2000, p. 61): “Ilusório será acreditar, contudo, que, em algum momento, as instâncias pedagógicas deixaram de se ocupar e se preocupar com elas”. Por essa razão, se faz necessário que a dimensão corporal e suas implicações na organização e nos 15

Ver Soares (1994; 1998; 2001); Gondra (2002); Rocha (2000).

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arranjos espaciais e temporais e, particularmente, no que se refere aos cuidados corporais, as relações de gênero e sexualidade, as experiências com o movimento e com o corpo expressivo façam parte das reflexões e das ações de professoras e professores de Educação Infantil. A materialidade inegável do corpo sempre o tornou central nos processos educativos, todavia, é preciso inverter, ou talvez subverter o modo como ele tradicionalmente foi compreendido, ou seja, como meio de submissão, controle ou recurso pedagógico. Numa perspectiva de educação que visa a emancipação das crianças o corpo continua sendo central, pois ele é base de toda experiência social, conforme indica Le Breton (2009), portanto como já pontuamos em outros momentos é imperativo “[...] conceber as crianças e sua dimensão corporal como potencialidades e não mais como uma natureza que precisa ser “controlada”, moldada, educada” (BUSS-SIMÃO, 2010, p. 309). É preciso compreender que o nosso corpo e, o das crianças, expressa e carrega consigo não somente características e semelhanças físicas e biológicas, mas expressa e carrega marcas da localização social, ‘fala’ quem somos, o que experienciamos e vivemos em relação ao gênero, a etnia ou raça, classe, religião e sexualidade. O corpo é e revela nossa singularidade em relação ao outro, nossa identidade pessoal e social. Por meio do corpo, dos gestos, dos movimentos, das sensações, as crianças, desde bebês, expressam sentimentos, exploram o mundo, estabelecem relações que implicam em conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural. As crianças, quando ingressam no mundo, não dominam a linguagem que é utilizada pelos adultos, a linguagem no sentido de uma estrutura simbólica, ou seja, que é social, histórica e cultural, ou seja, não é natural e, por isso, utilizam centralmente o corpo para se expressar e se comunicar e, nesse processo vão, gradativamente, conhecendo e aprendendo a Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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utilizar outras linguagens. Os bebês talvez sejam os que mais intensamente vivem as experiências por meio do corpo, por ser este seu meio privilegiado de conhecer o mundo, fato que demanda um olhar sensível e atento das profissionais para o corpo das crianças. A centralidade do corpo, nos modos de viver das crianças, desde bebês, ganha na Educação Infantil ainda mais relevância, pois, ele é o destinatário das práticas pedagógicas de cuidado e educação, de modo que é necessário garantir experiências que promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas e corporais que contemplem a individualidade e o respeito pelos ritmos e desejos das crianças. O corpo ganha relevância também, pois a ação docente é baseada nas relações e nos contatos corporais constantes, mais intensamente ainda com os bebês. Essa centralidade, como característica da ação educativa, envolve a dimensão do cuidado como ética e ganha consistência com a compreensão do entrelaçamento entre corpo, linguagem, pensamento e emoção na constituição do ser humano. É importante lembrar que as ações de cuidado e educação são todas, em sua essência, práticas socioculturais apropriadas pelos seres humanos nas relações constituídas com o outro e, por isso, sua relevância para a docência na Educação Infantil. Por exemplo, quando a professora estabelece ações de cuidado com as crianças, está inserindo-as e lhes enunciando hábitos sociais, carregados de sentidos constituídos em nossa cultura que ultrapassam o ato de saciar uma necessidade biológica de nutrir ou assear o corpo. O modo como essa relação é estabelecida pela professora contribui para a construção da visão que as crianças têm de seu corpo. As maneiras como as crianças, desde bebês, sentem e vivem seus corpos, se dá na relação com o outro, nesse caso, em contextos de educação coletiva, esses outros Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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são particularmente as professoras e professores e também as demais crianças com as quais elas convivem. As maneiras como sentimos e percebemos nosso corpo se dá nas relações e nos modos como se referem a ele e o nomeiam, nos modos como cuidam de nosso corpo, da higiene, dos cabelos, do vestuário, nos modos e maneiras como preparam, servem e consomem os alimentos, nos modos de organizar e cuidar da sala que, segue não apenas uma lógica de utilidade prática de manter a vida cotidiana, mas uma estética e um sentido de comunicação e expressão de identidade, do lugar e papel social, de classe, de gênero, de crenças e costumes que estão aí envolvidos. Por exemplo, é por intermédio do outro que um bebê percebe e, mais tarde significa, os seus próprios desconfortos de sono, de fome, calor e também os movimentos intestinais internos. É essencial que esse processo seja respeitoso na direção de uma educação que emancipe essa criança que vai aprender a significá-las e nomeálas como sendo sensações associadas à eliminação do xixi ou cocô, à fome, ao sono, ao desconforto do calor ou do frio. Nesse processo, o bebê pode primeiro prever a sensação, observar seu resultado e ao mesmo tempo nomeá-la, para, posteriormente, conseguir prevê-la e adquirir um controle corporal. Essas são situações cotidianas vividas nas instituições de Educação Infantil em que se percebe o entrelaçamento das experiências do corpo, da linguagem, da cognição e da emoção na constituição do ser humano. Nessas ações, embora sejam direcionadas ao corpo, estão misturadas e interligadas as dimensões biológicas, psicológicas e sociológicas, sempre permeadas pelo simbólico de cada cultura. Essa perspectiva educativa de que devemos garantir na Educação Infantil práticas que promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação e diversificação de experiências sensoriais, expressivas, corporais também está presente no texto Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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do Parecer CNE/CEB nº 20 de 2009 que fundamenta as DCNEI de 2009. No texto do parecer encontramos a ressalva de que as práticas envolvidas nos atos de alimentar, banhar, trocar fraldas e controlar os esfíncteres, na escolha do que vestir, na atenção aos riscos de adoecimento mais fácil nessa faixa etária, no âmbito da Educação Infantil, não são apenas práticas que respeitam o direito das crianças de serem bem atendidas nesses aspectos e de terem cumpridas e respeitadas sua dignidade como pessoa humana; são também práticas que respeitam e atendem ao direito das crianças de se apropriarem, por meio de experiências corporais, dos modos construídos culturalmente de alimentação e promoção de saúde, de relação com o próprio corpo e consigo mesma, mediada pelas professoras e professores, que, intencionalmente, planejam e cuidam da organização dessas práticas. Enfim, por meio dessas experiências, as crianças vão constituindo suas singularidades em relação ao outro, suas identidades pessoais e sociais, enfim, vão constituindo o conhecimento de si, do outro e do mundo, revelando a presença e a centralidade do corpo em suas diferentes dimensões (Corpo como conhecimento; Corpo como expressividade-comunicativa; Corpo como experiência espaçotemporal; Corpo como identidade e direito ético). Por meio das experiências corporais, meninos e meninas também vão construindo suas identidades de gênero e étnicas, pois, o corpo expressa e carrega consigo marcas do que experienciam e vivem em relação a essas categorias sociais. Sendo necessário um olhar atento para as questões étnicas, de gênero e sexualidade nas ações docentes na Educação Infantil. Entre as experiências coletivas que as crianças vivem na Educação Infantil, as relações de gênero atravessam as questões ligadas ao corpo, pois no dia a dia, meninos e meninas são educado/as e ensinado/as, desde bebês, a corresponderem as expectativas de modelos pré-determinados e excludentes do que significa ser Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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homem ou mulher em cada cultura ou sociedade e, conforme os estudos de gênero têm indicado, o modo como se aprende a diferenciar e a hierarquizar os sexos. As relações de gênero, precocemente, fazem parte das relações das crianças tanto no âmbito familiar como no âmbito institucional, sendo utilizadas com muita frequência pelos adultos para classificar, dividir, seriar e juntar as crianças. Por exemplo, a forma como as famílias ou as professoras e os professores conversam com as meninas ao elogiar sua meiguice, ao demandar cuidados e atenção com sua aparência ou, quando pedem para uma menina a tarefa de ajudar na limpeza ou, nos tipos de brinquedos que lhes são permitidos e disponibilizados. Por outro lado, para os meninos a forma como os adultos justificam as ações sem capricho, ou solicitam aos meninos para que carreguem algo ou, nos tipos de brinquedos que lhes são permitidos e disponibilizados, já demonstram expectativas diferenciadas para os gêneros. Nesse processo, também o que as famílias e as professoras e professores valorizam para as meninas é, muitas vezes, depreciado para os meninos e vice-versa. É possível observar o controle da agressividade e dos bons modos para as meninas, já para os meninos são valorizadas a força e a habilidade motora e quando um menino enfatiza, em suas relações, a sensibilidade, a afetividade e as emoções geram olhares ‘suspeitos’, uma vez que contraria a concepção de masculinidade fortemente apoiada em dualidades. Por meio dessas ações e relações sociais, as crianças vão aprendendo, internalizando, atualizando e reproduzindo valores e formas de ser menino e menina que revelam a centralidade da dimensão do Corpo como conhecimento, bem como do Corpo como expressividade-comunicativa; Corpo como experiência espaçotemporal e do Corpo como identidade e direito ético. Portanto, nos contextos de Educação Infantil, as Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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professoras e professores precisam manter um olhar atento e buscar compreender como ocorre a educação de meninos e meninas, tanto nas relações que estabelecem com as crianças, como também, nas relações entre o próprio grupo de pares. Relações sociais, que muitas vezes, reproduzem e atualizam estereótipos e preconceitos, em especial, com as crianças que transgridem as fronteiras do que é imposto para cada gênero, é preciso estar atento, pois, por meio dessas relações, ocorre um minucioso processo de feminilização e masculinização dos corpos, presente no controle dos sentimentos, no movimento corporal, no desenvolvimento das habilidades e expectativas diferenciadas para meninos e meninas em nossa sociedade e em cada cultura. Nesse sentido, tendo em conta que meninos e meninas já nascem em uma cultura que produz desigualdades, estas relações sociais no contexto da Educação Infantil devem ser tomadas como foco principal de observação e mediação, a partir de uma intencionalidade que vise a não reprodução de estereótipos e preconceitos. No documento “Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças” essa preocupação já está assegurada: Meninos e meninas têm os mesmos direitos e deveres; As meninas também participam de jogos que desenvolvem os movimentos amplos: correr, jogar, pular; Nossas crianças, negras e brancas, aprendem a gostar de seu corpo e de sua aparência. (BRASIL, 1995, p. 14 e 27).

Na Educação Infantil as crianças estão envolvidas com muitas descobertas, inclusive a descoberta do próprio corpo, e, como sabemos, elas não se apresentam como seres assexuados, vemos isso pelos seus interesses constantes em questões que nos levam a pensar na temática da sexualidade. Para além de delimitar o que é certo e errado, cabe-nos uma ação educativa pautada nos princípios de acolhimento, auscultação, alteridade e respeito ético

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no que se refere às diferentes formas e possibilidade de se expressar e de se experimentar como ser social e cultural. Ainda que a referência a que fazemos aqui seja relacionada às questões sobre a sexualidade na educação das crianças, estes mesmos princípios devem ser observados nas situações envolvendo outros assuntos e temas que movem as curiosidades, indagações e questionamentos das crianças. Esses princípios estão também contemplados nos “Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças”: “Não reprimimos a curiosidade das crianças pelo seu corpo; Não reprimimos a curiosidade sexual das crianças” (BRASIL, 1995). É preciso considerar que tudo que envolve gênero e sexualidade, bem como demais funções corporais, envolvem, ao mesmo tempo, questões de natureza biológica como também sociais e culturais. Os modos sociais e culturais como se concebem as relações de gênero e a sexualidade podem variar de sociedade para sociedade, de cultura para cultura e, no interior de uma mesma sociedade, entre os diferentes grupos sociais. Nesse sentido, tendo em conta recortes de classe social, étnicos, geográficos, religiosos, as professoras e professores da Educação Infantil precisam dialogar com as famílias sobre essas temáticas, de modo respeitoso e partindo dos princípios de acolhimento, alteridade e respeito ético. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação infantil, em seu Artigo 9º, o corpo aparece como possibilidade de experiências promovidas pelas interações e brincadeiras, segundo o documento: “na Educação Infantil devemos garantir práticas em que as interações e a brincadeira promovam experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla”. Também aqui podemos observar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação infantil propõem numa compreensão de corpo como potencialidades, Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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relacionando-o ao movimento e não como uma natureza que precisa ser contida e disciplinada ou como recurso pedagógico. Da mesma forma, nos “Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças” o corpo na sua relação com o movimento tem centralidade no eixo: Nossas crianças têm direito ao movimento em espaços amplos: Nossas crianças têm direito de correr, pular e saltar em espaços amplos, na creche ou nas suas proximidades; Nossos meninos e meninas têm oportunidade de jogar bola, inclusive futebol; Nossos meninos e meninas desenvolvem sua força, agilidade e equilíbrio físico nas atividades realizadas em espaços amplos; Nossos meninos e meninas, desde bem pequenos, podem brincar e explorar espaços externos ao ar livre; Nossas crianças não são obrigadas a suportar longos períodos de espera; Os bebês não são esquecidos no berço; Os bebês têm direito de engatinhar; Os bebês têm oportunidade de explorar novos ambientes e interagir com outras crianças e adultos; As crianças pequenas têm direito de testar seus primeiros passos fora do berço; Reservamos espaços livres cobertos para atividades físicas em dias de chuva; Organizamos com as crianças aquelas brincadeiras de roda que aprendemos quando éramos pequenos; Procuramos criar ocasiões para as famílias participarem de atividades ao ar livre com as crianças. (BRASIL, 1995, p. 23).

Professoras e professores, atentos às necessidades que envolvem o corpo e o movimento, em suas intervenções educativas, podem proporcionar às crianças, desde bebês, que Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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vivam seu corpo e, por meio desse viver, possam conhecê-lo, pois como indica Merleau-Ponty (1999, p. 269): “Quer se trate do corpo do outro ou do meu próprio corpo, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivê-lo”. Proporcionar experiências ricas e diversificadas que, permitam às crianças viver desafios e experiências corporais por meio de gestos e movimentos amplos e finos, expressivos, ritmados ou livres, implica em possibilidades de as crianças construírem conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural. As crianças, desde bebês, em nossa sociedade enfrentam um grande desafio em viver e conhecer o repertório cultural que envolve domínio dos gestos e movimentos que devem ser vividos e experienciados com o corpo, como: se alimentar, sentar, engatinhar, ficar de pé, caminhar, correr, saltar, rolar, alongar, puxar, empurrar, bater palmas, pegar e segurar objetos, sentir cheiros, odores, escutar o outro, ouvir sons e barulhos, vozes, falar alto, baixo, gritar, sussurrar, fazer ruídos e sons, entre tantos outros. Importante perceber que, viver essas experiências com o corpo se diferencia de aprender sobre o corpo, pois requer, como mencionamos na dimensão Corpo como conhecimento, premissas de que as experiências com o corpo e com o movimento sejam vividas em situações concretas, ou seja, que façam sentido no contexto social e cultural em que esse movimento é realizado e, ainda, que sentidos e significados orientem as ações e os movimentos vividos. Em algumas instituições de Educação Infantil, podemos presenciar proposições em que, para ‘trabalhar o corpo’ são organizadas atividades e ‘trabalhinhos’ em que se recorta e cola partes do corpo de revistas, se desenha o corpo ou parte dele, se faz molde por meio do contorno dos corpos das crianças, se faz marcas com pés ou mãos pintadas de guache ou cola colorida, entre outros. Esse modo de ‘trabalhar o corpo’, que visa levar as Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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crianças a aprender sobre o corpo traz a marca de uma concepção pautada na ciência, na qual o corpo é visto como algo fora de nós, que pode ser estudado e aprendido racionalmente, desconsiderando nosso próprio corpo. Essa compreensão tem implicações no modo como, tradicionalmente, apresentamos o mundo e o corpo para as crianças: didatizando por meio de aulas e da lógica do enclausuramento entre paredes, em que o corpo, o movimento, as dramatizações, as brincadeiras, as linguagens, as histórias, os espaços se constituem em temas para o planejamento numa perspectiva abstrata, generalista, decorativa e instrumental. Ao compreender o corpo e o movimento apenas em seu aspecto abstrato, generalista e instrumental eles são tomados como recursos pedagógicos para estratégias didáticas, que envolvem todos os tipos de exercícios visomotores, testes de coordenação, experimentos, no quais, as crianças devem, por exemplo, de olhos fechados adivinhar se o objeto oferecido é frio ou quente, macio ou áspero, doce ou salgado, cheiroso ou não, explorar as partes do corpo identificando-as e nomeando-as. Com esses exercícios, testes ou experimentos, as crianças podem até aprender sobre corpo e movimento, todavia, se tornam conhecimentos repetitivos, conformadores e alienadores, pois, carecem de imaginação, fantasia, curiosidade, investigação e descoberta, desse modo, se aproximam de modelos educativos “marcados por mecanismos meramente instrucionais de transmissão de conteúdos” como indica Rocha (2011, p. 377, grifos no original). O que queremos ao mencionar essas atividades, exercícios, testes ou experimentos é “uma tentativa de chamar a atenção para essa espécie de desvio que reduz o processo educativo complexo, inerente ao humano, a apenas um conjunto de atividades dirigidas que visam à assimilação de modelos” (ROCHA, 2011, p. 377). Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Essa lógica, racionalista e utilitarista de compreender o corpo e o movimento, presente nas instituições de Educação Infantil, carrega ainda a característica que consiste em realizar uma mesma atividade, ao mesmo tempo e lugar, para todas as crianças, em que o maior objetivo é o resultado de um produto final, em detrimento da imaginação criadora das crianças e dos seus modos próprios de viverem o corpo e o movimento. Esses pressupostos didáticos revelam uma concepção de educação, de desenvolvimento e aprendizagem como se eles fossem lineares e como se houvesse saberes, conhecimentos, habilidades que precedessem outros saberes, conhecimentos e habilidades. Na concepção da lógica, racionalista e utilitarista de compreender o corpo e o movimento que mencionamos, a proposição de jogos pedagógicos e/ou atividades, objetiva proporcionar aprendizagens sobre o corpo, visando muito mais o conhecimento da sua anatomia, necessidades básicas, sensações de modo abstrato e individual, em detrimento de experiências em que as crianças vivem com o corpo e com movimento numa perspectiva de conhecimento de si e do mundo que as envolve. Podemos inferir que tais estratégias didáticas visando aprendizagens sobre o corpo são planejadas com a intenção desenvolver habilidades a fim de acelerar ‘aprendizagens’ futuras, a saber, aquelas de ordem científica e racional, tradicionais de uma perspectiva escolarizante 16 . Para as crianças, parece não fazer sentido somente equilibrar-se, subir e pendurar-se para 16

Historicamente, a educação infantil, no Brasil se constituiu com base em duas concepções: educação assistencialista e educação escolarizante. Por meio de engajamento político de pesquisadores, profissionais, políticos, administradores, mães, pais e militantes, a área alcançou garantir especificidades e a garantia do direito das crianças à educação infantil na Constituição de 1988 e LDB de 1996, direitos que se concretizaram nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, documento que rompe com essas duas concepções de educação das crianças presentes ao longo da história da educação infantil no Brasil.

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‘adquirir’ coordenação motora, como desejam muitos/as especialistas, fazendo-as repetir os movimentos até ‘acertar’. A insistência em atribuir racional e utilitariamente, uma ‘função pedagógica’ ao movimento corporal limita e dificulta as possibilidades de as crianças recriarem, constantemente, as inúmeras potencialidades envolvidas nas formas de se movimentar e de se expressar. Quer dizer, quando as crianças brincam de se equilibrar sobre escadas e pneus ou de subir e de se pendurar em árvores, elas não estão preocupadas com a coordenação motora ampla que desenvolvem no exercício, mas experimentam maneiras diferentes de caminhar, de se equilibrar, de subir e se pendurar, criando formas diversas e cada vez mais ousadas e potentes de realizar os movimentos. Esta experiência possibilita à criança, além do conhecimento de seu próprio corpo e, não somente sobre o corpo, a criação de um repertório de movimentos que, pelo fato de ser conquistado, produz confiança e autonomia para explorar sua capacidade criativa e cada vez mais ousada de se movimentar. Importante demarcar que esta experiência produz um repertório de movimentos que, só pode ser conquistado, pela própria experiência de se movimentar, que podemos compreender mais singularmente com base no fundamento conceitual do Corpo como conhecimento e do Corpo como expressividade-comunicativa. Destacamos essa concepção de corpo como instrumento ou recurso pedagógico, pois, ela é muito presente quando a temática do corpo e do movimento surge no contexto educativo e está envolta numa concepção de ‘corpo como estorvo’. Nessa concepção, o corpo precisa ser treinado para aprender a segurar o lápis, os talheres de forma correta, aprender a sentar e permanecer imóvel para fazer a atividade e, ainda, por outro lado, um corpo que precisa cansar ou ficar calmo para a realização das atividades consideradas ‘mais nobres’, que numa concepção Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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dicotômica, valoriza mais a cognição. Esse ‘corpo como estorvo’ é também um corpo que incomoda, que não tem domínio sobre os movimentos, que se movimenta demais, que não se aquieta para desenhar, pintar, escrever, dormir e, por isso, precisa, por um lado ser treinado e, por outro, primeiramente, usar sua energia correndo, pulando, dançando, dramatizando para ficar cansado e, então, ser mais útil para as atividades consideradas cognitivas e intelectuais, tradicionalmente concebidas como ‘mais nobres’. A tarefa de garantir, na Educação Infantil, situações em que as crianças possam viver e experienciar o corpo em movimento por meio da dança, música, teatro, artes circenses, jogos, brincadeiras de faz de conta, de roda, tradicionais, folclóricas e de tradições culturais brasileiras e da cultura local e tanto outros temas da cultura, vai exigir que as professoras e os professores compreendam o corpo em movimento não como recurso pedagógico ou como instrumento de adequação de hábitos e comportamentos considerados necessários para a educação das crianças. É preciso compreender o corpo em movimento como possibilidade de ampliar as diferentes linguagens, diversificar a expressão e a cultura das crianças, como forma de descoberta, de revelação dos imaginários infantis, de maneira que permita as crianças estabelecerem relações sociais que implicam em conhecimentos, de si, do outro e a partir daí, do universo social e cultural. Nessa perspectiva de compreensão do corpo e do movimento, é fundamental organizar e reorganizar diferentes espaços na sala, no parque, no corredor, na rua, no refeitório, na biblioteca e demais espaços da instituição e, fora dela, para que as crianças, desde bebês, possam explorar novos ambientes que se diferem da sala de referência. O espaço não é apenas uma realidade física com determinadas dimensões, mas é o lugar onde as experiências acontecem e, portanto, ele afeta e envolve quem Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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vive nesse espaço. Afeta por sua presença e aspectos, pelos estados de ânimo que propicia, pela satisfação que produz na participação das atividades possíveis de serem ali realizadas. O espaço comunica o que é permitido e o que é possível fazer nele. Ele ‘comporta’ ao mesmo tempo, relações de emancipação e de regulação, de medo e de alegria, de repetição e criação, atenção e controle. Os espaços na Educação Infantil, mesmo os espaços utilizados pelos bebês, devem ser modificados de forma a permitir outras possibilidades de movimento e assegurar possibilidades outras de movimento, sem deixar de considerar as especificidades dos bebês, das crianças com necessidades educacionais especiais, as crianças indígenas, ribeirinhas e rurais. Para os bebês, particularmente, as experiências corporais, gestuais e de movimento trazem em si a marca do novo, uma nova sensação, um novo desafio corporal (engatinhar, arrastar, ficar de pé, caminhar, subir, descer, correr, mexer, remexer, tocar, rolar, pular), e nesse sentido, as professoras e os professores devem observar o corpo para além de suas possibilidades físicas (ou mecânicas) de movimento, mas como expressão, por meio do toque, do olhar, dos gestos, da interação com os objetos e com o espaço, como uma forma de se comunicar, de expressar significados e emoções. As experiências aqui mencionadas revelam a centralidade do corpo e, consequentemente sua importância para a docência na Educação Infantil, bem como o entrelaçamento das dimensões/faces do Corpo como conhecimento; Corpo como expressividadecomunicativa; Corpo como experiência espaço-temporal; Corpo como identidade e direito ético que foram, nesse texto, desmembradas a fim de dar uma maior visibilidade a complexidade que envolve esse corpo. O contato com diferentes materiais e a exploração de diferentes espaços evidencia também o papel dos objetos e dos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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espaços como importantes elementos que possibilitam às crianças, desde bebês, explorarem as possibilidades de movimento que eles oferecem, como virar um berço, uma mesa, criar um túnel, uma teia ou uma cama de gato para os bebês explorarem, criar diferentes ambientes temáticos, que permitirão que os bebês descubram novas possibilidades de explorar o espaço e, por meio de materiais diversificados, sentir diferentes texturas, formas e cores, se movimentar a partir dos movimentos dos objetos nas relações com seus pares. O espaço e tempo da música, dança, teatro, brincadeiras e jogos, artes circenses e, tantos outros temas da cultura, também devem ser o da descoberta e da revelação dos imaginários, dos processos criativos e das possibilidades de explorar o corpo em movimento. A dança, por exemplo, é uma arte eminentemente corporal, mas, muitas vezes, como presenciamos em muitos contextos e modos de pensamento, ela é sinônimo de ‘coreografia’, ou seja, é reduzida a uma sequência de movimentos coordenados pela música. A dança como arte, pode sim ser um produto acabado e ser compartilhado com o público, todavia, em contextos de educação coletiva como a Educação Infantil, em que o corpo expressivo da dança ganha uma dimensão educativa e pedagógica, este conceito de dança é um tanto limitado e limitante pois, quando levamos estas danças ‘prontas’ para as instituições educativas, resta às crianças, simplesmente, a possibilidade de executarem a dança sugerida, tal como Marques (2004) chama a atenção. Normalmente, nas instituições de Educação Infantil estas coreografias são performatizadas em apresentações às famílias nos dias de festividade, em que as crianças, muitas vezes, tiveram que suportar longas horas de treino e privação de outras experiências para chegar num resultado performático e vazio de expressividade. Cabe então refletir sobre o que tem de criativo e Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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de valores em todas as crianças fazerem tudo igual, que sujeitos sociais construímos quando desejamos que todos façam tudo como nós definimos. Um ‘treino’ para uma dança coreografada não estaria reproduzindo modelos ancorados em pressupostos homogeneizadores? Que tendem a invisibilizar singularidades, a silenciar corpos, levando-os ao treinamento da passividade e da subserviência? Princípios que se chocam com uma perspectiva emancipatória, crítica e praxiológica de educação. As atividades corporais que as crianças, cotidianamente, realizam na Educação Infantil (brincadeiras, jogos, danças, afazeres domésticos) atuam na constituição social, cultural e histórica do corpo e conformam distintas e diversificadas formas de relações possíveis com a vida. Por isso, nossa defesa é por experiências relacionadas à dança que haja e comporte espaço para a criação, a improvisação, a brincadeira e a fruição. Todavia, se ao contrário, propormos que, ao som de uma música, as crianças ‘dancem livremente’, veremos que teremos aí também uma ilusão de educação ideal, pois a ideia de que toda criança dança naturalmente, que é espontânea e não tem condicionamentos corporais, é uma concepção romântica e ingênua sobre o corpo na nossa sociedade. Numa proposição desta natureza, as crianças podem realizar movimentos singulares e originais, mas, também, reproduzir danças divulgadas na mídia ou movimentos de adultos, pois, não podemos desconsiderar que as crianças vivem numa sociedade sendo marcadas e constituídas pela cultura, pelas relações político-sociais. Portanto, a influência da cultura televisiva e midiática nessa definição e impregnação dos padrões de movimento, de desejos, das necessidades e estética corporal, precisa ser observada, questionada e problematizada na ação docente. O que se preconiza é que, por meio de um planejamento intencional, sejam apresentados também outros repertórios de Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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saberes e conhecimentos relacionados ao corpo, aos gestos e aos movimentos, que não só reproduzam elementos da cultura televisiva e midiática. Os corpos das crianças são corpos sociais e, aqui reside também um grande desafio e contribuição da educação, que é desvelar que os modos de conceber e viver o corpo, se constituem como amálgamas de classe, de gênero, da etnia e da religiosidade a que pertencem. Por isso, cabe às professoras e aos professores a tarefa e o desafio reflexivo de gerar, orientar e propor condições para que as crianças, desde bebês, possam viver e compreender os elementos deste amálgama, desta forma, não estaremos educando corpos e indivíduos dóceis, mas sim corpos e indivíduos que pensam, que criam e que, por isso, têm potencial de transformar. Enquanto profissional da Educação Infantil, é preciso ampliar e diversificar as experiências sensoriais, expressivas, corporais e de movimento das crianças, concedendo, a essas experiências, um lugar privilegiado nos planejamentos pedagógicos e na ação educativa. Para finalizar é importante demarcar que buscamos um trabalho educativo de cunho emancipatório, tanto para as crianças como para a sociedade e, para tal, compreendemos ser imprescindível que as crianças, na Educação Infantil, possam conviver com diferentes visões de mundo, com a experiência de diferentes formas de expressão e de linguagens, que possam ensaiar diferentes interpretações, reconhecer e valorizar igualmente diferentes escolhas, diferentes organizações sociais e diferentes traços culturais. Todavia, por meio de propostas educativas, direcionadas ao corpo, seguindo mecanismos meramente instrucionais de transmissão de conteúdos e assimilação de modelos, há um distanciamento da educação de suas possibilidades democráticas e de emancipação pessoal e social. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Livros de literatura para a primeira infância: a questão da qualidade Mônica Correia Baptista Camila Petrovitch Mariana Parreira Lara do Amaral Considerações iniciais Ainda que, ao longo das últimas décadas, seja evidente o salto qualitativo na produção de obras literárias para crianças, persiste a presença de livros de baixa qualidade textual e artística, em livrarias ou em outros pontos de venda e nas salas ou bibliotecas escolares. Via de regra, essas obras apresentam narrativas demasiadamente simples e despretensiosas, que ignoram as capacidades intelectuais e emocionais das crianças; contêm ilustrações estereotipadas, cujas imagens, redundantes e repetitivas, prescindem de autenticidade. Somam-se, à questão da produção acima destacada, dificuldades nos processos de seleção das obras pelas professoras17. De um lado, são escassos os processos de escolha de acervos que contam com a participação das próprias docentes. Por outro lado, são igualmente escassos, nos cursos de formação inicial e continuada, conteúdos voltados para a formação das professoras como mediadoras e promotoras de leitura literária junto a bebês e demais crianças pequenas. Apenas para se ter uma ideia, Baptista, Machado e Belmiro (2015), em breve consulta a Ainda que se reconheça a existência de professores do sexo masculino, na educação infantil, sabe-se que mais de 98% das profissionais que atuam como docentes, nessa etapa da educação básica, são mulheres. Em consideração a esse fato, optamos pelo genérico feminino, de maneira que os homens se sintam incluídos sempre que, neste texto, forem mencionados/as esses/as profissionais. 17

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programas de ensino de cursos presenciais de Pedagogia, revelam que, em 39 universidades federais investigadas, apenas 17 delas possuíam disciplinas obrigatórias de literatura, nas suas propostas curriculares ou nos seus respectivos planos de curso. Ao problematizarmos os processos de seleção de livros para crianças, uma questão se coloca de maneira premente: o que consideramos como sendo livros infantis de qualidade? De acordo com Corrêa (2008), livros de qualidade são obras que “levam o leitor a pensar, enquanto as leem, ou provocam nele o encantamento próprio às experiências com a arte – que é a chamada fruição estética” (p. 93). Martha (2011, p. 49) também argumenta que é a definição de um texto como arte que determina sua qualidade. Nas palavras da autora: “[...] o primeiro requisito da produção literária para crianças e jovens é que seja arte, literatura em sentido lato, cujo compromisso primeiro se manifeste com a iniciação da criança na experimentação do prazer estético”. Essa abordagem, que vincula a qualidade à construção artística do texto, é especialmente importante para contrapor uma noção pragmática da literatura, ainda bastante presente nas instituições escolares. Tendo em vista a concepção de que a literatura é arte e que, como tal, assume importância basilar na constituição das subjetividades, a discussão sobre os critérios empregados na seleção de obras literárias para crianças se faz urgente. Como escolher livros que contribuam para que os/as leitores/as mirins ampliem suas experiências, exercitando a alteridade e a empatia que a ficção literária, a poesia e outras formas de arte propiciam? Esse que, para Candido (2011), é um processo de humanização se converte no desafio de fazer valer o direito inalienável de todo ser humano à fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis (CANDIDO, 2011, p. 193). Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Considerando a responsabilidade da escola em fomentar o prazer da criança pela leitura literária e a necessidade de formação continuada para a ampliação e ressignificação de saberes docentes, este texto visa refletir sobre qualidade na literatura infantil, elencando critérios para a análise e a seleção de obras para a infância. Os livros e a formação do leitor de literatura A presença de livros de literatura nas instituições de Educação Infantil vinha se tornando algo cada vez mais corriqueiro, sobretudo em decorrência do Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE18. De acordo com a proposta desse Programa, as compras destinadas às creches e pré-escolas aconteciam a cada dois anos, tendo se iniciado em 2008. Ocorreram, assim, quatro processos de compra e distribuição de livros para a Educação Infantil – 2008, 2010, 2012 e 2014. Nesse interstício, entre 2008 e 2014, foram distribuídas 360 obras literárias para cada creche e pré-escola pública brasileira. Em 2016, houve a interrupção do Programa e, em 2018, o governo federal redimensionou o Programa Nacional do Livro Didático - PNLD, que passou a ser chamado PNLD 2018 Literário (Edital de Convocação 02/2018 – CGPLI). Pela primeira vez, a Educação Infantil foi contemplada em um edital do PNLD, que se destinou à compra de livros literários. Foram selecionadas, aproximadamente, 150 obras, das quais as instituições poderiam eleger 45, sendo 20 para turmas de creches e 25 para turmas de pré-escola. O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), desenvolvido desde 1997, realizava a distribuição de obras de literatura, de pesquisa e de referência, para escolas públicas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, tanto para o ensino regular quanto para a educação de jovens e adultos. 18

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Em abril de 2019, o Decreto nº 9.765, instituiu a Política Nacional de Alfabetização. No seu inciso XI, do artigo 8o, estabelece-se que um dos programas, ações ou instrumento para implementação dessa Política deverá incentivar “[...] a produção e a edição de livros de literatura para diferentes níveis de literacia” (BRASIL, 2019). Ainda que consideremos a importância das políticas do livro, sem as quais as obras literárias não chegam às instituições públicas escolares na quantidade e com a qualidade desejadas, sabemos que, além de assegurar a distribuição maciça de livros de maneira sistemática e ininterrupta, é fundamental que ela se faça acompanhar de um investimento na formação de mediadores/as de leitura. Bons/boas mediadores/as devem reconhecer a qualidade dos livros para que possam atuar de maneira competente na formação do/a leitor/a de literatura. Como vimos, oferecer literatura para crianças de zero a seis anos é proporcionar experiências artísticas importantes. Nesse sentido, não basta que o livro literário esteja endereçado às crianças. É preciso que ele seja capaz de despertar o encantamento e fomentar a imaginação. Reys (2010), ao afirmar a importância do contato das crianças, desde bem pequenas, com o livro, ressalta que essa aproximação deve ocorrer por meio de uma literatura infantil de qualidade, proporcionando a elas uma “fonte de nutrição” emocional e cognitiva, para que recorram a ferramentas mentais e simbólicas que as ajudem a organizar o fluxo caótico dos acontecimentos. Os contatos frequentes com livros, em casa e na escola, mediados por adultos ou leitores mais experientes, contribuem para que, cada vez mais cedo, as crianças se desenvolvam como leitoras autônomas, compreendendo não apenas as formas de usar e manusear o livro, mas, sobretudo, arriscando construções de sentidos. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Como temos ressaltado, para que as crianças vivenciem uma formação leitora eficaz, é importante que, desde bem pequenas, tenham contato com livros de qualidade e participem de mediações literárias significativas. De acordo com Sánchez (2015), obras de qualidade suscitam nas crianças “perguntas e buscas de diversas respostas, participação fervorosa e ativa na construção pessoal de significados e rica troca de interpretações em um ambiente de emoções e descobertas.” 19 (SÁNCHEZ, 2015, p. 122, tradução nossa ). A defesa de que textos de qualidade pressupõem considerar as crianças como seres inteligentes e capazes encontra respaldo na afirmação de Fittipaldi (2008) de que “as crianças têm visão crítica suficiente [...] para saber como estão consideradas, se estão tratando-as com condescendência ou com respeito e admiração por suas inteligências e sensibilidades.” (p. 119) Por isso, um importante critério para orientar a seleção de obras literárias diz respeito à forma como o livro concebe as crianças. A obra aposta em uma visão de criança como ser potente, que suporta desafios e complexidades, ou, ao contrário, possui uma visão subestimada da infância, ao utilizar linguagem exageradamente infantilizada e textos dotados de explicações óbvias e modulações de comportamento? Considerando o exposto, podemos nos perguntar como realizar escolhas de livros de literatura para crianças de zero a seis anos, garantindo a elas ampliação das suas experiências estéticas e colaborando com sua formação como leitoras de literatura. Paiva (2016), ao destacar três aspectos a serem observados “Preguntas y búsqueda de diversas respuestas, ferviente y activa participación en la construcción personal de significados, y rico intercambio de interpretaciones en un ambiente de emociones y descubrimientos” (SÁNCHEZ, 2015, p. 122). 19

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na avaliação de livros de literatura para crianças, nos ajuda a responder a essa indagação. Em primeiro lugar, a qualidade textual; em segundo lugar, a qualidade temática e, finalmente, o projeto gráfico. Importante destacar que, para se atingir a almejada qualidade, essas três dimensões precisam estar integradas em uma concepção ou proposta estética. Numa análise de obras, é a relação entre esses três aspectos que define a qualidade. A qualidade textual refere-se à estrutura da narrativa, verbal e/ou imagética e aos aspectos estéticos: o vocabulário, o estilo, o uso das figuras de linguagem, a construção dos personagens, a escolha do léxico e da sua ordenação nas frases. Ou seja, o livro deve ser composto por uma narrativa que faça sentido para a criança e desperte seu interesse e desejo pela história, sem menosprezar suas capacidades de interpretação. O segundo aspecto refere-se à qualidade temática, que (...) se manifesta na diversidade e no tratamento dado ao tema, no atendimento aos interesses das crianças, aos diferentes contextos sociais e culturais em que vivem e ao nível de conhecimento prévio que possuem. (PAIVA, 2016, p. 34).

Para a pesquisadora, é importante pensar em temas que interessem às infâncias, e não a uma infância específica, moldada segundo as expectativas dos adultos. Por fim, a qualidade gráfica se revela em um projeto editorial atraente, desafiador e enriquecedor, que articule a capa e contracapa, as ilustrações, os paratextos, as diferentes linguagens presentes e os demais recursos gráficos, brincando com as convenções. Essas qualidades se aplicam também ao caráter estético das ilustrações e do próprio objeto livro. Imagens desafiadoras, não padronizadas e não estereotipadas, mas sim [...] originais, sugestivas, significativas, complexas são Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 95 elementos essenciais para assegurar qualidade. Imagens que deixem espaço para que as crianças possam pensar, empreender reflexões, estabelecer conexões, divagar, imaginar e, com isso, transcender as próprias imagens que têm diante de seus olhos. (BORBA; MATTOS, 2011, p. 216).

Experimentando critérios de qualidade: uma análise contrastiva Neste tópico, selecionamos obras de literatura infantil com o objetivo de ilustrar, por meio de uma análise contrastiva, os elementos acima elencados. Essa análise visa proporcionar uma reflexão sobre os aspectos de qualidade que se sobressaem, quando comparamos obras que se assemelham em algum aspecto. É importante ressaltar que não vislumbramos esgotar os critérios de análise, mas sim, apontar aspectos que possam orientar as escolhas de livros literários por professoras, embasadas no nosso referencial teórico. Contos Clássicos: as mil e uma versões São muitos os livros disponíveis no mercado que apresentam adaptações de contos clássicos. Dessa infinidade de oferta, há uma parcela comprometida com a arte e a infância e outra na qual o interesse mercadológico se sobrepõe a esse compromisso. Para exemplificar, analisaremos duas edições do clássico Chapeuzinho Vermelho, nos seus aspectos textuais, imagéticos, e também em relação ao projeto gráfico. O primeiro livro, uma adaptação do conhecido clássico Chapeuzinho Vermelho, sem menção à autoria, foi publicado pela Editora Ciranda Cultural em 2018 e contém 16 páginas. A capa do livro traz, em destaque, uma representação colorida, com aplicações brilhantes nas partes em vermelho, da personagem Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Chapeuzinho Vermelho. Em segundo plano, mostra o caminho percorrido pela menina e parte do corpo do lobo, que se insinua, escondido entre as árvores da floresta. O livro conta com um corte diferenciado nas bordas das folhas, o que vale tanto para a capa quanto para as folhas do miolo. Importante observar que esse formato vem sendo bastante utilizado em edições desse tipo, tornando-se um padrão que em Figura. 1: Capa do livro nada dialoga com a proposta do Chapeuzinho Vermelho, Editora Ciranda Cultural. 2018. livro e nem com a narrativa. Nessa publicação, o texto verbal e as ilustrações não mostram uma integração ou um diálogo que ampliem a produção de sentidos em relação à conhecida história. O texto verbal, como se pode ver na Figura 2, se atém a fatos da história, sem lançar mão de estruturas ou expressões de suspense, medo ou outras que possibilitariam à criança um envolvimento emocional ou afetivo com a narrativa. Na passagem do livro indicada na Figura 2, temos o seguinte texto: “A menina se despediu de sua mãe e foi cantando em direção a casa de sua avó. No caminho, ela acabou se esquecendo de tudo o que sua mãe havia recomendado e, ao se deparar com lindas flores coloridas, pensou que também a sua avó pudesse gostar de recebê-las. Enquanto colhia as flores, o lobo mau apareceu.” As ilustrações são compostas por imagens computadorizadas que reproduzem representações estereotipadas dos personagens, sem investimento artístico que levem a criança imaginar. A composição é bem simples, e, apesar Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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de contar com cores diversas, não explora tonalidades e efeitos de luz e sombra. A mesma imagem do lobo, com características e traços humanos, é usada para todas as cenas, com pequenas variações.

Figura 2: Páginas do livro Chapeuzinho Vermelho, da Editora Ciranda Cultural. 2018.

Embora saibamos que os contos tradicionais ou clássicos se alteram no seu percurso histórico de leituras – as versões de Perrault e dos irmãos Grimm atestam isso –, o modo como vem contado o clássico texto nesse livro não oferece elementos que façam dele uma adaptação que se aproxime de importantes versões que a antecederam ou de outras mais atuais. Inexpressivos do ponto de vista da linguagem, o texto e as ilustrações não desafiam a participação da criança na construção de sentidos, por não abrirem possibilidades que as motivem a essa participação. Os sentidos de floresta, mundo desconhecido, decisões e tomadas de atitude por uma criança que se encontra sozinha, os medos, as tensões que se criam no encontro com essa Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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figura amedrontadora do lobo, e tantos outros se apagam nessa narrativa que impede o envolvimento da criança com algo que a tire do lugar. Podemos supor que essa “higienização” tenha sido intencional, corroborando com a concepção de que as crianças devem ser protegidas, restringindo-se seu contato a narrativas consideradas leves, suaves e com finais felizes, sem que as personagens enfrentem, ao longo da história, situações de conflito ou algum tipo de desconforto emocional. Cabe ressaltar que este livro integra uma coleção de contos clássicos, na qual todas as demais publicações apresentam as mesmas características. Trata-se de um protótipo de adaptações de textos de contos tradicionais, que circulam no mercado e que se distanciam daquilo que nos esforçamos em definir como sendo uma literatura de qualidade. Veja uma outra publicação do mesmo conto, Chapeuzinho Vermelho, que traz também O príncipe-Rã ou Henrique de ferro. O livro integra uma coleção publicada pela editora Ática, denominada Contos de Grimm, composta de 12 volumes. Segundo informa um dos textos da quarta capa, a coleção “[...] é uma seleção dos mais belos contos de fadas recolhidos da tradição popular Figura 3: Capa do livro alemã pelos irmãos Wilhelm e Chapeuzinho Vermelho/O príncipe-Rã ou Henrique de Jacob Grimm”. Todos os volumes Ferro, da Editora Ática são ilustrados por Anastassija Archipowa, professora de artes e experiente ilustradora russa, com textos em português de Maria Heloísa Penteado, consagrada Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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autora brasileira de livros para crianças. A qualidade da obra já se faz notar na capa, na qual se reproduz parte de uma das ilustrações contidas no miolo do livro. A imagem representa o momento em que Chapeuzinho se depara, na floresta, com o antagonista da história. Há elementos na ilustração que evidenciam sua originalidade e, por sua intensidade dramática, abre possibilidades significativas para os/as leitores/as. Desde os tons da floresta aos trajes da personagem principal, são elementos que nos remetem ao momento histórico (início do século XIX) no qual os irmãos Grimm publicaram esse conto de tradição oral, corrente entre camponeses de toda a Europa desde tempos imemoriais. Ao lobo é assegurada sua condição de animal selvagem, sem antropomorfismos. Com a boca semiaberta, a língua entre dentes, sua altura ultrapassando a da inocente criança para a qual ele lança seu olhar faminto, suscita, no leitor, a sensação de pavor que, como sabemos, permeará a narrativa. Enfim, há no encontro da menina com o lobo uma tensão que cada criança preencherá a sua maneira ao lidar com o perigo, o desconhecido, o medo. O texto verbal não economiza os acontecimentos, nem tampouco simplifica expressões, assegurando ao pequeno leitor o contato com um léxico diversificado, diferente do discurso fático, do relato do cotidiano. Dessa forma, o texto verbal amplia as experiências estéticas do leitor, como pode ser comprovado no trecho a seguir: Chapeuzinho Vermelho olhou para cima, viu o Sol piscando ao atravessar a irrequieta ramaria, fazendo cintilar as flores de tão variadas cores que havia por ali, e pensou: “A vovó bem que gostaria de ganhar um ramo de flores fresquinhas... vou colher algumas... ainda é cedo, tenho tempo de sobra...” E, deixando o caminho, entrou na mata. Sempre que apanhava uma flor, avistava mais ao longe outra mais bonita, e ia atrás dela. Assim, foi se

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Além da qualidade textual e das ilustrações, o livro conta com um projeto gráfico simples (capa mole, papel offset, apenas 16 páginas), mas ao mesmo tempo esmerado. As relações entre as manchas de texto, os espaços em branco e as ilustrações constroem uma relação harmoniosa, que convida à apreciação e à leitura.

Figura 4: Páginas do miolo do livro Chapeuzinho Vermelho/ O príncipeRã ou Henrique de Ferro, da Editora Ática.

Finalmente, ainda em relação ao projeto gráfico, há que se destacar a importância dos elementos paratextuais para a formação dos/as pequenos/as leitores/as. Na quarta capa são veiculadas informações biográficas sobre autora e ilustradora. Conhecer o livro como um objeto cultural, saber identificar os elementos pré-textuais e pós-textuais, constituir um repertório autoral, que permita eleger preferências de autores/as, de ilustradores/as, de editoras são também requisitos para a constituição de sua autonomia como leitor/a.

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A metamorfose da lagarta: paradidático ou literário? A metamorfose pela qual passa a lagarta para se transformar em borboleta é um assunto recorrente na Educação Infantil. Muitas obras destinadas à infância abordam essa temática, que se revela como fonte de interesse constante das crianças pequenas, possivelmente pela identificação resultante das inúmeras mutações por que passam nessa fase da vida. O livro Risoleta, a Figura 5: Capa do livro Risoleta, a borboleta, da editora Vigília, tem Borboleta, escrito e ilustrado por texto e ilustrações de Málus, e foi MÁLUS, da editora Vigília, 1986. publicado pela primeira vez, em Belo Horizonte, no ano de 1981. Em cores suaves, a capa traz a imagem da borboleta em um jardim, encabeçada pelo nome do livro, do autor e da editora. Não se observa, além da ideia de representação da personagem, nenhum outro elemento que suscite o interesse pela narrativa sobre Risoleta, a borboleta. O livro conta com 12 páginas e todas apresentam texto acompanhado de ilustração. As ilustrações do miolo são em preto e branco, contendo imagens de uma lagarta e de uma borboleta, que remetem a matrizes mimeografadas, bastante presentes no universo escolar, feitas para colorir. Essas ilustrações ocupam invariavelmente uma única folha e ilustram aquilo que é relatado pelo texto verbal, sem acrescentar novos elementos ou ampliar significativamente as experiências estéticas do leitor. O livro narra o percurso de uma borboleta, que se inicia no

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ovo, preso a uma folha; continua com sua transformação em lagarta; se estende até a construção do casulo e finaliza-se com sua transformação em borboleta20. Um aspecto importante a ser considerado é que Risoleta, a Borboleta é parte de uma coleção de cinco títulos, todos eles comercializados no mercado como livros de literatura. Entretanto, o que se percebe é o caráter didático presente na narrativa desse livro, assim como nos demais da coleção. A diferença entre textos literários e textos didáticos pode ser melhor Figura 6: Páginas do livro Risoleta, a Borboleta, compreendida se nos escrito e ilustrado por MÁLUS, da editora apoiarmos nas Vigília, 1986. formulações teóricas de Paulino (2003). Ao se propor a descrever os diversos tipos de Texto das páginas da figura 7: 1) “Foi então que a larvinha descobriu que podia fabricar um fio parecido seda. E começou a tecer um ovo para se entocar nele.” 2) “Teceu um ovo bonito e quentinho.” 3) E dentro do ovo ficou, até que se cansou. - Ah, que saudade do sol, do céu, do verde e das flores! Eu vou é sair – ela falou. 4) “E saiu: mas bem diferente. Estava colorida. Tinha virado borboleta: Risoleta, a borboleta.” 20

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“narrativas que compõem os universos textuais infantis e juvenis”, a pesquisadora assevera que toda narrativa traz uma “proposta básica de interação” (p. 43). Tal proposta nem sempre aparece isoladamente em um texto, mas sim mesclada a outras, que convergem ao buscarem cumprir o propósito dominante do texto. Assim, as três propostas básicas de ação interlocutória das narrativas, identificadas por Paulino (2003), isto é, a pragmática, a ficcional e a informativa, podem coexistir em um único texto, mas, nele, identifica-se uma proposta básica, que faz confluir todas as outras com vistas a cumprir o propósito pretendido. No caso do livro Risoleta, a Borboleta, a proposta básica de ação interlocutória é a de veicular informações acerca do processo de metamorfose pelo qual passam as borboletas. Apesar de contar com uma narrativa ficcional, a mesma é utilizada apenas como recurso para se ensinar as fases de transformação desse inseto e não exatamente levar os seus leitores à fruição estética. Trata-se, nas palavras de Paulino (2003, p. 46), de uma proposta pragmática de recepção, ao assumir uma “[...] atitude pedagogizante, pragmática, que tenta converter a narrativa artística em um artefato de utilidade imediata”. Esse gênero, segundo a autora denominado paradidático, [...] anula a experiência estética, trocando-a por outro tipo de interlocução escrita, que pode ser muito interessante para alguns professores e pedagogos, mas que afasta os jovens da proposta ficcional propriamente dita”. (PAULINO, 2003, p. 46).

Risoleta, a Borboleta é apenas aparentemente uma história, uma narrativa ficcional. Na verdade, trata-se de um texto que deixa pouca margem para o imaginário, para a fantasia, para a fruição do pequeno leitor. Abordando o mesmo tema da metamorfose da lagarta, apresentamos o livro Uma Lagarta muito comilona, de Eric

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Carle, da editora Callis. Podemos afirmar que este livro, lançado pela primeira vez em 1969, mas que chegou ao Brasil em sua versão cartonada apenas em 2012, é um clássico da literatura infantil. Possui diversas edições espalhadas pelo mundo. Nessa análise, vamos nos ater à versão lançada em 2019, em comemoração aos 50 anos da obra. Essa versão tem 24 páginas cartonadas e formato pequeno (18cm x 12,7cm). Assim como Risoleta, a Borboleta, o livro Uma lagarta muito comilona narra o percurso de uma larva até se transformar em borboleta. Entretanto, essa metamorfose é explorada por meio de um projeto gráfico ousado, que conta com recortes diferenciados de páginas e com furos, que atravessam, ao longo da obra, ilustrações de frutas e outros alimentos, sugerindo o trajeto feito pela lagarta.

Figura 7: Capa do livro Uma Lagarta muito comilona, de Eric Carle, 2012.

O projeto gráfico, criativo e arrojado, é atrativo para qualquer leitor, mas especialmente para os bebês, tanto por seu formato pequeno, que facilita seu manuseio, quanto pelo material cartonado, que permite explorações de crianças que se encontram em um período no qual gostam de explorar quase tudo com a boca.

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A lagarta faminta parte em busca de comida. Na segunda-feira, atravessa mastigando uma maçã, mas continua com fome. Na terça-feira, atravessa mastigando duas peras, mas continua faminta. Na quarta-feira, três ameixas; na quintafeira, quatro morangos; na sexta-feira, cinco laranjas. Muito já se disse sobre o quanto a estrutura cumulativa, presente em histórias infantis, agrada aos mais pequenos. Rapidamente Figura 8: Páginas do livro Uma Lagarta muito comilona, de Eric Carle. as crianças memorizam as sequências e se sentem seguras e confiantes para repetirem incansavelmente as histórias. Essa repetição, longe de ser maçante, é plena de recriações e de apropriações, que serão fundamentais para a formação do pequeno leitor. O projeto gráfico primoroso acrescido da delicadeza do texto são recursos que não apenas colaboram com as apropriações sobre o funcionamento das narrativas, mas sobretudo apoiam as crianças nas suas construções sobre os sentidos da vida. Nas palavras do autor: Meus amigos e editores têm se perguntado por que “Uma lagarta muito comilona” faz tanto sucesso. Levei muito tempo, mas acho que é um livro sobre esperança. As

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106 | crianças precisam de esperança. Você, lagarta pequena e insignificante, pode virar uma bela borboleta e voar pelo mundo com seu talento. Um dia serei capaz disso? Sim, você será. Acho que esse é o apelo do livro. Eu deveria saber. Afinal, escrevi o livro21.

Sobre valores humanos: abordagem moral ou literária? Perpassando os discursos sociais, observa-se uma crescente preocupação com a formação do caráter das crianças via literatura. Atribui-se aos livros o poder de educa-las, tornando-as pessoas íntegras, respeitosas e em perfeita capacidade para o exercício da vida social. Vejamos a seguir duas publicações que nos ajudam a refletir sobre essa perspectiva. A primeira publicação é o livro O que cabe no meu mundo: Gratidão, de Janayna Alves Brejo, editora Cedic, publicado em 2011. Na capa do livro, não constam indicações sobre os/as autores/as e ilustradores/as. Essas informações são Figura 9: Capa do livro O que cabe no veiculadas na segunda mundo: Gratidão, escrito por Janayna Alvez capa que traz a ficha Brejo, da editora Bom Bom Book, 2011. catalográfica e também na quarta capa. A obra integra uma coleção denominada “O que cabe no meu Disponível em https://leiturinha.com.br/blog/leiturinha-comemora-50anos-de-uma-lagarta-muito-comilona-com-colecao-de-livros-especial/ Acesso em 15 de novembro de 2019. 21

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mundo”, sobre virtudes humanas. Além do título “Gratidão”, a coleção possui inúmeras outras publicações e, em todas elas o protagonista é sempre o mesmo personagem principal: um urso marrom, de jardineira azul e camisa vermelha. É de se supor que as temáticas e suas respectivas abordagens tenham proporcionado grande sucesso de venda, pois, uma breve visita a sites de busca na internet revela três ou quatro coleções contendo dezenas de publicações cada uma, com títulos como: Bondade, Confiança, Cooperação, Dignidade, Disciplina, Entusiasmo, Ética, Sabedoria, Superação, Perdão, Generosidade e Educação. Uma das coleções se intitula O que não cabe no meu mundo, com títulos como Rebeldia, Intolerância, Injustiça, Desigualdade etc. Talvez, no rastro do sucesso das primeiras coleções, essa inaugure nova onda de publicações que trabalharão com os antagonismos dos valores presentes nas primeiras coleções. Na quarta capa do livro, além das informações sobre autoria, são reproduzidas as capas de outros nove títulos da coleção. Há ainda um texto explicando o que o sentimento de gratidão provoca e por que é fundamental ensiná-lo às crianças. Na quarta capa, consta ainda a seguinte frase dirigida aos familiares das crianças: “Ajude seu filho a aprender virtudes lendo divertidas histórias. Ao final do livro, você vai encontrar importantes conselhos escritos por um psicólogo”. Esses textos, acrescidos do que se destina aos pais e educadores, elaborado por um psicólogo, revelam a preocupação central da publicação: operar mudanças de comportamento nos leitores, o que, como vimos acima, caracteriza a proposta pragmática, descrita por Paulino (2003). Essa proposta pragmática, ou proposta básica de ação interlocutória da narrativa (PAULINO, 2003, p. 43), não se restringe aos textos direcionados aos/às mediadores/as, mas se faz presente também na composição da obra como um todo. O Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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livro é um compilado de frases escritas em caixa alta sobre “ser grato”, indicando diversas situações e prescrevendo como devemos agir em cada uma delas (sendo sempre gratos). As ilustrações possuem traços estereotipados e apresentam uma visão unilateral da cena representada. As cores merecem uma discussão a parte. Qualquer que seja a cena retratada, são empregadas sempre as mesmas cores quentes, sem que haja uma preocupação com o momento psicológico dos personagens ou com o contexto narrado. Comportam-se como adereços meramente decorativos, desprovidos de autoria. Não se observa, assim, um uso intencional de fatores tais como cor, luz e perspectiva na busca de se construir o drama narrativo. A ausência de propósito artístico remete à computação gráfica, o que de fato se confirma na referência bibliográfica da autoria das ilustrações, na qual consta a palavra Aadarsh, nome de uma empresa internacional especializada em serviços de publicação, impressão, animação22.

Figura 10: Páginas do livro O que cabe no mundo: Gratidão, escrito por Janayna Alvez Brejo, da editora Cedic, 2011.

Disponível em http://www.aadarsh.com/index.php . Acesso em: 17 de nov. 2019. 22

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O protagonista, um urso marrom, em quase todas as cenas apresenta a mesma face sempre sorridente, independentemente do enredo. Livros como os dessa coleção coadunam-se com “a ideia de que literatura moral pode produzir bons cidadãos” (TATAR, 2004, p. 11). Entretanto, literatura é arte e como tal deve provocar inquietações, detonar jogos de significações, excitar o imaginário, expandir experiências estéticas. Todos esses elementos pressupõem que o texto dê ao leitor liberdade para criar seus próprios sentidos. Isso não significa que não aprendemos sobre diferentes áreas do conhecimento humano quando lemos textos literários. Como afiança Barbosa (1994): […] a literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura. No entanto, esses elementos ou níveis de representação da realidade são dados na literatura pela literatura, pela eficácia da linguagem literária. Então, entre esses níveis de representação da realidade e sua textualização, seu aparecimento enquanto literatura, há um intervalo – mas é um intervalo, como na música, muito pequeno e que é preciso ser muito rápido para perceber. (p. 23).

Sabemos que o processo de desenvolvimento moral das crianças é complexo, exige reflexão constante sobre suas ações e a dos outros com os quais se relaciona. A literatura cumpre um papel fundamental ao nos colocar, por meio de um processo de identificação, diante de relações com outros sujeitos e, assim, nos incitar a tomar posição, decidir, escolher, sem maniqueísmos Vejamos a seguir como um texto, por meio de jogos lúdicos e da criação de espaços ficcionais, abre possibilidades para o/a pequeno/a leitor/a vivenciar a realidade ficcional de maneira desafiadora e criativa.

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Vai, você consegue é um livro de Ole Könnecke, com tradução de José Feres Sabino. Publicado pela editora Brinque-Book, foi lançado no Brasil em 2012. Assim como no caso de Uma lagarta muito comilona, essa obra de 36 páginas possui capa dura, formato quadrado, em dimensões Figura 11: Capa do livro de Ole menores que o tradicional, Könnecke, Vai, você consegue! adequado para as mãos publicado pela Brinque-Book, 2012. dos/as pequenos/as leitores/as. O livro narra a história de um pássaro chamado Breno, que vive o desafio de saltar (para voar?) do alto do galho de uma árvore. As ilustrações são delicadas, contendo traços simples e tons suaves. O humor trabalhado tanto no texto verbal quanto nas imagens, acrescido da alegria presente na relação entre os personagens – elementos sutis que perpassam a narrativa –, aproximam o leitor do universo infantil. A autenticidade das ilustrações, o diálogo entre o texto verbal e o imagético são elementos que contribuem para provocar surpresa e para convidar o leitor a participar da construção de sentidos. Acrescenta-se ainda a adequação do texto verbal, direto e curto, que contribui para manter o leitor interessado no mistério da narrativa. Breno conseguirá? O quê? A sinopse do livro, presente na quarta capa, remete à temática da superação, da confiança em si e da perseverança: “Às vezes os desafios da vida parecem ser maiores do que nossa força e coragem. Nesse caso, só uma coisa ajuda: fechar os olhos e Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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enfrentá-los. E quando então abrimos os olhos novamente, a vida de repente está muito mais bela”. O comportamento dos companheiros de Breno frente ao seu sucesso é exemplo de companheirismo e solidariedade. Entretanto, a harmoniosa relação imagem/texto verbal, o humor presente em ambos, a delicadeza das ilustrações, a composição da obra são os elementos que tornam possível a abordagem de uma temática relativa a valores humanos sem que se perca de vista o caráter literário da obra.

Figura 12: Páginas do livro de Ole Könnecke, Vai, você consegue! publicado pela Brinque-Book, 2012.

Considerações Finais Ainda hoje uma “literatura” de cunho moral e didático se faz presente como ferramenta de disseminação de uma concepção de infância frágil, incompetente, desprovida de capacidade crítica, cujo comportamento precisa ser regulado e controlado por meio da inculcação de valores homogeneizantes. Sustenta-se uma pretensa ingenuidade infantil, com o argumento de que é preciso preservar a infância, evitando sua “contaminação” com as intempéries e vicissitudes do mundo adulto. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Esse tipo de livro visa a modelagem de comportamentos socialmente valorizados. Com esse propósito e a partir dessas perspectivas, encontram-se, no mercado editorial, livros repletos de informações e impregnados de explicações, porém, “faltosos daquilo que mais a infância necessita: metáforas e símbolos” (BRENMAN, 2013, p. 144). Em contraponto a esse tipo de produção estritamente instrucional e à concepção de infância nele imbuída, há que se conceber a literatura como fenômeno de criatividade, como arte e que, como tal, constitui um fim em si mesma. A escola tem um importante papel na formação das crianças como apreciadoras da literatura como arte. Para tanto, é preciso que as crianças não apenas aprendam a selecionar livros, mas também a vivenciar a dimensão artística dos textos literários, a compreender os jogos propostos pelas narrativas e poesias e os elementos lúdicos e estéticos que os constituem. Como esperamos ter demonstrado, a seleção de livros de literatura infantil que contemple essa dimensão artística na sua diversidade é uma das condições indispensáveis para se atingir esses objetivos. A aplicação de critérios de seleção, como buscamos evidenciar, é fundamental, quando se adota uma concepção de criança que respeita esses sujeitos em suas potencialidades. Para finalizar, o trabalho com literatura deve mostrar às crianças o quanto as histórias e poemas podem ajudar a compreender e a viver a vida em toda a sua plenitude. E isso se aplica a qualquer criança, desde a mais tenra idade. Todas elas têm direito à literatura, e são incrivelmente sábias para desfrutarem dos processos criativos, das construções simbólicas e de sentidos para a compreensão da existência humana – cada uma à sua maneira.

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Portfólio da criança: articulação entre formação inicial e formação continuada em serviço Catarina Moro Cybelle Andrade Etienne Baldez Nossa intenção com o presente capítulo é socializar e rediscutir a pesquisa-intervenção “Portfólios: uma construção educativa permanente”23. Nos interessa traçar e demarcar parte das realizações, potencialidades e dificuldades de um processo formativo acerca da prática avaliativa realizada em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI 24 ), localizado na região industrial de Curitiba. Para a elaboração desse texto procuramos ampliar nosso entendimento, buscando um olhar externo que pudesse problematizar a experiência para além das visões da pesquisadora e da orientadora da pesquisa; podendo contestar ou consolidar nossa compreensão desse trabalho como uma ação integradora entre a formação inicial e a formação continuada em serviço. Sonia Kramer (2011, p. 119), aponta que algumas nomenclaturas são comumente utilizadas para fazer referência a formação dos professores que já estão vinculados ao mundo do trabalho (dentre elas indica a de sua predileção), tais como: A pesquisa se deu ao longo do ano de 2016, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), da graduação em Pedagogia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), de autoria de Cybelle Aparecida Batista de Andrade, a qual identificamos, ao longo do capítulo, como sendo a professora-pesquisadora; orientada por Catarina Moro, professora da Universidade. 24 A unidade pesquisa não será identificada no texto, chamaremos “CMEI”. 23

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“formação permanente, nome mais antigo, formação continuada (consagrado pela lei) ou formação em serviço, denominação que prefiro apenas por sua clareza: trata-se de profissionais em formação no seu lugar de trabalho”. Acompanhando o disposto nas Diretrizes para a Educação Municipal (CURITIBA, 2006, p. 33), observamos a união dos dois últimos termos apontados por Kramer (2011), delimitando que: “a formação continuada em serviço tem papel fundamental como espaço de reflexão sobre a prática atrelada às expectativas de um profissional que atue de modo indissociado nessa etapa educacional”. Essa formação acontece por meio de cursos/estudos ofertados durante a hora permanência25. Este estudo demonstra o momento em que ambas as formações – inicial e continuada em serviço – caminham juntas na discussão sobre o uso de portfólio na Educação Infantil. É pertinente pontuar que a pesquisa-intervenção que ora apresentamos e discutimos foi concretizada como projeto formativo e levada a efeito pela pesquisadora, que na ocasião também atuava como professora na unidade pesquisada. Nesse sentido, o objeto da intervenção – os portfólios das crianças – foi eleito em virtude do reconhecimento da pesquisadora, na condição de professora da Unidade, sobre as necessidades e fragilidades da equipe docente quanto ao entendimento e elaboração desse recurso, no que diz respeito a observar e apoiar o desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Na ocasião do desenvolvimento do trabalho, o CMEI contava com 174 crianças matriculadas e 19 professoras de Educação Seguindo o disposto no art. 8º da Lei Municipal 12.348/2007, a hora permanência correspondente a 20% (vinte por cento) da jornada de 40 (quarenta) horas semanais, destinadas a atividades de planejamento, estudos, aperfeiçoamento e atendimento às famílias. A formação continuada é realizada pela Secretaria Municipal de Educação por meio do Departamento Municipal de Educação Infantil, durante um período intitulado como “Semana de Estudos Pedagógicos”. 25

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Infantil26, apesar de constar na Proposta Pedagógica do CMEI, que a unidade atendia 150 crianças com 20 profissionais. De acordo com as gestoras, essa diferença se deve ao chamado “dimensionamento flutuante”, que significa o atendimento conforme solicitação da comunidade, a partir de um movimento em que a administração das unidades leva em conta a demanda para, assim, ofertar as vagas o mais próximo possível da necessidade. A intervenção teve como partícipes dezessete, das dezenove professoras do CMEI, propondo uma intervenção nos processos avaliativos, especificamente, com relação ao portfólio que, até então, era construído de forma padronizada. A gestão da Unidade – direção e coordenação pedagógica – também se envolveu de modo colaborativo ao longo do trabalho, propondo uma intervenção nos processos avaliativos realizados na unidade. Em síntese, a intencionalidade do projeto foi desmembrada em uma tríade: levar às profissionais práticas de referência e textos da literatura atual que discutiam aspectos da avaliação para a Educação Infantil; aprofundar as discussões sobre a temática, promovendo maior compreensão e organização acerca dessa prática formativa e avaliativa, em encontros realizados no tempo destinado pela rede municipal para a formação das professoras, nas horas-permanência e sábados letivos; e, por fim, sistematizar e construir portfólios, respeitando as características indeléveis do seu contexto. Durante os encontros, ao longo da realização da pesquisa 26 A

partir de 2014, foi criada a carreira de professor de educação infantil no município, pela Lei nº 14.580, de 22 de dezembro de 2014, que reestruturou a carreira dos profissionais da Educação Infantil da Prefeitura Municipal De Curitiba, o que implica até o momento que os profissionais que atuam diretamente com as crianças, de bebês até os 6 anos, nas turmas dos CMEIs fazem parte desta nova carreira e são formadas a maioria em Pedagogia e Normal Superior ou em cursos de Magistério – Nível Médio.

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intervenção, não foi deixado de observar os documentos que normatizavam a Educação Infantil na rede municipal de educação de Curitiba, tais como: as Diretrizes para a Educação Municipal, a Proposta Pedagógica e o Regimento do CMEI. O intento em trazer para a formação em serviço das professoras a relação entre as práticas e textos de referência em avaliação e os textos normativos, evidenciando-se as características da unidade, coaduna com a seguinte consideração de António Nóvoa (1988, p. 128-9, grifos no original): “Formar não é ensinar às pessoas determinados conteúdos, mas sim trabalhar colectivamente em torno da resolução de problemas. A formação faz-se na ‘produção’, e não no ‘consumo’, do saber”. A experiência de avaliação na Educação Infantil é fundamental e inerente ao cotidiano educativo, o que deve tornála objeto de atenção no processo de formação dos profissionais que atendem as crianças pequenas. Na perspectiva das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2009), aspectos que pronunciem a subjetividade das vivências infantis são substancialmente solicitados nos instrumentos e processos das práticas avaliativas, confrontando-se com o que se considera aprendizagem. Assim sendo, o que se registra sobre a criança revela, denuncia as concepções e as posturas das professoras. As questões mais comuns e reiterativas àqueles que devem se ocupar desse tema são: Qual é o objetivo da avaliação na Educação Infantil? O que devemos avaliar? Como devemos fazer a avaliação? Os ambientes educativos, a rotatividade e a heterogeneidade formativa dos profissionais demandam a responsabilização da instância mantenedora (seja uma rede pública ou privada) em oferecer suporte suficiente através da formação continuada em serviço. Enquanto instituição formadora de ensino superior, considera-se que o tema, além de dever ser conteúdo de disciplinas de caráter teórico e prático, na Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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circunstância de realização do TCC, constitui uma oportunidade de estabelecimento de parceria efetiva com as instituições da Educação Básica, com tal finalidade, além de outras possíveis. No caso específico desse capítulo, a leitora e o leitor, irão se deparar com o relato e a discussão de uma metodologia de pesquisa-ação como meio de mudança da compreensão sobre processos e das práticas educativas e de reflexão sobre a relação teórico-prática à partir de ações efetivas, que confrontam a realidade, questionam e propiciam possibilidades à formação continuada pela aproximação entre a instituição formadora – Universidade - e o contexto educativo da prática docente. Sobre o Portfólio como instrumento de avaliação Na Educação Infantil, a elaboração de portfólios, inclusive e, mais especificamente, os das crianças, vem sendo defendida por muitos pesquisadores, coordenadores pedagógicos e professores como uma ação essencial para o acompanhamento e a avaliação da aprendizagem, do desenvolvimento e da trajetória de cada uma no interior desta etapa formativa e na transição para o Ensino Fundamental (PARENTE, 2004; SAVIO, 2006; FERNANDES; FREITAS, 2007; RAIZER, 2007; RAMIRES, 2008; AZEVEDO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008; MORO, 2011). O portfólio é uma das ferramentas do trabalho educativo que, a depender de como for compreendido e realizado, pode se constituir em mais um elemento de valorização da criança. Quando compreendemos a criança como sujeito interatuante, interlocutor do seu desenvolvimento e da formação da sua identidade, produto e produtor de cultura, podemos: concretizar o portfólio com a sua participação e propor modos de interação com esse instrumento de modo a torná-lo elemento com o qual e a partir do qual a criança vivifica suas conquistas e seus desafios. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Savio (2006), discutindo esse instrumental, argui que não se pode “avaliar a criança individualmente sem que se considere seu estar em relação, sem sopesar em qualquer procedimento avaliativo os contextos dos quais a criança participa” (p. 6, tradução nossa). Quando pensamos na avaliação educacional nos primeiros anos de vida, precisamos considerar a criança, os contextos dos quais ela participa e também o papel dos adultos que estão em relação, sobretudo o profissional docente. Nesse sentido, como assinala Hilda Micarello (2010), o adulto precisa ter um olhar sensível e acolhedor sobre o que as crianças realizam, pois elas têm uma forma peculiar de agir sobre o mundo e de dar significado às suas experiências. Todas as crianças nascem com infinitas possibilidades para desenvolver múltiplas competências, como: brincar, correr, pular, cantar, desenhar, escrever. Elas têm competência para construir conhecimentos dos mais elaborados, adaptar ideias que ainda não são tão claras e, utilizá-las de forma útil e criativa para seus questionamentos sobre o mundo (CARVALHO; KLISYS; AUGUSTO, 2006). Outras proposições para acompanhar e registrar as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças pequenas tem despontado no intuito de se efetivar a avaliação em contextos educativos, com foco na dinâmica de observar-avaliardocumentar (CARR, 2001; CLARK; MOSS, 2011). Independente das especificidades de cada abordagem, e estas existem, uma questão proposta por Savio (2006) é bastante pertinente: a avaliação é e deve ser sempre um relacionamento: entre a identidade educativa da escola, os objetivos que esta define, os procedimentos, as propostas através das quais os professores tentam realizá-los e os modos com os quais as crianças respondem a tais propostas. (SAVIO, 2006, p. 6, tradução nossa).

A elaboração de portfólios permite e prevê a participação Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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ativa das crianças, pois, esse material constitui-se em instrumento de avaliação, mas, acima de tudo, trata-se de um documento que relata o processo educativo. A contribuição das crianças é possível e seus relatos enriquecem o material a compor os portfólios, assim como seus desenhos, entre outras formas de testemunho sobre como elas se relacionam com os conteúdos dos registros que vem a compor o portfólio. Ou seja, ao compor o portfólio é de grande relevância dar voz e vez às crianças. A construção de portfólios constitui uma tarefa de suma importância para as crianças, pois as coloca continuamente em contato com sua aprendizagem (FERNANDES; FREITAS, 2007; AZEVEDO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008; MORO, 2011). Além disso, também é um instrumento de avaliação importante, pois serve para valorizar os feitos das crianças, suas aprendizagens, seu crescimento. No portfólio, registra-se de maneira concreta o caminho, a trajetória de cada criança ao longo das suas experiências na Educação Infantil. Funciona como um "baú de memórias" (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 32). Para isso, contudo, é muito importante que as instituições de Educação Infantil não fiquem presas ao cumprimento de tal tarefa em virtude do calendário, entregando simplesmente tais documentos, os portfólios, sem torná-los efetivos nas experiências educativas das crianças (MORO, 2011). No que tange a voz das crianças Shores e Grace (2001) sugerem, além de outras ações como as entrevistas que, de acordo com elas, são “boas oportunidades para você discutir informações e ideias com as crianças em uma situação natural, ao mesmo tempo em que se avalia seu domínio de conceitos e de ideias importantes” (SHORES; GRACE, 2001, p. 62). Nesse sentido, Azevedo e Oliveira-Formosinho (2008), por meio de uma pesquisa a partir de entrevistas com as crianças, elucidam um pouco mais sobre o que quer dizer realmente ouviLeituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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las. As autoras explicam que as entrevistas podem ter diversos formatos e que sua utilização deve levar em conta a idade da criança, o contexto e informação que se quer ter. Além disso, reafirmam que a entrevista, quando bem realizada, auxilia a criança a tomar consciência dos seus processos de autoavaliação e a compreender sua aprendizagem. Alguns testemunhos apresentados no texto revelam como as crianças “percepcionam o seu portfólio como um veículo de conexão entre o passado e o presente e que veem nessa conexão um tempo de aprendizagem e desenvolvimento” (AZEVEDO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008, p. 121). Inúmeras respostas das crianças em entrevistas realizadas pelas autoras revelam uma consciência de que a criança “pode participar porque é respeitada e perspectivada como um sujeito de direitos cujo primeiro direito é o poder de exercer os seus próprios direitos” (AZEVEDO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008, p. 129). De acordo com Moro (2011), a participação da criança pode acontecer desde a escolha das produções que comporão o portfólio, a momentos para se ver e rever o seu percurso de descobertas e feitos nele contemplados. As professoras, ao apreciarem com a criança o conteúdo do portfólio, podem avaliar juntamente com ela as práticas educativas propostas no interior do cotidiano institucional, ao contrário de fazê-lo de um modo verticalizado, no qual o professor ou professora avalia todas as crianças do grupo de forma padronizada. Ao compor o portfólio, conjuntamente, profissionais e crianças compreendem melhor o caminhar dos objetivos e os reelaboram. Gandini (2002) explica que fotos, vídeos, anotações, desenhos, escrita, pareceres, relatórios, portfólios são itens que fazem parte da categoria documentação pedagógica. Para esta autora, a “documentação pedagógica” é um processo educativo que dá visibilidade ao trabalho realizado na instituição, apoiando Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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as crianças em seus diferentes saberes, como uma ferramenta de escuta e orientação. Não é uma mera coleta de dados, mas uma observação atenciosa e consciente para futuras análises em favor do processo avaliativo. Rever o portfólio com as crianças contempla o modo de avaliação formativa e diagnóstica, ao permitir ressignificações seja para os pequenos ou para as professoras, a partir dele. A professora pode reelaborar seu planejamento construindo um processo educacional mais articulado com as demandas, interesses e necessidades das crianças do seu grupo e contemplar nele as muitas vozes das crianças. Shores e Grace (2001) chamam a atenção para o risco de que, a padronização dos portfólios arruinaria o verdadeiro benefício da avaliação com portfólios, o qual é a base para um processo de ensino individual e íntimo centrado na criança. Onde, infelizmente, existe pressão para dados mensuráveis, a avaliação com portfólio pode enfatizar a preocupação com o progresso das crianças em caminhos limitados ou na comparação entre elas. (SHORES; GRACE, 2001, p. 18).

Para Moro (2011), os fazeres singulares de cada criança devem estar considerados e os professores e professoras precisam abranger a diversidade e particularidade das crianças, distanciando-se de qualquer tipo de padronização. No portfólio, o processo de documentação, longe de configurar-se como simples recolha ou arquivamento dos materiais, das observações, configura-se como um processo ativo, intencional, compartilhado e produtor de conhecimento. O portfólio de avaliação possui uma natureza interativa, que possibilita aos adultos e crianças interagirem e colaborarem no sentido de potencializar e melhor usufruir das práticas educativas (MORO, 2011). O portfólio implica o desenvolvimento do pensamento Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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reflexivo e sem isso ele não faz sentido. Importa destacar que o portfólio demonstra a trajetória da criança num determinado momento, tendo como base documentos coletados em cenários reais, selecionados e justificados quanto aos conhecimentos construídos, exigindo que o docente crie situações para que a criança reflita sobre o que está explorando, descobrindo (ALVARENGA; ARAÚJO, 2005). Os portfólios também se constituem em oportunidades para criar a consciência acerca do fazer docente como um fazer político, que implica em tomadas de decisão, desde o estabelecimento sobre quais são os objetivos formativos daquela instituição; quais estratégias serão colocadas em prática, diante da intenção de contribuir na formação das crianças, seja a partir de princípios participativos, democráticos, com vistas a autonomia e coresponsabilidade pelas crianças ou o oposto disto. O curioso é que independente de se ter ou não consciência a esse respeito, essa escolha existe, seja por haver intencionalidade ou, ao contrário, por omissão (MORO, 2017). Fernandes e Freitas (2007) enfatizam o aspecto formativo, que toma a avaliação como algo que advém pelo processo educativo mais amplo e tem o objetivo de reorientá-lo. A avaliação não cumpre seu papel quando realizada ao final dos processos. Uma avaliação com caráter formativo é aquela na qual o docente está atento aos processos, entendendo que a avaliação é essencial para dar continuidade aos percursos educativos. Para os autores: 1. É fundamental transformar a prática avaliativa em prática de aprendizagem. 2. É necessário avaliar como condição para a mudança de prática e para o redimensionamento do processo de ensino/aprendizagem. 3. Avaliar faz parte do processo de ensino e de aprendizagem: não ensinamos sem avaliar, não aprendemos sem avaliar. Dessa forma, rompe-se com a falsa dicotomia entre ensino e avaliação, como se esta fosse

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| 125 apenas o final de um processo. (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 23).

Além disso, o argumento de que “para se instaurar um debate no interior da escola, sobre as práticas correntes de avaliação, é necessário que explicitemos nosso conceito de avaliação” (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 20), foi considerado orientador para a pesquisa aqui em debate. Os autores defendem que: É possível concebermos uma perspectiva de avaliação cuja vivência seja marcada pela lógica da inclusão, do diálogo, da construção da autonomia, da mediação, da participação, da construção da responsabilidade com o coletivo. Tal perspectiva de avaliação alinha-se com a proposta de uma escola mais democrática, inclusiva, que considera as infindáveis possibilidades de realização de aprendizagens. [...] Essa concepção de avaliação parte do princípio de que todas as pessoas são capazes de aprender. (FERNANDES; FREITAS, 2007, p. 20).

A partir disso, pode-se pensar sobre o fato de que, ao avaliar, o docente é influenciado pelas suas concepções de educação e que estas orientam as escolhas dos instrumentos e procedimentos avaliativos. É muito importante compreender o potencial que as concepções de avaliação e educação têm em influenciar nas intenções e usos da avaliação, que sempre estão relacionadas e perspectivadas com os princípios que o professor ou professora adota, entendendo a função que a educação deve ter na sociedade que se apresenta de forma heterogênea, com sujeitos que aprendem de formas e em tempos diversos a partir das diferentes experiências pessoais e anteriores. Essa perspectiva exige uma prática avaliativa que não deve ser concebida como algo distinto do processo de aprendizagem, que se realiza de forma processual ao longo de todo o período de trabalho.

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A intervenção no CMEI No primeiro encontro da pesquisa, realizado com o grupo de professoras e gestoras participantes, três questões foram propostas: 1) O que você entende por avaliação processual, diagnóstica e contínua? 2) O que você entende por documentação pedagógica? 3) Quais suas expectativas em relação à proposição de trabalharmos em conjunto acerca de portfólio e avaliação dúvidas, questionamentos, outros aspectos considerados relevantes? Houve um debate sobre as percepções das participantes quanto às questões propostas, sucedido por uma discussão no grupo de orientação do TCC na Universidade. A partir disso, pensou-se um cronograma para o percurso (construído com base no calendário oficial da unidade e nas proposições da diretora e da pedagoga), projetando-se encontros que seriam realizados em momentos de hora-permanência. Fez-se a opção pela proposição de material para estudo a partir de textos mais sucintos, com linguagem fluída e prática, para aguçar a curiosidade e o interesse das professoras, partindo da realização da leitura nos encontros, cuja duração média, era de uma hora e meia. O quadro, a seguir, lista os textos que foram contemplados nos encontros: QUADRO 1: Textos estudados durante a pesquisa “Portfólios: uma construção educativa e permanente” ENCONTRO

1

TEXTO

“Avaliação e transições na Educação Infantil” “(Desa)fios da Avaliação”

2

“A construção de práticas de registro e documentação no cotidiano do trabalho pedagógico e análise de Portfólios diversos”

AUTOR/ANO MICARELLO, 2010 MORO, 2011 MARQUES, 2010

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“Referenciais para estudo e planejamento na Educação Infantil” “Duas reflexões sobre a documentação” “O registro de práticas pedagógicas produzidos por professores” “Avaliação em Educação Infantil: sobre refletir acerca de identidades” “A documentação da aprendizagem: a voz das crianças”

CURITIBA – SME, 2010 GANDINI; GOLDHABER, 2002 MARQUES, 2010 MORO, 2017 AZEVEDO; OLIVEIRAFORMOSINHO, 2008

Fonte: As autoras, 2019.

A dinâmica de estudo nos encontros envolvia a leitura dos textos na íntegra e, em alguns casos, principalmente no 2º e 5º encontro, com a dissertação de Amanda Marques (2010), optouse por trabalhar com trechos selecionados previamente, para que a discussão e aprofundamento fossem mais profícuos. Já no início da intervenção, percebeu-se uma grande receptividade por parte das professoras nos momentos de estudo dos textos selecionados. Era interessante perceber tanto o que falavam a respeito dos temas em debate, como também aquilo que sinalizavam de modo não verbal, mostrando o quanto a discussão estava realmente na pauta de interesse do grupo, o quanto as professoras estavam envolvidas. Em dois encontros levamos ao CMEI portfólios advindos de um curso de especialização da UFPR para apreciação e análise e essa foi, sem dúvida, a etapa que as professoras mais gostaram, pois ficaram muito entusiasmadas com a criatividade dos autores daqueles materiais. Eram portfólios com diversas modalidades de confecção e materialidades distintas; o que chamou bastante a atenção das professoras. O objetivo de apresentar este material para o manuseio foi oportunizar às professoras um momento para pensarem sobre as narrativas ali presentes; os materiais, inusitados, acessíveis, práticos; condições de manuseio; espaço que necessitariam para serem acondicionados. Pôde-se perceber Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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que elas já tentavam, de alguma forma, relacionar aquelas ideias para a realidade do CMEI. A partir dessa etapa, o grupo decidiu fazer os portfólios das turmas do CMEI em cartolina, para aproveitar os benefícios do tamanho deste material. Todas as professoras disseram que organizariam os portfólios em um local acessível, que fosse um convite ao manuseio em sala. No terceiro encontro o foco se voltou efetivamente para o planejamento e avaliação, seguindo os referenciais municipais. Os conteúdos para esse encontro foram organizados em: avaliação como prática educativa e gestão do tempo para trabalhar nos portfólios. O objetivo era incorporar ao Roteiro Semanal 27 o registro para os portfólios, organizando o tempo para sua confecção e apreciação como parte da prática educativa. Desse modo, o desafio lançado para as professoras, foi o de reorganizarem os roteiros semanais para tal. Este encontro foi relativamente difícil porque o tempo foi dividido com a pedagoga, que estava com outras demandas que tomaram mais tempo do que o esperado. Mesmo assim, foi possível discutir questões importantes que retomaram combinados dos encontros anteriores, como a organização dos roteiros semanais. O intuito foi auxiliar as professoras da unidade com relação ao acesso a esses documentos, pois ficou claro que todas elas (exceto a professora-pesquisadora, além da diretora e pedagoga da unidade) desconheciam a fonte ou local onde os roteiros Na rede municipal de ensino de Curitiba, o Roteiro Semanal “é um instrumento que, ao ser utilizado na organização do trabalho do educador/professor, colabora para a ampla visão das atividades a serem desenvolvidas em um período determinado” (CURITIBA, 2010, p. 17). Nele são especificadas as práticas em relação à: Organização do dia: ajudantes, rotina, frequência das crianças, etc; Roda de conversa; Leitura: Fruição Leitura pelo professor/educador; Contação de histórias; Desenho; Movimento; Outras atividades relacionadas às áreas de formação humana (ex.: sequências didáticas, que devem ser detalhadas no planejamento diário); Cantos de atividades diversificadas; Leitura pela criança; Projeto (quando estiver sendo proposto). 27

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estavam arquivados. Essa constatação se deu a partir de uma fala das professoras quando questionada sobre o roteiro semanal: “Não sei, a diretora que imprime quando a gente precisa”. Essa fala pode não parecer problemática, demonstrando apenas procedimentos corriqueiros de organização. Porém, revela um teor de engessamento que existe nas práticas que organizam o trabalho pedagógico das professoras de Educação Infantil, que muitas vezes sequer sabem sobre meios e fins dos instrumentos

que usam no dia-a-dia. Como se pode pretender uma atuação autoral das professoras com uma limitação como esta? O fato de as profissionais não terem conhecimentos dessa natureza, dificulta o trabalho delas, no sentido de adaptarem as práticas conforme a necessidade. O que queremos enfatizar é: o cotidiano da Educação Infantil exige flexibilidade de planejamento, avaliação e execução, isso requer o domínio de alguns processos, neste caso, como podemos fazer as necessárias adequações se não sabemos sobre eles? Outra ação deste encontro foi a apresentação de um material que retomou a discussão do primeiro encontro, com os pontos principais dos textos lidos e discutidos até então. A intenção era deixar este material de fácil acesso, funcionando como apoio a todas as professoras. Por isso, a professorapesquisadora responsável pelo trabalho na unidade, dispôs esse e outros materiais na parede das salas para facilitar a visualização, uma vez que foi observado o costume de, ao receber os textos, estes serem guardados em pastas, que quase sempre ficavam “escondidas”, dificultando a retomada dos textos para leitura e estudo. Os objetivos do sexto encontro foram: compreender o portfólio como um instrumento que retrata a postura política do

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profissional frente ao trabalho educativo e sensibilizar sobre a possibilidade de se construir portfólios de forma compartilhada. No sétimo encontro o escopo foi possibilitar a reflexão para o uso de entrevistas com as crianças e o conteúdo se voltou para as entrevistas como exercício da escuta às crianças e aprofundamento na construção compartilhada dos portfólios. Nadolny e Garanhani (2011, p. 238) pontuam que “a prática reflexiva pode ser considerada como uma permanente busca de significado para as experiências docentes vividas pelo professor”. Nesse sentido, as autoras reforçam que, “para que haja a reflexão é preciso que as estratégias propiciem significado para as experiências cotidianas do professor por meio de um repensar permanente sobre suas concepções e sobre o seu modo de agir”. Após os encontros aqui explicitados, podemos identificar os momentos de reflexão da prática e as estratégias utilizadas que possibilitaram a construção didático-pedagógica enquanto formação continuada (em serviço), como fica demonstrado no quadro a seguir: QUADRO 2: Aspectos construídos no processo formativo Prática reflexiva

Estratégias

Estudo dos textos selecionados Apreciação e análise de portfólios (UFPR)

Leitura compartilhada como prática coletiva

Inclusão dos portfólios nos roteiros semanais Acessibilidade ao portfólio Caráter político da prática do portfólio

Planejamento para operacionalizar o portfólio como prática educativa Visibilidade da avaliação para dar-se a conhecer Cooperação e democratização da avaliação pela confluência de vozes no portfólio (das professoras e das crianças)

Repertório de referências e possibilidades para a elaboração dos seus próprios portfólios

Fonte: As autoras, 2019.

A integração entre a formação inicial e a continuada em Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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serviço, durante o projeto desenvolvido no CMEI, proporciona um aprimoramento das práticas das professoras, junto a utilização do portfólio, bem como o desenvolvimento acadêmico da professorapesquisadora. Os aspectos desenvolvidos nesse duplo processo formativo, contribuíram na constituição da profissionalidade docente e na construção de sustentação didático-pedagógica das professoras que atuam com as crianças pequenas na instituição pesquisada. Revelações e considerações decorrentes da pesquisa-ação Toda intervenção ao ser posta em prática encontra algumas barreiras, nem sempre antecipadas no projeto, algumas podem ser esperadas e outras podem mesmo nos tomar de surpresa. Nesse caso, o próprio cronograma do projeto foi pensado de forma otimista, sem levar em conta as possíveis situações adversas que se dariam ao longo do ano letivo. O intuito era enfrentá-las o quanto possível, quando e, se realmente fossem manifestadas. As citadas situações (corriqueiras nas instituições públicas de Educação Infantil em Curitiba), infelizmente se colocaram e comprometeram de certa forma o andamento da pesquisaintervenção. A situação de mais obstrutiva foi a redução da horapermanência no CMEI. A regra dispõe que as professoras de Educação Infantil têm direito a 20% da jornada semanal (40 horas) em hora-permanência, o que deveria perfazer 8 horas por semana. Porém, mesmo no início da realização do projeto, estas já estavam acontecendo em percentual inferior ao previsto e, totalizava 4 horas por semana. Essa situação se dava pela ausência de professoras para compensação da carga horária referente à horapermanência na unidade, decorrente de faltas ou do quadro de pessoal incompleto e, para tal havia o que fazer. A manutenção de pelo menos 4 horas semanais já era uma estratégia da gestão, por Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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reconhecer a importância e fazer o possível, para contemplar na jornada semanal das professoras o tempo de planejamento/preparação das práticas educativas com as crianças. No final de 2016, houve um agravamento desta situação no CMEI, pois mais profissionais se afastaram por questões de saúde e também não há previsão de reposição para tais ocorrências. O ano letivo caminhou para o encerramento, com horas-permanência reduzidas, escassas e com as equipes de cada turma as realizando (quando possível) separadamente e, sem reposição. Mesmo diante desses “entraves”, o projeto da pesquisa de intervenção seguiu seu curso. No decorrer dos encontros, após leituras, debates, apropriações e refutações, ou seja, após o processo que caracterizou como uma formação continuada em serviço que se fazia em relação, as professoras foram formulando outra concepção sobre a avaliação. Pudemos observar algumas mudanças nas práticas das professoras, durante e após o seu desenvolvimento. É possível, na observação dos portfólios anteriores em contraposição com os feitos em 2016, visualizar as transformações do olhar decorrentes das discussões e reflexões no coletivo. Percebe-se ainda que de modo muito sutil, houve um realce à criança como protagonista, como sujeito que expressa sua opinião e tem a mesma registrada pela professora, não ocorrendo somente o registro da atividade realizada, e sim como a criança lidou com aquilo que se propôs. Uma outra configuração que foi observada em todas as turmas, do maternal ao pré, diz respeito à exposição e acomodação dos portfólios no espaço de cada turma. Em todas elas, as caixas com os portfólios eram deixadas no alto de armários ou prateleiras, o que dificultava o acesso e o manuseio. Após o projeto realizado essa disposição mudou e, os portfólios passaram a ser colocados nas partes mais baixas da sala, ao alcance das mãos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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e do olhar de todos que circulam pelo espaço. Em relação ao conteúdo, os portfólios, anteriormente, apresentavam registros padronizados. As pastas organizavam desenhos das crianças e, em cada uma delas, tinha uma legenda igualmente escrita para todas. As legendas traziam sentenças como: “Meu primeiro riscante”; “Gostei dessa atividade”. A partir das intervenções da pesquisa, os portfólios foram reorganizados e passaram a fazer parte da rotina da turma. Os conteúdos nos “novos” portfólios manifestavam maior participação das crianças e a construção em conjunto, em que várias delas participavam dos momentos de registro de seus portfólios. As professoras responsáveis exercitaram o registro, principalmente, de rodas de conversa em que se escrevem as falas das crianças acompanhadas de seus desenhos. As falas captadas registram a cultura de cada criança e algumas particularidades de seus cotidianos dentro e fora do CMEI, como por exemplo: “Gosto quando estou em casa com a minha mãe” ou “Gosto da hora de vir pro CMEI” e ainda “Adoro a hora de comer”. Os portfólios da turma Maternal IIA apresentam também historinhas criadas pelas professoras e crianças como o exemplo a seguir: Tem um monstro no bosque. Ele mora em uma caverna bem grande. Tem muitos olhos e quatro braços. Tem bolinhas pelo corpo e tem cheiro de sovaco. Gosta de comer mingau de chocolate e frutas. Dorme em uma cama feita de folhas. Gosta de crianças, mas tem muita vergonha e não vem no CMEI. (ANDRADE, 2016, p. 57).

Percebeu-se, ainda no material analisado, registros de acontecimentos ocasionais como: “Hoje um passarinho bateu no vidro da janela da nossa sala. Ficamos muito tristes, cuidamos dele, mas ele morreu” (ANDRADE, 2016, p. 57). Registros de falas das crianças comprovam o diálogo que existiu sobre essa passagem, que trouxe um sentimento de tristeza para a grupo: “o passarinho bateu no vidro e fechou o olho” (ANDRADE, 2016, p. 57). Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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No Maternal II B (MII B), os portfólios anteriores de todas as crianças apresentavam os mesmos desenhos, sendo as legendas iguais para todos, identificando a área de formação humana (nome dado a cada área do “currículo” da Educação Infantil da rede municipal) daquela atividade. Não havia nenhum registro de fala e a quantidade de fotos era bastante reduzida. Pode se perceber mudanças em relação aos portfólios em decurso da intervenção realizada nesta unidade. Os portfólios de ambas as turmas de Maternal II revelam uma maior participação das crianças. Os do MII B são caracterizados por fotos das crianças, desenhos que elas escolhem e sobre os quais relatam algo relacionado, como a transcrição da fala da criança. Nessa turma, as crianças escolheram não somente os desenhos, mas as fotos que fariam parte do seu portfólio. Nos registros, as professoras contemplaram as preferências das crianças em relação às brincadeiras e companhias, além do que elas gostam de fazer na unidade. Em relação às duas turmas de Pré I, com 32 (trinta e duas) crianças atendidas com 2 (duas) profissionais responsáveis cada uma, observamos que antes os registros eram realizados de forma menos padronizada se comparado com as demais turmas. Nos portfólios dessas turmas, apareciam registros que abordavam a exploração que a criança fazia ou não do espaço externo, sua oralidade, revelando que o CMEI oferecia atividades de leitura, oralidade e escrita pelas crianças. Abordava a arte como suporte para percepção da emoção, intuição, criação como elementos fundamentais para a constituição humana. As fotos escolhidas eram exclusivas, sendo que a criança a qual pertence o material está sempre contemplada em um momento de vivências saudáveis na unidade. Após o projeto realizado, os registros encontrados no Pré I A caracterizam um trabalho sequencial em que as professoras Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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valorizavam as conquistas das crianças, com destaques para o que elas sabiam fazer antes e o que sabiam na ocasião da confecção do portfólio. Destacam-se registros de preferências das crianças como: o que gostavam de comer e de brincar. Foram registradas também, experiências de pesquisas com os chamados bichinhos de jardim. Tendo uma das crianças feito o seguinte relato: “a borboleta vem do casulo, a joaninha saiu do casulo amarelinho”. Nos portfólios da turma em questão, as crianças se lembravam do que se tratava o desenho que produziram anteriormente: “Eu desenhei o jacaré dos indiozinhos”, “Eu desenhei o piolho de cobra, a Bianca foi quem encontrou ele lá fora” ou “Eu gosto de desenhar eu mesma porque eu sou linda”. Os portfólios trazem ainda registros dos conhecimentos que as crianças têm como, por exemplo, o domínio do seu nome: “A Alanis já identifica algumas letras do seu nome como A, L, N”; ou então, os materiais que utilizou para produzir algo: “Eu usei revista, cola e tesoura”. Com relação aos registros do Pré I B, percebeu-se que contemplaram as falas das crianças e conhecimentos que elas demonstraram ter ao realizar determinadas atividades, como em uma prática de culinária, por exemplo: “Agora eu tenho que untar a forma”. Os portfólios da turma, na ocasião, passaram a registrar atividades que elas vivenciaram como o passeio com pôneis da semana das crianças e visita ao museu Oscar Niemeyer. Esses registros são seguidos sempre de relatos das crianças como: “Eu gostei da vaquinha e do olho, e de pegar nas plaquinhas que fica dentro do olho” (Museu). Passaram a conter também os desenhos das crianças e explicações que elas davam sobre eles: “fiz um quadro, escrevi o meu nome, o nome do Fernando e da Heloísa”. Havia relatos também das brincadeiras que as crianças constroem com os colegas e as relações estabelecidas entre eles: “Eu brinquei muito de boneca com a minha amiga”. Os portfólios têm muitas Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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falas das crianças: “Meu dia foi ótimo. Gostei de brincar embaixo das cabanas que as professoras fizeram”. Eles arquivam também desenhos, mas ainda não possuem fotos. Para saber das profissionais sobre suas considerações acerca do trabalho realizado foi solicitado a elas que fizessem, ao final dele, de forma livre, um registro escrito sobre aspectos que ponderavam como pontos positivos e negativos da intervenção. Três equipes responderam, além da diretora da unidade. Dentre os apontamentos realizados pelas professoras, os pontos positivos foram: a desconstrução da “visão antiga” sobre portfólios e construção gradativa de uma “nova visão” sobre eles; a participação das crianças na construção deste tipo de documentação, ressaltando que “eles gostam muito”; a possibilidade de apreciar a qualidade das atividades propostas e visualizar as potencialidades das crianças; o interesse das crianças pelos portfólios que gera “participação, capricho e interesse” quando elas veem o documento “tomando forma”; a possibilidade que as profissionais afirmam de fazer uma autocrítica; a qualidade dos textos socializados; o fato de o grupo ter “comprado a ideia”; a ampliação dos conhecimentos das professoras em relação aos instrumentais e às estratégias de avaliação. Como pontos negativos, ponderados pelas professoras, destacou-se: a construção dos portfólios (na perspectiva proposta) como sendo “trabalhosa”. A questão mais recorrente, presente em todas as respostas, tratava da dificuldade com o tempo, ou seja, a falta dele no cotidiano do CMEI. Para a dupla de orientadora e pesquisadora da Universidade na realização do TCC, cabe destacar: - a adesão e participação das professoras de diferentes turmas do CMEI ao longo dos encontros, possibilitando a elaboração de portfólios caracterizados pela participação das crianças; e - o Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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enriquecimento das discussões e das observações atentas e qualificadas que se concretizaram nos registros nos portfólios. A duplicidade de funções da professora-pesquisadora na unidade foi um dos aspectos críticos, seja pela dificuldade de organização do tempo pelas responsabilidades em sala; seja, pelos processos de hierarquização, na estruturação administrativa e pedagógica no interior da unidade, gerando algum estranhamento na relação com as gestoras - pedagoga e diretora – que precisaram ser discutidos a fim de possibilitar o trabalho de forma mais horizontal. Fechando algumas ideias para abrir outras Embora a pesquisa não tivesse como foco as condições de trabalho vividas pelas professoras, temos que admitir que foi influenciada e sofreu consequências em decorrência das mesmas. Sobre isso, vale considerar as ideias de Miguel Arroyo (2003) que nos auxiliam na reflexão sobre o papel das instituições escolares na (de)formação profissional, ocasionada por condições e organizações que muitas vezes são desmotivadoras, como a hierarquização acentuada, os baixos salários, a falta de infraestrutura e autonomia; que respaldam algumas das considerações feitas nesse trabalho. É preciso que se cultivem práticas que não deseduquem os profissionais e que os conscientize quanto à responsabilidade de todos os envolvidos, para não perpetuar práticas que inequivocadamente consideram os profissionais como meros executores das definições tiradas nas suas instâncias superiores. Ao mesmo tempo em que dizem respeito à organização do trabalho escolar, esses aspectos impactam na formação, seja a inicial, ou a continuada, uma vez que o espaço para o exercício criativo e intelectual do professor vai lhe sendo usurpado, denegado. (MORO, 2009, p. 137). Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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A pesquisa-intervenção evidenciou ainda, que a avaliação na Educação Infantil, frente às suas peculiaridades, requer espaço em um programa de formação continuada e em serviço, mesmo às professoras com mais tempo de carreira nessa etapa da educação básica. A proposição de articular a formação inicial com a formação continuada em serviço das professoras, por intermédio da efetivação de uma pesquisa intervenção de TCC nos trouxe boas perspectivas. Diante do que foi possível observar durante o desenvolvimento dessa pesquisa, o docente da Educação Infantil precisa, primeiramente, aprender sobre portfólio e perceber o que ele representa. É necessário também, no exercício da função docente, encorajar as crianças a refletirem sobre suas habilidades, dificuldades, interesses e experiências instigando sua criatividade. O profissional de Educação Infantil que se debruça sobre os portfólios, precisa ser consciente de que construí-lo não é tarefa fácil, pois requer conhecimento, perseverança e paciência. Concordamos com Amanda Marques (2010) sobre a necessidade de construir uma cultura pedagógica que torne o registro uma ação presente no cotidiano das instituições de Educação Infantil. Esse exercício exige disponibilidade sobre olhar a própria prática para, a partir desta, constituir e entrelaçar seus saberes teóricos e práticos. Referências ALVARENGA, Georfravia M.; ARAÚJO, Zilda R. Portfólio: Conceitos básicos e indicações para utilização. Estudos em avaliação educacional, v. 17, n. 03, jan/abr. 2006. ANDRADE, Cybelle A. B. de. Portfólio como instrumento nos processos avaliativos: apontamentos de uma pesquisa-ação em uma unidade de Educação Infantil. Trabalho de Conclusão de Curso (Pedagogia). Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 139 AZEVEDO, Ana; OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia. A documentação da aprendizagem: a voz das crianças. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia. A escola vista pelas crianças. Porto: Porto Editora, 2008. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº. 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília/DF: 1996. CARR, Margaret. Assessment in Early Childhood Settings. Learning Stories. London, Sage, 2001. CARVALHO, Silvia Pereira de; KLISYS, Adriana; AUGUSTO, Silvana. (org.). Tempo de conhecer a criança. Bem-vindo, mundo!: criança, cultura e formação de educadores. São Paulo: Peirópolis, 2006. CLARK, Alison; MOSS, Peter. Listening to Young Children. The Mosaic Approach. National Children´s Bureau Enterprises Ltd, London, 2011. CURITIBA. Secretaria Municipal da Educação. Diretrizes curriculares para a educação municipal de Curitiba: Educação Infantil. Curitiba, 2006. v. 2. CURITIBA. Avaliação e Planejamento. Referenciais para estudo e planejamento na Educação Infantil. 2010. FERNANDES, Claudia de O.; FREITAS, Luiz Carlos de. Indagações sobre currículo. Currículo e avaliação: Brasília, Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2007. GANDINI, Lella. Duas Reflexões sobre a Documentação. In: GANDINI, Lella; EDWARDS, Carolyn (orgs). Bambini: a abordagem italiana à Educação Infantil. Porto Alegre: ArtMed, 2002, p. 150-169. KRAMER, Sonia. Formação de profissionais de Educação Infantil: questões e tensões. In: MACHADO, Maria Lúcia de A. (org). Encontros e desencontros em Educação Infantil. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 117-132. MARQUES, Amanda C. Teagno Lopes. A construção de práticas de registro e documentação no cotidiano do trabalho pedagógico da Educação Infantil. 2010. MICARELLO, Hilda. “Avaliação e transições na Educação Infantil”. ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas atuais, novembro de 2010, Belo Horizonte.

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140 | MORO, Catarina. Avaliação em Educação Infantil: sobre refletir acerca e identidades. In: FORTKAMP, Eloisa Helena T.; FÜLLGRAF, Jodete B. G.; WIGGERS, Verena (org.). Educação Infantil: alguns aspectos que constituem o debate. Tubarão: Copiart, Unisul, 2017, p. 69-98. MORO, Catarina. (Desa) fios da avaliação. Revista Educação. Publicação Especial Educação Infantil, Vol. 2, Outubro/2011. MORO, Catarina. Ensino fundamental de 9 anos: o que dizem as professoras do 1º ano. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2009. NADOLNY, Lorena F; GARANHANI, Marynelma C. Estratégias de formação continuada para professores de Educação Infantil. In: ENS, Romilda T.; BEHRENS, Marilda A. (Org.). Ser professor: formação e os desafios na docência. Curitiba: Champagnat, 2011. NÓVOA, Antonio. A formação tem de passar por aqui: as histórias de vida no projecto Prosalus. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias (org.). O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde, 1988. PARENTE, Cristina. A Construção de Práticas Alternativas de Avaliação na Pedagogia da Infância: Sete Jornadas de Aprendizagem. Tese (Doutorado) - Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga, 2004. RAIZER, Cassiana. M. Portfólio na Educação Infantil: desvelando possibilidades para a avaliação formativa. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007. RAMIRES, Jussara. M. S. A construção do portfólio de avaliação em uma Escola Municipal de Educação Infantil de São Paulo: um relato crítico. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. SAVIO, Donatella. Il portfolio alla scuola dell'infanzia: Un’occasione per mettersi in ricerca. Bergamo: Edizioni Junior, 2006. SHORES, Elizabeth; GRACE, Cathy. Manual do Portfólio: Um guia passo a passo para o Professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.

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O trabalho da coordenação pedagógica: a documentação pedagógica como estratégia de formação continuada Ana Julia Lucht Rodrigues De que modo pensar a docência diante de um mundo que se altera rapidamente? O contexto atual parece ter acelerado as transformações sociais e dado novas feições aos processos de globalização, ainda que eles sempre tenham estado presentes na história da humanidade. O certo é que a escola as vezes parece não acompanhar essas mudanças ou que as práticas educativas tardam em acompanhá-las. Ainda assim, permanece a esperança na escola e abraça-se com vigor o desafio de garantir uma educação de qualidade para todos e todas, pois “a questão é, mais uma vez, se a escola se limita a transmitir cultura ou pode ser, como nós aspiramos, um lugar de construção de cultura e de democracia em ação.” (PROJECT ZERO, 2014, p. 46). Com isso, de que modo pensar a profissão docente? Como construir propostas formativas que acolham a mudança e reconheçam a diversidade das trajetórias dos professores e professoras? Como construir a docência na Educação Infantil a partir da defesa da potência das crianças? Estas perguntas impulsionam a construção deste texto, o qual debruça-se sobre os desafios da formação continuada a fim de reconhecer as vozes das professoras 28 e dialogar com elas, Os termos diretoras, coordenadoras e professoras foram flexionados no feminino a fim de chamar a atenção dos leitores para uma característica marcante do trabalho docente na educação infantil: a generificação da docência. 28

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dissolvendo o paradoxo entre teoria e prática. Assim, o presente capítulo tem por objetivo promover uma reflexão sobre o papel da coordenação pedagógica no processo de formação continuada a partir da documentação pedagógica enquanto fazer docente. Discute-se acerca desta prática proveniente das abordagens italianas da Educação Infantil e que configura-se enquanto uma estratégia possível para provocar a reflexão sobre o vivido em sua relação com os saberes disciplinares (TARDIF, 2014) e com o inesperado que emerge da relação com as crianças. A documentação pedagógica caracteriza-se como uma prática eminentemente coletiva que visibiliza as aprendizagens e as culturas infantis, fortalece a relação entre família e escola e promove o diálogo entre professoras e toda a comunidade educativa. Ao gerar confronto e criar um espaço para as narrativas das professoras, ela constitui-se enquanto uma ferramenta possível no processo de formação continuada. Esta perspectiva dialoga com as discussões brasileiras acerca da relevância do registro (FREIRE, 1983; OSTETTO, 2015) no cotidiano educativo e de sua interpretação e reelaboração por meio da construção de narrativas, compreendendo que observação e a interpretação são processos constituintes e interrelacionados na tarefa de documentar. Sustenta-se também no aporte teórico acerca da documentação pedagógica (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016; MELLO; BARBOSA; FARIA, 2017) e no conceito de saber docente (TARDIF, 2014). Estas reflexões sobre formação continuada e o trabalho da coordenação pedagógica entrelaçam-se ao final do texto com uma apresentação da experiência de uma instituição de Educação Infantil do município de Curitiba no desafio de promover estratégias diversificadas de formação continuada e falar sobre uma experiência concreta.

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Formação continuada: o desafio de acolher os saberes experienciais O processo histórico de consolidação da Educação Infantil enquanto etapa da educação básica com finalidades e modos de funcionamento específicos acompanha uma mudança paradigmática. O atendimento às crianças pequenas, antes marcado por uma perspectiva assistencialista (KUHLMANN JR., 1998), altera-se em virtude do surgimento de uma nova concepção de infância e de criança, ancoradas na compreensão da criança enquanto sujeito e da infância como uma construção social (SARMENTO; PINTO, 1997). A partir disso, a Educação Infantil, ao acolher a criança e assumir as suas múltiplas linguagens (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016), refuta a ideia de aluno e reconstrói o trabalho docente, propondo uma educação que se constrói a partir da relação com o outro, considerando a relevância das interações com o meio, entre crianças e entre crianças e adultos. Nesta relação, a criança é compreendida a partir do princípio da competência (HUTCHBY; MORAN-ELLIS, 1998) e não mais no da falta (JAMES; PROUT, 1990). Assim, a tarefa docente altera-se com o reconhecimento de que ela não se resume a suprir aquilo que falta ao outro em seu processo de crescimento, mas sim a acompanhar a criança nas diversas relações construídas com o meio e de interagir com ela. Contudo, este processo de reconstrução dos saberes docentes é contraditório e lento, pois os sujeitos são marcados por trajetórias diversas e convivem, no âmbito da instituição, com diversas concepções de criança e educação. Berry Mayall (2000) aponta que ao se observar a relação entre crianças e adultos, a partir de uma abordagem geracional, nota-se que elas: (...)ocorrem entre grupos de pessoas sujeitas a diferentes Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


144 | constelações de ideias sociais, históricas e políticas; assim, enquanto a criança vivencia políticas educacionais atuais; seus pais cresceram sob outras políticas. Em complemento a este conjunto de relações podemos ver que em um mais amplo nível social, políticas – como em instância as educacionais – são concebidas e implementadas por uma geração de pessoas cujas ideias são formadas por instâncias diferentes, quando comparadas àquelas da geração de crianças que as estão vivenciando. 29 (MAYALL, 2000, p. 251, tradução minha).

Estas mudanças de concepções e os confrontos provocados pelas novas ideias em vigor na legislação nacional e na pesquisa produziram uma série de provocações para a pesquisa em educação e para a construção de práticas educativas, pois apresenta-se o desafio de fundamentá-las na ideia de criança enquanto sujeito de direitos e participante ativa do processo de aprendizagem. A organização da jornada escolar (BARBOSA, 2006), a indissociabilidade do cuidar e do educar (MONÇÃO; MONÇÃO, 2016; GUIMARÃES et al., 2018) e o rompimento com práticas antecipatórias (MACHADO, 2000; KRAMER; NUNES; CORSINO, 2011) são alguns dos desafios enfrentados durante esta trajetória. As pesquisas sobre a Educação Infantil apontam as fragilidades de propostas e sistemas educativos e indicam, concomitantemente, o distanciamento entre o vivido no interior das escolas e o postulado nas legislações educacionais e nas pesquisas científicas. É fundamental reconhecer o caráter prospectivo da No original: “(...) child-adult relations take place between groups of people subject to differing constellations of social, historical and political ideas; thus a child experiences current education policy first-hand; her parents grew up under other policies. In complement to this set of relations, we can see that at a wider, social level, policies – for instance in education – are devised and implemented by a generation of people whose ideas were formed by different influences, as compared to those of the generation of children now experiencing them” (MAYALL, 2000, p. 251). 29

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pesquisa pedagógica e da legislação, contudo é preciso transformar a prática por meio da reflexão acerca dela para que se promova uma prática docente fundamentada na imagem da criança enquanto sujeito, ajudando a superar o educar assistencialista e um cuidar desatento. Assim, subjacentes a esses desafios, apresentam-se as questões relativas à formação inicial e continuada das profissionais que atuam na Educação Infantil. Ambos os processos requerem atenção às especificidades desta etapa da educação básica e o reconhecimento de seu caráter interativo, dando atenção à relação construída entre professoras e crianças. Ao colocar-se a criança na escola, mudam as chaves de leituras usadas para interpretar e construir o cotidiano. Maurice Tardif (2014), ao refletir acerca do saber docente, aponta que ele “(...)se compõe, na verdade, de vários saberes provenientes de diferentes fontes. Esses saberes são os saberes disciplinares, curriculares, profissionais (...) e experienciais.” (TARDIF, 2014, p. 33). Ele destaca que esta característica heterogênea do saber docente remete a um trabalho humano a respeito de seres humanos e que, deste modo, é complexo, multidimensional, ativo, intangível, ambíguo (TARDIF, 2014). Esta característica do saber docente implica no desafio de desenhar processos de formação continuados que sejam dinâmicos e flexíveis, que respondam à vida e a mudança que borbulham na escola. Processos formativos que se dedicam à transmissão de conteúdos arriscam adotar uma abordagem centrada em um elemento fabril que objetiva e materializa os saberes, transmitindo-os enquanto norma, sem reconhecer a imprevisibilidade e a indeterminação da prática docente e desconsiderando o caráter experiencial do saber docente. Não há como, a partir da transmissão de informações, refletir acerca das pungentes dúvidas do cotidiano da escola: como organizar a sala? Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Quanto tempo permanecer em cada atividade? Como convidar as crianças para ir ao espaço externo? De que modo mediar os conflitos? Quais propostas realizar? Ou seja, sem diálogo com o vivido, sem articular prática e teoria, no cotidiano das professoras, terminam por apresentar-se enquanto paradoxo, pois muitas atividades aprendidas não vão “funcionar” no dia-a-dia da escola (TARDIF, 2014). Processos formativos apartados da vida nas instituições dificilmente respondem às indagações e aos dilemas enfrentados pelas professoras na tentativa de construir uma educação comprometida com o encontro com o outro, pois são decisões que raramente podem ser estabelecidas a priori. Ou seja, A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação e decisão que possuem, geralmente, um caráter de urgência. (...) Elas exigem, portanto, (...) a capacidade de se comportarem como sujeitos, como atores e de serem pessoas em interação com pessoas.” (TARDIF, 2014, p. 49–50).

Na busca por descobrir modos de agir, falar, relacionar-se, colocar-se diante das crianças, as professoras entrelaçam suas trajetórias de vida (OSTETTO, 2015; REIS; OSTETTO, 2018), marcadas pelas experiências pessoais e percursos formativos, para tentar responder aos desafios do cotidiano. Luciana Ostetto (2015) afirma que a formação, considerada: (...) um processo múltiplo e não linear, vai além dos cursos específicos de iniciação à docência ou mesmo de aperfeiçoamento profissional: abarca toda a escolarização precedente e as experiências da pessoa-professor ao longo da vida, histórica e culturalmente situada; de tal maneira,

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| 147 perpassa continuamente o itinerário que o docente vai traçando e, ao mesmo tempo, pelo qual vai definindo sua identidade como profissional. (OSTETTO, 2015, p. 203).

Ou seja, repensar a docência na Educação Infantil a partir de processos de formação continuada significa valorizar as trajetórias plurais e diversas vividas pelos profissionais da Educação Infantil, gerando reflexões acerca de suas práticas e das ideias que as sustentam. Assim, o reconhecimento do caráter praxiológico da pedagogia implica no desenvolvimento de estratégias formativas que reconheçam os saberes experienciais e que, portanto, falem aos profissionais em exercício. Eloisa Rocha (2001), ao cunhar o termo pedagogia da infância, defende que os saberes produzidos na Pedagogia guardam uma relação íntima com a prática: reflete-se acerca dela para retornar a ela. Não há ambiguidade entre prática e teoria, pois eles relacionam-se permanentemente. Isto implica na consolidação de uma prática docente eminentemente reflexiva e na consideração do papel ativo exercido pelas professoras na construção dos saberes docentes. O termo experiência, ao ser trazido à tona, destaca o caráter subjetivo e único daquilo que atravessa e constitui os sujeitos (LARROSA, 2002). Pensar os saberes docentes a partir de uma perspectiva educativa que acolhe a relação construída com o outro e reconhece a experiência, implica na defesa da autonomia do professor e na valorização de seus saberes. Poder-se-ia afirmar que se a educação das crianças pequenas se sustenta na ideia de potência, um processo homólogo precisa ocorrer na formação continuada: urge reconhecer as vozes das professoras, valorizando as suas trajetórias e promovendo práticas por meio das quais elas reflitam acerca de seus percursos. Desta forma, o exercício reflexivo acerca da prática docente e do cotidiano educativo se apresenta como ferramenta

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fundamental para a construção de uma prática fluida, que se reconhece enquanto permanentemente em movimento, acolhendo a pluralidade de contextos educacionais e os imprevistos que marcam a prática docente. O reconhecimento do inacabamento a que se refere Paulo Freire (1996) também contribui para pensar em processos de formação continuada. Do mesmo modo, isto não significa responsabilizar a professora e deixá-la à deriva na busca de aperfeiçoamento profissional. A coordenação pedagógica, assim como as outras professoras que a acompanham na trajetória, precisam se fazer presentes e compete às instituições encontrarem maneiras de garantir a troca, o diálogo, o encontro entre as profissionais que ali atuam. Na defesa de uma educação que se constrói por meio da interação entre crianças e adultos, defendem-se também processos formativos compartilhados. A coordenação pedagógica e o trabalho coletivo No cenário educativo brasileiro, a figura da pedagoga se faz presente nas três etapas da educação básica. No cotidiano educativo, ela exerce funções diversas a depender das características da instituição, como seu tamanho, localidade e relação com a direção, construindo a sua prática no entremeio de atividades de organização do trabalho pedagógico e de gestão da educação. A depender da instituição e de seu Projeto PolíticoPedagógico, as jornadas das crianças serão pensadas de modos diversos, organizando-as a partir da ocupação de diferentes espaços e da gestão do tempo, tomando formas diferentes a depender dos sujeitos que ali atuam e das abordagens pedagógicas adotadas. O dia-a-dia da escola requer um processo contínuo de organização das turmas por meio da ação sobre os Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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componentes de tempo e espaço. Ainda assim, dentre as variadas funções exercidas pelas coordenadoras pedagógicas nos diversos contextos e etapas da Educação Básica, parece consenso afirmar que ela acompanha a equipe docente no processo de construção de um projeto educativo alinhado com as prerrogativas legais e interrelacionado com o contexto em que se insere a instituição. Neste sentido, a pedagoga atua como par educativo, promovendo o confronto de ideias, a receptividade à mudança e uma reflexão permanente sobre a prática. Na Educação Infantil, a organização do cotidiano com base nos eixos de interações e brincadeiras, como determinado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), assim como o reconhecimento da criança enquanto sujeito, implicam no desafio de organizar uma proposta pedagógica comprometida com estes princípios. Além disto, ela é eminentemente interdisciplinar, resguardando a interrelação entre os diversos campos do saber30. Com isso, no cotidiano da escola, as pedagogas enfrentam o desafio de identificar os interesses e necessidades de formação das professoras, buscando construir situações formativas que promovam a reflexão sobre as prerrogativas legais e sobre o projeto educativo da instituição a partir da escuta das crianças, reconhecendo-as enquanto sujeitos. A jornada dos bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas nas instituições de Educação Infantil transforma-se em objeto contínuo de reflexão a partir da atitude de observação, de escuta, compreendida “(...) como a disponibilidade permanente por parte de quem ouve. Uma As recentes orientações presentes na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) também reforçam estes princípios ao definirem direitos de aprendizagem das crianças e romperem com a divisão em disciplinas por meio da proposta de Campos de Experiência. 30

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abertura à fala, ao gesto, à alteridade. Uma ética de um encontro edificado sobre a receptividade ao Outro.” (SIMIANO, 2018, p. 169). Ou seja, a perspectiva que se apresenta é a de construção de projetos educativos que valorizem a relação construída com o outro. Adota-se uma pedagogia da escuta e garante-se o reconhecimento da criança enquanto sujeito. O processo de revisão e de tomada de consciência acerca das concepções nas quais se sustentam as práticas é movimento estruturante para a garantia de um processo contínuo de revisão da prática e da teoria por meio do confronto entre esses dois âmbitos em um processo contínuo de produção de saberes docentes (TARDIF, 2014). Desse modo, a coordenação pedagógica enfrenta o desafio de acompanhar as professoras a partir dos pressupostos da pedagogia da escuta e do reconhecimento dos saberes experienciais, assim como da defesa da construção de projetos educativos compartilhados, dialogados, democráticos. A partir disso, a documentação pedagógica apresenta-se enquanto prática de pesquisa, escuta e formação eminentemente coletiva e passível de ser realizada por meio do diálogo entre docentes e coordenação, compreendendo-se que: A discussão coletiva e o respeito ao que cada um sabe e partilha, sem a pretensão de que uma pessoa do grupo seja a responsável por determinar qual a melhor prática, bem como a franca disposição em nos colocarmos como seres que ensinam e aprendem constituem o grande potencial da formação permanente. (CASTRO; AMORIM, 2015, p. 45).

Visto que os nossos sistemas educativos têm buscado garantir o encontro entre professoras e coordenadoras pedagógicas, devido a realização de hora-atividade no interior das instituições ou de outras estratégias elaboradas pela equipe gestora de cada escola, elas podem juntas refletir e trabalhar em prol de uma educação de qualidade (DAHLBERG; MOSS; PENCE, Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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1999; MOSS, 2016) e de sua formação. A construção de projetos educativos coletivos e compartilhados rompe com o isolamento da professora e provoca o confronto de ideias. Abrir-se ao diálogo com o outro a partir de uma reflexão sobre a sua própria prática pode ser compreendida como uma disposição ética do trabalho, pois implica em despir-se e aceitar a crítica (MELLO; BARBOSA; FARIA, 2017). A documentação pedagógica: observar, interpretar e narrar A documentação pedagógica é uma prática consolidada no contexto italiano de Educação Infantil 31 e tem sido objeto de reflexão e estudo em diversas experiências educativas (TURNER; WILSON, 2010). No Brasil, pesquisas recentes fundamentadas na abordagem italiana, tem discorrido sobre a documentação pedagógica. Luciane Pandini Simiano (2018) apresenta-a enquanto narrativa peculiar da creche e Paulo Fochi (2019) como estratégia de formação de docentes. Diante disso, a documentação pedagógica apresenta-se como uma forma de compreender a profissão docente, estando intimamente relacionada à memória individual e do grupo. Toma forma enquanto uma reflexão sobre o processo educativo e tem uma função política de tornar visíveis às crianças, suas aprendizagens, sua cidadania, promovendo o diálogo no interior da comunidade educativa e com as famílias (MELLO; BARBOSA; FARIA, 2017). Esta prática implica na observação e registro do vivido, de modo que: Luciane Pandini Simiano (2018) apresenta em sua pesquisa um levantamento de publicações e pesquisas sobre documentação pedagógica no contexto italiano. Mehmet Baldu (2010), por sua vez, apresenta pesquisas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Na literatura internacional, também destacam-se estudos realizados na Alemanha (KNAUF, 2018), Finlândia (RINTAKORPI; REUNAMO, 2017) e Emirados Árabes (BULDU, 2010). 31

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152 | Toda a documentação – as descrições escritas, as transcrições das palavras das crianças, as fotografias e atualmente as gravações em vídeo – torna-se uma fonte indispensável de materiais que usamos todos os dias, para sermos capazes de ‘ler’ e refletir, tanto individual quanto coletivamente, sobre a experiência que estamos vivendo (...). (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 125).

Peter Moss, Gunilla Dahlberg e Alan Pence (1999), ao refletirem sobre a documentação e o significado de qualidade, afirmam que ela é composta por um conteúdo, as fotos, textos, registros da observação das crianças, aquilo que deseja ser comunicado; e também por um processo, o qual envolve “(...) o uso deste material como forma de refletir sobre o trabalho pedagógico e fazê-lo de forma rigorosa, metódica e democrática” 32 (1999, p.147, tradução minha). Este processo é eminentemente coletivo, compartilhado, requer o confronto, a exposição de diferentes pontos de vista e a inclusão das teorias das crianças. Com isso, observa-se que o exercício de observar o cotidiano, registrar, compartilhar anotações, áudios, imagens e vídeos, ajuda as professoras a construírem processos autônomos de investigação sobre sua própria prática e a reconhecerem-se enquanto “(...) grupo produtor de um saber oriundo de sua prática e sobre o qual poderia reivindicar um controle socialmente legítimo.” (TARDIF, 2014, p. 54). Subjacente ao saber docente, está a ideia de que a narratividade e a interpretação são elementos da ação humana e da prática educativa que lhe conferem um estatuto diferenciado do adotado em outros saberes e nas pesquisas das ciências exatas ou biológicas, frequentemente associadas a uma definição cartesiana das ciências. A acolhida de uma prática docente que se ancora na defesa No original: “(…) involves the use of that material as a means to reflect upon the pedagogical work and to do so in a very rigorous, methodical and democratic way.” (MOSS, DAHLBERG, PENCE, 1999, p. 147). 32

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da subjetividade para a construção de projetos educativos assume a educação enquanto incerteza, compreendendo que: (...) em educação, as grandes coisas não são as mais grandes, as excepcionais, as extraordinárias; as grandes coisas são as pequenas coisas e os pequenos detalhes de cada dia, uma faísca que pode trazer luz e foco, e que, com uma outra pedagogia, pode afastar o cinzento do dia-a-dia.” (MELLO; BARBOSA; FARIA, 2017, p. 20).

Observar, interpretar, narrar são ações que implicam no reconhecimento do sujeito, da professora, que as realiza e que atua de forma profissional, produzindo saberes e formando-se continuamente. Ou seja, a “documentacão é a forma pela qual nós somos capazes de nos engajar na reinterpretação do que significa ser uma professora e uma aprendiz.” (TURNER; WILSON, 2010, p. 7, tradução minha) 33 . A reconstituição do saber docente e a formação continuada das professoras precisa envolver a reflexão do vivido, reconhecer a autonomia e valorizar as trajetórias das professoras, assim como realizar-se por meio de práticas eminentemente democráticas. Pesquisas sobre documentação pedagógica relatam as experiências de professoras em relação a esta prática, a este modo de compreender o trabalho docente (BULDU, 2010; RINTAKORPI; REUNAMO, 2017; FOCHI, 2019), e também apresentam alguns dos desafios em seu processo de implementação. Dentre as questões apresentadas, o tempo dispendido e necessário para a realização das documentações e para o trabalho coletivo parece ser um dos principais desafios (BULDU, 2010). É neste sentido que se apresentam algumas das estratégias formativas de uma instituição de Educação Infantil do município

No original: “Documentation is the means by which we are able to engage in this reinterpretation of what it means to be a teacher and learner”. (TURNER; WILSON, 2010, p. 7). 33

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de Curitiba que adota a documentação pedagógica enquanto estratégia de formação e modo de compreender a profissão docente. Os tempos destinados à documentação visam garantir a construção de processos coletivos e a constante reinterpretação do vivido. No contexto desta escola, o acompanhamento das professoras pela coordenação pedagógica e pela assessoria pedagógica da instituição se dá a partir de três âmbitos diversos: eventos ou palestras organizadas pela escola, momentos de discussão e organização do trabalho coletivo em pequenos grupos de professoras e o acompanhamento individualizado. Estes momentos formativos ocorrem com a frequência apresentada no quadro abaixo: Quadro 1 – Estratégias de formação

Tipologia Formação em grupo (palestras e eventos) Trabalho e reflexão pequenos grupos Reunião Individual

em

Frequência

Duração

mensal

2 horas

quinzenal

2 horas

quinzenal

1 hora

Fonte: A autora (2019).

Cada um destes encontros atende a demandas diversas que emergem do cotidiano da escola, oferecendo acesso a novas discussões teóricas concomitantemente com a reflexão sobre a prática e com a produção de novas teorias a partir dela. O conteúdo de cada um destes momentos formativos varia, desta forma, com as necessidades do grupo e as demandas individuais. No ano de 2019, por exemplo, os encontros de grupo possibilitaram reflexões sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprofundamentos sobre a abordagem Reggio Emilia a

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partir de uma discussão sobre o desenvolvimento de projetos e a documentação pedagógica, avaliação da qualidade da brincadeira e formações técnicas sobre linguagem pictórica, grafismo e argila. No âmbito do trabalho de pequeno grupo foram veementes as reflexões acerca das estratégias adotadas pela escola no processo de familiarização de crianças novas, além de planejamento e organização dos espaços coletivos. Tanto nos pequenos grupos, quanto nas reuniões individuais, as documentações pedagógicas configuram-se enquanto objeto de reflexão. Ela é produzida coletivamente a partir de um estudo prévio e da seleção de registros por parte de cada professora, atividade realizada individualmente e previamente aos encontros, e é elemento disparador da reflexão realizada por professora e coordenação, que se veem provocadas a falar acerca do vivido, tomando consciência dos princípios que as orientam e construindo saberes a partir do diálogo. Neste processo, temáticas diversas são abordadas, valorizando-se o percurso construído por cada grupo de crianças, o interesse das professoras e a necessidade de formação individual. No decorrer do ano, na instituição acompanhada, a coordenação seleciona temáticas que ajudem a acompanhar os projetos de cada turma e a fortalecer a relação entre o cuidar e o educar, provocando o registro acerca de momentos de trocas de fralda, alimentação, higiene das mãos, sono, acolhida e transições entre os espaços da instituição. Assim como, do acompanhamento dos projetos das turmas e das práticas educativas adotadas na instituição. Ações cotidianas que se realizam muitas vezes de forma intuitiva, se transformam em objeto de reflexão coletiva, buscando-se compreender os sentidos atribuídos por adultos e crianças, desde bebês, a cada um desses momentos. Com isso: A documentação sistemática permite que cada professor se torne um produtor de pesquisas, isto é, alguém que gera Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


156 | novas ideias sobre o currículo e sobre a aprendizagem, em vez de ser meramente um ‘consumidor da certeza e da tradição’. (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 156).

A consolidação desta forma de viver a docência na Educação Infantil tem promovido reflexões e o crescimento das professoras no âmbito desta instituição, além de dar subsídios para a construção de projetos coletivos e compartilhados. A documentação pedagógica é uma estratégia possível para promover a reflexão por parte das professoras, que param para olhar o cotidiano, interpretá-lo e colocá-lo em discussão. A modo de conclusão A fim de consolidar uma pedagogia da infância (ROCHA, 2001) se faz necessário pensar no cotidiano das crianças na escola a partir da acolhida do inesperado e da reflexão sobre a prática, reconhecendo que a pesquisa pedagógica sempre retorna ao vivido. Além disso, impõe-se a necessidade de não somente rever as concepções nas quais sustentam-se as práticas educativas, mas também de desenvolver estratégias que permitam que diretoras, coordenadoras, professoras e demais profissionais presentes nas instituições de Educação Infantil atuem com base nessa concepção de criança. Este texto não se propôs a apresentar uma solução para o desafio da formação continuada, mas relata uma possibilidade de aproximação a esta questão, valorizando o papel de coordenadoras e professoras. Pensar a pedagogia enquanto ciência que caminha buscando alcançar a sua própria sombra (SACRISTÁN, 1978), metáfora da qual Eloisa Rocha (2001) apropria-se, significa assumir os desafios da formação continuada enquanto permanentes no processo de construção de uma educação de qualidade (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 1999; MOSS,

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2016). A documentação pedagógica, enquanto prática docente coletiva, promove o confronto de ideias, o diálogo sobre o vivido, a escuta das crianças. As mudanças sociais, os avanços na pesquisa e a reflexão acerca da sua própria formação inicial podem, deste modo, se fazer presentes nestes momentos de reflexão, na busca por interpretar e comunicar o vivido. Compete às redes municipais, reconhecerem o trabalho docente que se realiza no confronto com os colegas; e a cada escola, o desafio de encontrar o tempo necessário para realizar a tarefa. A experiência brevemente apresentada neste capítulo indica esta possibilidade e apresenta um tempo possível para a realização desta proposta democrática, fortalecendo e consolidando a Educação Infantil enquanto direito das crianças e etapa com finalidades e com uma pedagogia própria. Referências BARBOSA, Maria Carmen S. Por amor e por força : rotinas na educaçã o infantil. [s.l.] Artmed, 2006. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Camara da Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 05/2009, de 17 de dezembro de 2009. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009. BULDU, Mehmet. Making learning visible in kindergarten classrooms: Pedagogical documentation as a formative assessment technique. Teaching and Teacher Education, v. 26, n. 7, p. 1439–1449, 2010. CASTRO, Marcelo M. C. e; AMORIM, Rejane M. de A. A Formação Inicial e a Continuada: diferenças conceituais que legitimam um espaço de formação permanente de vida. Cadernos CEDES, v. 35, n. 95, p. 37– 55, abr. 2015. DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan. Beyond Quality in Early Childhood Education and Care: Postmodern Perspectives. Londres:

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160 | Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. TURNER, Terri; WILSON, Daniel G. Reflections on documentation: A discussion with thought leaders from Reggio Emilia. Theory into Pratice, v. 49, n. 1, p. 5–13, 2010.

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PARTE 2: Possibilidade de diálogos entre perspectivas e ação pedagógica na Educação Infantil

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A potencialidade da brincadeira na Educação Infantil: das coisas que aprendi com as crianças Giselle Silva Machado de Vasconcelos

O ponto de partida Brincar e escrever exige dos sujeitos – de quem brinca e de quem escreve – memória, experiência, criação e imaginação. Assim como para uma criança que brinca de ser mamãe de sua boneca é necessário que ela rememore um conjunto de experiências sobre a maternidade, a escrita deste artigo também exige que eu recorra sobre as coisas que li, escrevi, vi, ouvi e vivi sobre ao que me proponho dissertar – a brincadeira na Educação Infantil. As crianças brincam a partir de seus repertórios sociais e culturais. Elas não brincam sobre coisas que não conhecem. Se você observar crianças de uma tribo indígena isolada perceberá que em suas brincadeiras as crianças não assumem o papel de maquinista de um trem ou ainda de levar seu filho para a creche. É compreensível que isto não se dê, mas por quê? Porque a brincadeira de faz de conta requer imaginação e o ato imagético demanda memória de uma experiência vivida anteriormente. Logo, não brincam destes temas porque eles não fazem parte de seus repertórios; no entanto, elas assumem, nas suas brincadeiras, outros papeis sociais de um outro contexto cultural. Elas brincam de caçar, de pescar, de serem curandeiras, etc. As crianças brincam a partir das suas experiências. Nós escrevemos a partir das nossas. Nossa escrita, assim como a

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brincadeira, é fundamentada por aquilo que vivemos, sentimos e elaboramos num determinado momento histórico social e cultural. E quais são as minhas experiências? De onde eu parto para escrever sobre a brincadeira? Me parece prudente situar brevemente quem lê estas linhas, antes de adentrar no tema da brincadeira, sobre o lugar a partir do qual eu escrevo. Trabalho há dezessete anos como coordenadora pedagógica em um núcleo de Educação Infantil (creche e pré-escola) da rede municipal de Florianópolis que atende crianças de zero a seis anos. Durante estes anos, no exercício da minha profissão, algumas questões em torno da prática pedagógica desenvolvida junto às crianças estiverem latentes e se fizeram pujantes. Estas questões, especialmente sobre a participação das crianças nestes espaços, se traduziram em duas pesquisas (mestrado e doutorado). Tanto em uma, quanto em outra, a brincadeira foi e ainda é no exercício do meu trabalho - um objeto profícuo de análise. O importante a ser sinalizado é que tais pesquisas foram movidas por questões elaboradas no chão da Educação Infantil, ou melhor dizendo, da reflexão sistemática da prática pedagógica coletiva da qual eu fazia parte. Indagações e problemáticas formuladas na relação direta com as crianças, através de suas falas e ações. O lugar a partir do qual eu escrevo é, portanto, de alguém que cotidianamente vive as ações e relações pedagógicas estabelecidas em um contexto educativo voltado às crianças pequenas. Das elaborações preliminares sobre a brincadeira na Educação Infantil Do lugar de pesquisadora e educadora da infância, posso afirmar que a brincadeira é um tema bastante discutido e estudado na área da Educação Infantil – desde a formação inicial Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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até a formação em serviço. É possível afirmar também que no diaa-dia destes espaços, ao observar as práticas pedagógicas desenvolvidas para as crianças, a brincadeira ocupa ainda um lugar secundarizado, o que denota certa desvalorização da potencialidade da brincadeira para o desenvolvimento integral das crianças. Tanto as pesquisas que privilegiam o ambiente de Educação Infantil como campo de análise, quanto as documentações pedagógicas elaboradas no interior de diversas unidades educativas, apontam que a brincadeira, geralmente, é uma ação pedagógica privilegiada pelas professoras/educadoras em duas situações distintas: ora como momento “espontâneo” ora como atividade didatizada. Quando escrevo momento espontâneo, não quero dizer que as brincadeiras são espontâneas. Elas definitivamente não são. Me refiro ao modo como as professoras compreendem estes momentos. São os tempos dos quais as crianças não estão executando atividades dirigidas pelas professoras. Na rotina, quase sempre engessada, ganha a denominação de “hora do parque” ou “hora do recreio”. Chamo estes momentos de “espontâneos” e não “livres” por compreender que a brincadeira “livre” no espaço pedagógico exige observação, reflexão e planejamento. Nos momentos espontâneos não há um planejamento pedagógico estabelecido e o papel das professoras, quando presentes (é comum utilizarem este tempo para fazerem a pausa para o café), resume-se a mediar eventuais conflitos e zelar pela integridade física das crianças, ou seja, cuidar para que elas não se machuquem. Os episódios em que a brincadeira se dá de maneira didatizada são caracterizados por aqueles momentos em que a brincadeira é assumida como exercício imposto à criança. O Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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objetivo é a mera transmissão de um conteúdo específico. Aí entram os conhecidos “jogos pedagógicos” tais como “bingo de letras/números”, “memória”, etc. Estes últimos são momentos planejados com intuito de que a criança obtenha conhecimentos das disciplinas ditas tradicionais – português, matemática e ciências – ou que atuem no seu “desenvolvimento motor”. É bem provável que se você, educadora da infância, fosse responder a seguinte questão: em quais situações a brincadeira é privilegiada na sua prática junto às crianças? A resposta iria ao encontro da afirmação acima. Em ambas situações a brincadeira é marcada por um tempo limitado e estático na rotina. As ações e relações estabelecidas entre as crianças são constantemente controladas pelos adultos. Mas qual a potencialidade da brincadeira para o desenvolvimento integral da criança? De que modo incorporar a brincadeira num planejamento responsável com uma prática pedagógica que se assente na democracia e nos direitos das crianças? Para responder estas questões empreenderei reflexões sobre a brincadeira a partir de registros de práticas pedagógicas concretas dialogando com as contribuições teóricas de diferentes campos do conhecimento. O antagonismo presente entre brincadeira e atividade pedagógica O antagonismo entre a brincadeira e a atividade pedagógica é uma das coisas que tenho constantemente percebido e analisado ao me debruçar sobre as ações pedagógicas destinadas as crianças na Educação Infantil. Esta dicotomia se assenta na ideia adultocêntrica de que para a criança aprender há apenas uma maneira possível: os adultos falam e as crianças escutam. Os Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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adultos transmitem seus conhecimentos às crianças. É uma via de mão única. Nesta perspectiva a brincadeira se torna estéril no processo de aprendizagem das crianças. Por isso é comum termos momentos distintos na Educação Infantil: tempo para aprender (a hora da atividade) e tempo para descontrair (hora da brincadeira). Registro A: Hora da atividade X Hora da brincadeira. Brincadeira não é uma atividade? Estamos numa sala com 25 crianças de 4 anos. As crianças estão nas mesas em grupos de cinco crianças. No centro de cada mesa um pote com vários lápis coloridos. A professora entrega para cada uma delas uma imagem xerocada da história do Lobo mau e os três porquinhos, contada no dia anterior. Sua intenção é que as crianças pintem o desenho xerocado para que ela possa confeccionar um quebra-cabeças para as crianças brincarem. Ao terminar de entregar a folha para todas as crianças a professora diz: “Agora vocês terão que pintar bem lindo este desenho da história que ouvimos.” João coloca sua boca perto da mesa e começa a soprar a sua folha que vagarosamente se mexe. Arnaldo vê o colega e também começa a soprar. Os dois sopram cada vez mais forte e as folhas se levantam da mesa cada vez mais. Eles riem. Laura, que está na mesma mesa, também entra neste movimento de soprar a sua folha xerocada com a imagem da história. João diz: “Eu vou soprar, eu vou soprar e sua casa derrubar.” O menino dá um sopro forte e a folha dele cai no chão arrancando gargalhadas dos colegas. Ao perceber a movimentação daquele grupo de crianças a professora se aproxima e os repreende: “Agora é para pintar, é hora da atividade, não é hora de brincadeira. Quando terminarem de pintar nós vamos ao parque, daí lá vocês brincam.” Dito isto a professora se distancia para supervisionar o trabalho de outro grupo. Arnaldo pega um lápis marrom, faz três rabiscos no desenho, vai até a professora e entrega a “atividade”. O menino então pergunta à professora: “agora a gente vai para o parque?” (Registro - Grupo de crianças de 4 anos, junho de 2016).

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Parece prudente afirmar que a brincadeira iniciada por João revela um processo de apropriação dele sobre a história. É possível, embora não possamos afirmar com toda certeza, que a primeira soprada de João em sua folha tenha sido impulsionada pela história ouvida no dia anterior. É muito provável que João tenha levantado algumas hipóteses, dentre elas se realmente era possível derrubar alguma coisa com uma soprada tal como fez o lobo com as casas dos porquinhos. Ao perceber que a folha se mexe, mesmo que muito pouco, ele inicia a brincadeira no qual a imagem xerocada se transforma em uma casa imaginária. Isto pode ser evidenciado através de suas palavras: “Eu vou soprar, eu vou soprar e sua casa derrubar!” Para alguns estudiosos é no exato momento em que a folha se transforma numa casa imaginária que a ação de João se configura como brincadeira uma vez que estabelece uma relação com o simbólico, ou seja, com o poder imagético da criança. A folha deixa de ser uma folha e se torna uma casa, não qualquer casa, mas a casa de um dos porquinhos. Para Brougerè (2001, p. 105) “A criança não brinca numa ilha deserta, ela brinca com as substâncias materiais e imateriais que lhe são propostas. Ela brinca com o que tem na mão e com o que tem na cabeça”. Vigotski (1995) também vai nesta direção de compreensão da brincadeira, para o autor, a brincadeira consiste numa relação entre o que a criança vive – suas experiências – e o que pensa – suas elaborações. Ambos defendem a brincadeira como ação importante para o desenvolvimento das crianças. Enquanto Brougerè se atenta mais sobre o aspecto sociológico, Vigotski traça seus estudos no âmbito do desenvolvimento da psiquê humana, ou seja, na formação da personalidade. Diante das contribuições dos autores, podemos dizer que João ao brincar está se apropriando da história contada pela professora. Internaliza preceitos e elabora alguns conceitos. Estes Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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preceitos e conceitos são os mais variados. Fica evidente que um dos preceitos em processo de internalização pelo João é a força do vento (soprada) para mover as coisas. Enquanto brincam de soprar suas folhas, as crianças estão conhecendo as leis da física! Estão também exercitando a memória, pois rememoram a história contada para brincar. No entanto, apesar de João e seus colegas estarem empreendidos numa atividade valorosa que incide sobre o desenvolvimento cognitivo, a professora centraliza o tempo e o espaço naquilo que ela julga ser importante para as crianças – a atividade de pintar. Quem lê estas linhas poderia muito bem me questionar: mas não é importante também para as crianças que elas pintem? E eu responderia sem dúvida alguma que sim, é de suma importância para o desenvolvimento das crianças que elas pintem, embora eu tenha uma crítica sobre pinturas estereotipadas baseadas em modelos e cópias, que vai ao encontro daquela defendida por Almeida (2001, p.26) que afirma que “na prática modular, o professor oferece o modelo não como uma das possibilidades, mas como a única possível”. Contudo, para além da crítica ao desenho xerocado e ao fato de todos os desenhos serem iguais, o que cabe aqui dizer é que a brincadeira não precisa ser cerceada para que dada “atividade” aconteça ou ainda assumir a priori que uma atividade é mais importante para o desenvolvimento da criança do que a outra. Mesmo porque para que haja aprendizagem é preciso que a criança tenha interesse pela proposta. É preciso que a proposta apresentada afete a criança de tal modo que ela se envolva por inteira. A reflexão que busco trazer é sobre o modo como ainda compartimentalizamos as ações das crianças nos espaços educativos – hora da brincadeira x hora da atividade pedagógica – como se fossem ações antagônicas. Exigimos que a criança Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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suspenda sua imaginação e poder criativo na execução de dada “atividade” (prefiro chamar exercício) como pré-requisito para o êxito da mesma. Em outras palavras: acreditamos que para ensinar algo as crianças, é preciso que elas suprimam aquilo que lhes é fundamental para aprender. Por outro lado, se considerarmos a brincadeira como eixo estruturante das ações pedagógicas precisamos romper com esta visão dicotômica. Um planejamento que contemple a brincadeira nesta situação exigiria outra organização dos tempos e espaços. Para ajudar a visualizar como se daria uma proposta nesta direção trago uma experiência vivida. Em 2017 trabalhei com uma professora que tinha como projeto de sala trabalhar com as crianças as conhecidas “histórias clássicas infantis”. No início do ano a sala contava com dois cantos semiestruturados pela professora. Um era uma espécie de ateliê que tinha diferentes folhas (tamanho, textura e cores), lápis colorido, canetinhas, carimbo, tinha guache e pincel. No outro canto da sala uma organização parecida com um camarim. Lá estava disposto tintas faciais, maquiagens, perucas, escova de cabelos e algumas fantasias. A cada história nova contada, a professora trazia novos elementos para compor estes espaços. Na história do Lobo mau e os três porquinhos, por exemplo, ela acrescentou no canto do ateliê, gravetos, palha e conchas do mar (as conchas do mar tinham o objetivo de as crianças assemelharem com tijolos). Ainda para este mesmo espaço ela deixou disponíveis três livros distintos da mesma história. Já no espaço do camarim foi acrescido máscara de porquinhos e de lobo. À medida que as crianças transitavam entre um e outro espaço e teciam suas narrativas e brincadeiras a professora fazia suas observações e reorganizava com as crianças. Assim, outras organizações de espaço foram sendo estabelecidas. Foi com a história da Branca de Neve e os sete anões que nasceu um canto para a culinária. Com a Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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quantidade de livros que foi sendo inserida no espaço do ateliê também se viu a necessidade de fazer um espaço específico para os livros. Evidente que os materiais, assim como as crianças, transitavam entre um espaço e outro. E todos os dias as crianças pintavam, recortavam, colavam, escreviam e liam. A diferença é que essas “atividades” eram realizadas dentro do contexto de suas brincadeiras e narrativas, fomentando ainda mais o poder imagético e criativo das crianças. Percebam que a potencialidade de aprendizagem é muito mais intensa num ambiente organizado e planejado desta maneira do que do outro, no qual cabiam às crianças apenas o ato de pintar. Brincadeira – um espaço democrático de socialização de saberes Pretendo discorrer agora sobre aqueles momentos em que as crianças estão “livres”. A palavra livre está acompanhada de aspas porque nestes momentos as crianças ainda estão sob vigilância e controle dos adultos. Com livres quero dizer que suas ações não são diretamente dirigidas pelas professoras. Se por um lado estes espaços/tempos sejam profícuos de aprendizagem uma vez que são permeados por brincadeiras, por outro encontramos professoras apáticas a este processo, eximindo-se de seu papel social de ampliar e complexificar os conhecimentos das crianças. Registro B: A brincadeira nos momentos livres – da potencialidade da brincadeira à ausência de um planejamento pedagógico. Estamos no parque e observo Arnaldo, Laura, João, Aline e Francisco brincando de Lobo mau e os “três” porquinhos. Arnaldo parece assumir o papel de Lobo e as demais Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


172 | crianças os porquinhos. As crianças correm do suposto Lobo e dão gritinhos. Escondem-se entre as duas casinhas do parque e quando Arnaldo sopra uma das casas as crianças saem correndo para a outra. Fazem isso repetidas vezes. Em certo momento Aline se distancia do grupo. Senta-se no chão com um punhado de pedrinhas, minúsculos gravetos e folhas secas. Me aproximo da menina e a questiono sobre o que ela está fazendo e a mesma me responde: “Fogo para o Lobo cair.” Percebo que Arnaldo e João iniciam uma discussão. João diz: “Agora é a minha vez de ser o lobo, tú já foi bastante.” Arnaldo responde que continuará sendo o Lobo. Laura intercede por João e argumenta com Arnaldo: “Agora é o João, depois tú, eu sou o porquinho inteligente.” Arnaldo concorda. Laura vai até Aline e as duas constroem e reconstroem uma “fogueira” para queimar o lobo. Aline vai até a professora que está conversando com outra professora no parque. A menina solicita: “Prof, vou lá na sala pegar uma panelinha tá?” A professora responde: “O que nós já conversamos? Os brinquedos da sala são da sala, não pode trazer para o parque porque estraga.” Aline sai desapontada e explica para Laura que não tem o caldeirão para colocar na fogueira. As meninas fazem um garimpo no parque atrás de algo que possa servir-lhes como caldeirão. Encontram uma tampinha de garrafa e satisfeitas colocam em cima da fogueira. As duas saem correndo atrás das outras crianças aos berros: “vamos colocar o lobo na fogueira!!!” De repente a brincadeira vira uma caçada ao lobo, no qual Arnaldo, Aline, Laura, Francisco, Beatriz, Joana e Carlos (estes três últimos entram na brincadeira) correm atrás de João. Depois de muita correria conseguem agarrar João e levam-no até o caldeirão. João (lobo) sopra, sopra, mas não adianta, as crianças-porquinhos são mais fortes e o fazem sentar em cima do caldeirão. Todos riem e gritam “viva matamos o lobo!” João fica incomodado com a derrota, chega a gritar com os colegas parecendo sair do faz-de-conta para expor seu descontentamento, percebo que por um segundo pensa em queixar-se com a professora, mas desiste. O lobo logo se recupera e sai em correria atrás dos porquinhos que voltam a se esconder nas casinhas do parque. A professora em voz alta chama as crianças: “Grupo 5, hora de voltar para sala, vamos lá, lavar as mãos

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| 173 para almoçar.” (Registro - Grupo de crianças de 4 anos, junho de 2016).

Foto 1 e 2: Caldeirão criado por Laura e Aline.

Para pensar sobre este registro, retomo as contribuições da teoria de Vigotski (1995) no qual defende que o desenvolvimento das funções psíquicas superiores do ser humano acontece por meio da relação que a criança estabelece com o externo. Isto significa que o desenvolvimento psíquico não brota ou nasce individualmente no biológico, mas a partir da relação com o mundo externo, da cultura histórica e socialmente criada com e pelos seres humanos. Mello (2007), em acordo com a teoria proposta por Vigotski, explica que o que a natureza provê no nascimento da criança são as condições biológicas necessárias para aprender, mas isto por si só não basta para que haja aprendizagem. A apropriação da experiência humana criada e acumulada ao longo da história da sociedade se dá na relação social com outros parceiros. É na relação com o outro, seja este outro, criança ou adulto, que a crianças internalizam e se apropriam de funções psíquicas tipicamente humanas – da fala, do pensamento do controle sobre a própria vontade, da imaginação, da função simbólica da consciência - e formam e desenvolvem sua inteligência e sua personalidade. Ainda de acordo com a teoria formulada por Vigotski é por meio das relações que as crianças têm com outras crianças e com Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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os adultos que o processo de aprendizagem e o processo de criação acontece. Isto significa que as crianças aprendem, criam e recriam também com as crianças, na relação-interação entre elas. Mas o que as crianças aprenderam e (re)criaram, umas com as outras, na cena relatada? Indiscutivelmente a percepção mais visível é a apropriação e (re)criação da história narrada pela professora no dia anterior. Vejam que a ação das crianças não é mera reprodução da história contada. A brincadeira não é iniciada apenas com três porquinhos, e sim quatro, depois outras criançasporquinhos inserem-se na brincadeira. Na história original não há uma caçada ao lobo, no entanto na brincadeira se cria um novo elemento para o enredo e isto só é possível porque Laura e Aline produzem um caldeirão. Aliás, a produção das meninas, a meu ver, está permeado de conhecimento que são comungados entre as duas: a disposição das pedrinhas, os gravetos, depois as folhinhas e por último o caldeirão. Perceba que não se trata de um emaranhado de gravetos, folhas e pedras misturados, mas a composição de uma fogueira. Há a apropriação de um conhecimento humano que é a produção de uma fogueira. Elas também não escolhem qualquer objeto para servir de caldeirão, mas um que tenha as formas similares com este. Outra coisa que merece atenção é o Lobo, inicialmente incorporado por Arnaldo e posteriormente, a partir da intervenção de Laura, assumido por João. O Lobo é forte, no entanto, as crianças percebem que se todos os porquinhos se unissem conseguiriam levar o lobo até o caldeirão. Percebam que na brincadeira há uma simultaneidade das ações e das narrativas que possibilitou às crianças uma potente ampliação de seus repertórios simbólicos e materiais à medida em que partilhavam aspectos sociais, conferindo-lhes sentidos próprios, circunscritos nas suas particularidades. Há de se notar ainda que a brincadeira é reiniciada duas Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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vezes neste mesmo período registrado, no entanto, há outros registros desta mesma brincadeira no parque, como este a seguir realizado dois dias depois do primeiro. Registro C – Da continuidade de uma brincadeira – e também da ausência do planejamento Estamos no parque. Fabrício, Amanda, João e Aline (re)iniciam a brincam de lobo e os três porquinhos. Desta vez Fabrício é o Lobo. O menino sai correndo atrás das crianças. Murilo e Bárbara brincam no balanço. Fabrício, no papel de Lobo, vai até os dois colegas que estão no balanço e faz um barulho com a boca parecendo ser um rugido. Me parece ser um modo de convidar os colegas a entrar na brincadeira. Murilo permanece no balanço, mas Bárbara sai correndo e grita para Fabrício: “você não me pega!” A correria é geral, até que João aparece com um graveto na mão e com ele em punho aponta para o Lobo e faz um som com a boca: pá, pow. Aline grita: “o caçador matou o lobo!” O Lobo cai com a mão no peito. Arnaldo que aparentemente não estava na brincadeira se aproxima e diz: “Eu vou cuidar dele.” Olha para o lobo e diz: “vou tirar a bala para tu não morrer.” João pergunta para Arnaldo se o lobo está com febre e Arnaldo responde: “não é gripe, eu tenho que tirar a bala.” (Registro - Grupo de crianças de 4 anos, junho de 2016)

O sociólogo da infância, Manoel Sarmento, explica que o tempo da criança é um “tempo sem medidas, sem regras, que se torna continuamente reinvestido de novas possibilidades, novas brincadeiras, novos sonhos, um tempo capaz de ser sempre reiniciado e repetido” (SARMENTO, 2004, p. 28). Nesta perspectiva o tempo da criança é um tempo da imaginação e não um tempo em que as coisas tem “hora” certa para acontecer, ou que tudo tem um começo, meio e fim. Benjamim (2008), também contribui neste sentido: Para a criança não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


176 | um caminho para assenhorar-se das terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjunto malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e de maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias. [...] A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. [...] A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. (BENJAMIN, 2008, p. 101-102).

Este “fazer sempre de novo” permite à criança elaborar no campo simbólico as suas experiências, apropriando-se dos sistemas culturais e sociais. Reconhecer e compreender a reiteração como processo importante para o desenvolvimento da criança possibilita uma maior participação dela nos contextos de educação. A entrada de dois personagens novos na brincadeira (o caçador e o médico) nos permite compreender que o faz de conta é sempre estruturado nas interações/relações que a mesma estabelece com os outros, se não no dado presente, nas interações passadas, tal como pontua Corsaro (2002) ao afirmar que “as crianças começam a vida como seres sociais inseridos numa rede social já definida e, através do desenvolvimento da comunicação e linguagem em interação com outros, constroem os seus mundos sociais” (CORSARO, 2002, p. 115). Isto significa que tanto João ao assumir o papel de caçador, quanto Arnaldo no papel de médico tiveram relação com esses papeis sociais. Esta situação me faz lembrar a ideia da desmistificação da brincadeira como sendo algo sempre prazerosa. Essa acepção parte de uma crítica da brincadeira idealizada como um fenômeno sempre prazeroso, espontâneo, natural, desprovido de racionalidade e objetividade. A desmistificação da brincadeira como ação sempre agradável pode ser percebida nos jogos estruturados quando as crianças lidam com a derrota em diferentes situações (quando o time adversário Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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faz um gol, quando o parceiro vence no jogo de tabuleiro, etc) e quando são negociadas as regras dos jogos, processo que muitas vezes gera conflitos e desentendimento. Isto ocorre também no faz de conta, quando as crianças negociam os papeis sociais que querem assumir nas brincadeiras: quem será o lobo? Quem será porquinho? Quem será o caçador? Para além deste processo de construção dos acordos, no faz de conta as crianças experimentam e interpretam papeis sociais que muitas vezes lhes causam angustia e medo na vida real. É o caso por exemplo quando as crianças assumem o papel do bandido, do pai que bate na mãe, no médico que lhe dá a injeção, etc. A oposição a ideia natural e espontânea se sustenta no pressuposto de que a brincadeira é uma forma de aprendizagem social, que se dá através de um processo de designação e de interpretação complexo nas relações interindividuais. A brincadeira é, portanto, cultural, tal como argumenta Brougerè: Longe de ser a expressão livre de uma subjetividade, é o produto de múltiplas interações sociais, e isso desde a sua emergência na criança. É necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidades de interpretação, portanto, de cultura.[...] Acima de seu substrato natural, biológico, o jogo 34 , como qualquer atividade humana, só se desenvolve e tem sentido no contexto das interações simbólicas, da cultura (BROUGERÉ, 1998, p. 113).

Para Sarmento (2002), a brincadeira é o meio pelo qual as crianças produzem, na relação entre pares, através de formas específicas de comunicação e significação, as culturas da infância. Corsaro (2002), nesta mesma direção, corrobora ao afirmar que é na brincadeira, especialmente por meio de interações de pares, que “as crianças produzem a primeira de uma série de culturas de

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autor utiliza o termo jogo também para as brincadeiras de faz de conta.

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pares nas quais o conhecimento infantil e as práticas são transformadas gradualmente em conhecimento e competências necessárias para participar no mundo adulto” (CORSARO, 2002, p. 114). Embora seja na brincadeira que as crianças desenvolvem sua personalidade, e esta seja a atividade guia da criança na percepção do mundo que as cerca, significando funções sociais e padrões de comportamento, a brincadeira não pode ser compreendida como impermeável às relações que as crianças possuem com os outros, sejam estes outros os adultos, as crianças ou até mesmo os objetos. Ao contrário, é na brincadeira que as crianças ressignificam/reelaboram todas as experiências vividas. Tenho pensado que este seja o X da questão quando nos propomos a pensar sobre a docência na Educação Infantil. As ações pedagógicas devem se colocar a serviço das brincadeiras das crianças. Nossas práticas devem ir ao encontro da ampliação e complexificação dos repertórios éticos, estéticos, culturais e sociais das crianças, a partir dos que elas nos dizem: na brincadeira. Das últimas reflexões para o agora Em consonância com o que foi defendido por mim no início deste capítulo - o processo de escrever tem muitas similitudes com a brincadeira das crianças - este artigo faz parte de muitos reinícios de produção da escrita. Não é o primeiro artigo que escrevo sobre a brincadeira. Espero que não seja o último. Tal como as crianças em suas brincadeiras, em cada artigo “novo” que escrevo sobre este tema, revisito meus conhecimentos, agrego novos conhecimentos que me são compartilhados na relação com as crianças, com as professoras e também com os estudos que são produzidos nesta área. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Dos caminhos que trilhei até o momento assumo a posição de que a brincadeira é a atividade-guia do desenvolvimento psíquico da criança e também um modo de criação cultural, por isso, defendo que ela deve ser o eixo estruturante dos processos pedagógicos, especialmente na Educação Infantil. Isto significa planejar todos os tempos e espaços da brincadeira, seja ela dentro da sala ou no parque. Com isto não quero dizer que a ação docente deve moldar, regular ou controlar a brincadeira. A ação docente nos espaços de Educação Infantil deve ampliar e dar suporte às brincadeiras infantis. Isto exige registro e reflexão permanente sobre as ações das crianças. Exige também estabelecer com elas uma relação democrática, no qual seus diferentes conhecimentos sejam valorizados. Referências ALMEIDA, Célia Maria de Castro. concepções e práticas artísticas na escola. In: FERREIRA, Sueli (Org). O ensino das artes: Construindo Caminhos. 2ª ed. Campinas: Papirus, 2001, p. 11-38. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2008. BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. BROUGÉRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. Traduzido por Gisela Wajskop. 4 ed. São Paulo, Cortez,2001. CORSARO, Willian A. A reprodução interpretativa no brincar ao "faz-deconta" das crianças. Educação, Sociedade e Cultura: Revista da Associação de Sociologia e Antropologia da Educação, Porto, v. 17, p. 113-134, 2002. MELLO, Suely Amaral. Infância e Humanização: algumas considerações na perspectiva histórico-cultural. Perspectiva, Florianópolis, v. 25, n. 1, 83-104, jan./jun. 2007. VIGOTSKI, Lev. S. Obras Escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. (Originalmente publicado em 1927). Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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O espaço que se transforma em ambiente: experiências humanizadoras na Educação Infantil35 Cassiana Magalhães Introdução Adentrar numa instituição de Educação voltada ao atendimento de crianças pequenas é sempre uma experiência inusitada. Os barulhos, os cheiros, as cores, às vezes, são convidativos; outras vezes, entristecidos, não pela escolha das cores ou ausência delas, mas pela falta da participação e pertença das crianças. Algumas vezes, os espaços são tão pobres de recursos (não apenas financeiros), mas de registros de vida e educação, que pouco documentam as marcas deixadas ao longo do processo. Por outro lado, há espaços tão convidativos, que nos chamam para permanecer, olhar e apreciar, sentar-se e ficar um pouco mais, contemplar, descobrir e investigar as maravilhas que se fazem por ali. É desses espaços que venho falar aqui. De espaços que gradativamente se transformam em ambientes. Para Forneiro (1998, p. 232), o termo espaço “refere-se ao espaço físico, ou seja, aos locais para a atividade caracterizados pelos objetos, pelos materiais didáticos, pelo mobiliário e pela decoração”. E o termo ambiente “refere-se ao conjunto do espaço Este texto foi apresentado originalmente no México: El espacio que se transforma en ambiente: experiencias humanizadoras en la educación infantil. Durante o 2º Congreso Internacional de Educación Infantil UNAN y el 2º Congreso de Guarderias Universitarias de America Latina y el Caribe UDUAL. Parceria das Unidades Universitárias de Educação Infantil com as faculdades de educação: formação inicial dos professores em questão, 2018. 35

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físico e às relações que se estabelecem no mesmo”. Se desejamos contribuir com os processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças e com a ampliação de seus repertórios culturais, não basta a manutenção dos espaços físicos, é imprescindível a construção de ambientes. Vamos então refletir sobre as implicações da organização dos ambientes na Educação Infantil? Sugiro utilizarmos os próprios documentos norteadores do Ministério da Educação (BRASIL, 2010, 2012), autores da área e, ainda, os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, por fornecer indicadores a respeito do desenvolvimento das crianças, especialmente a atividade principal em cada período. Para além do referencial teórico, trago algumas fotografias para compor o texto com intuito de ilustrar e refletir as possibilidades de transformação dos espaços em ambientes de aprendizagens. As fotografias foram registradas em atividades de pesquisa ocorridas no Brasil e em Portugal no ano de 2018. A construção dos ambientes e as crianças Do ponto de vista dos documentos oficiais, temos um documento mandatório que defende: “As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira” (BRASIL, 2009, p. 25). Os documentos oficiais ainda oferecem pistas para pensar a organização dos espaços, como o Manual de Orientação Pedagógica Brinquedos e Brincadeiras de Creche: Ambiente educativo para crianças de creches deve respeitar a pedagogia das relações, de bebês e crianças pequenas que adquirem experiências ricas em um mundo de afetos, de relações positivas e desafiadoras, de fantasias e encantamentos. Contatos entre crianças da mesma idade, de idades diferentes, de crianças e adultos, da creche com Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 183 as famílias e membros da comunidade fazem parte desse mundo de relações. (BRASIL, 2012, p. 109).

No entanto, o que se vê no dia a dia das instituições são crianças separadas por idades, irmãos que frequentam a mesma escola e não se encontram, famílias barradas do portão para fora, comunidade não inserida no contexto escolar. Reportando a situação dos bebês e crianças pequenas e sua inserção nas instituições educativas, cabe ressaltar a importância do acolhimento. Considerar que o primeiro ano de vida é marcado pela necessidade de cuidados e atenção por parte dos adultos é condição para pensar as formas de organização do ambiente. Com a Teoria Histórico-Cultural aprendemos que a atividade principal dos bebês é a Comunicação Emocional Direta; para Vygotski (2006, p. 304), “trata-se de manifestações emocionais, de transferências de afeto, de reações positivas ou negativas”. De acordo com Mello, Essa comunicação emocional é a forma como o bebê melhor se relaciona com o mundo ao seu redor. Por isso, é a atividade que melhor promove o desenvolvimento do bebê no primeiro ano de vida. Ela resulta de uma ação em comum que a pessoa adulta inicia – e, não será demais insistir, se esforçar por estabelecer e manter – com a criança por meio do olhar, da fala e do toque carinhoso e atencioso. É uma situação de reciprocidade. (MELLO, 2014, p. 47).

Para essa situação de reciprocidade acontecer, é interessante um ambiente acolhedor, um lugar que permita aproximações e encontros. Desde o momento da chegada dos bebês na creche, o modo de recebê-los e separá-los das suas famílias para integrá-los a um novo grupo precisa ser planejado. Não apenas o bebê necessita de cuidados neste momento, mas a família também precisa se sentir segura e acolhida. Nas palavras de Martins (2009, p. 42), “ainda que o objetivo central da Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Educação Infantil seja o atendimento à criança, suas ações devem estender-se de modo intencionalmente planejado também para as famílias”. O espaço da sala, apesar de coletivo, pode contemplar objetos de uso pessoal do bebê, não havendo necessidade de retirar abruptamente os pertences da criança (fraldinha, paninho, ou outro objeto que lhe seja importante). A preocupação com o acolhimento aparece também nos documentos oficiais: (...)um espaço de acolhimento, onde a professora recebe a mãe e a criança antes de entrar na sala de atividade e onde a criança pode brincar com a professora ou com a mãe, fortalecendo vínculos, preparando-se para a separação. (BRASIL, 2012, p. 112).

Gradativamente, o bebê vai se ambientando e explorando o espaço com ajuda dos adultos, e necessita de momentos de atenção exclusiva. Por isso, as trocas de fraldas, a hora do banho e alimentação são momentos tão primordiais. Nessas situações, a comunicação emocional ganha espaço privilegiado. O modo de organização dos espaços de banho e troca, por exemplo, podem potencializar esse tempo. Ambientes claros, arejados, com objetos que podem ser manipulados pelos bebês, sempre permeados por conversas, cantorias e estímulos advindos dos adultos são bemvindos. Para Mello, À medida que cresce essa relação do bebê com a educadora, os objetos utilizados pela educadora e os objetos que ela aproxima do bebê vão criando nele o prazer e a necessidade de ver, ouvir, tocar esses objetos. Por isso, é trabalho da educadora organizar o ambiente ao redor do bebê com muitos objetos que chamem a atenção e despertem nele o movimento para pegar e explorar esses objetos que devem ter cores, formas, tamanhos e texturas diversas e permitam uma riqueza de sensações e percepções ao bebê que os explora. (MELLO, 2014, p. 47).

Com o crescimento dos bebês, cresce também a necessidade de explorar o espaço e, com isso, a importância de apresentar Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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novos objetos e ampliar as possibilidades de exploração. Esse novo período engendrado é chamado pela Teoria HistóricoCultural de Atividade Objetal Manipulatória, em que as crianças manipulam os objetos a sua volta. De acordo com Elkonin (2009, p. 216), “o desenvolvimento das ações com os objetos é o processo de sua aprendizagem sob a direção imediata dos adultos”. Uma das possibilidades que se apresenta para contribuir com a organização do ambiente nas turmas de berçário são os cestos de tesouros, que podem ser organizados com materiais reais, naturais de diferentes texturas, espessuras, tamanhos, cores e formas; especialmente porque (...)um dos focos do trabalho educativo nos primeiros meses de vida é, pois, a organização intencional de situações educativas que possibilitem à criança perceber cores, sons, texturas, cheiros, sabores, resultante da relação comunicativa do(a) professor(a) com o bebê. (LIMA; VALIENGO; RIBEIRO, 2014, p. 28-29).

As condições de organização do espaço, de disposição dos objetos, são aqui fundamentais para o desenvolvimento das crianças. Especialmente porque “é o adulto quem nomeia e transmite para a criança o significado e os modos socialmente elaborados de ação com o objeto, permitindo sua conversão em instrumento da cultura” (PASQUALINI; EIDT, 2016, p. 121), é por meio dessa atividade que a criança se apropria da função social do objeto. No entanto, não basta apenas disponibilizar os objetos, jogá-los de qualquer maneira. A ação intencional do adulto e sua manipulação junto à criança será essencial na promoção do seu desenvolvimento. São os adultos que, ao participarem da vida dos bebês, poderão qualificar seu modo de exploração dos objetos, por duas vias: pela disponibilização intencional e planejada dos próprios materiais que integram o cesto e por meio da ampliação da linguagem das crianças, o que acarretará uma

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186 | reorganização em seus processos psíquicos. (MAGALHÃES; LAZARETTI; EIDT, 2017, p. 19).

Cabe destacar que na própria organização do ambiente já está a ação intencional do adulto: o modo de disposição dos objetos ao alcance dos olhos e das mãos, a escolha dos materiais, a alternância dos recursos. De nada adianta deixar os mesmos objetos o ano inteiro, as crianças vão explorá-los, manipulá-los e perder o interesse. Por outro lado, a presença do adulto ao lado delas, ensinando novas formas, o uso adequado para os quais foram criados, inventando novas possibilidades, ampliando seus repertórios, oferecendo outros materiais, criando nas crianças novas necessidades e interesses, podem incidir significativamente no desenvolvimento de cada criança. Pois, neste período, A atividade objetal manipulatória destaca-se das demais como atividade promotora do desenvolvimento integral da criança pequena justamente por ser a atividade que, adequadamente orientada pelo adulto, requer a realização de operações psicomotoras que estão na iminência de se formarem, subsidiando sua formação à medida que cria a necessidade de que se expressem objetivamente no comportamento infantil. (CHEROGLU, 2014, p. 110).

Para tanto, a intervenção do adulto se faz novamente primordial; é o adulto quem explicita os traços da atividade humana, nas palavras de Lazaretti (2008, p. 155), “nos objetos, não está escrito ou indicado diretamente os modos de emprego, sendo assim, a criança não pode descobri-los por meio de simples manipulações, sem orientação do adulto, sem um modelo de ação”. Retoma-se, portanto, o papel do professor na organização do espaço e na participação junto à criança na exploração e manipulação dos objetos. Nesse período, as atividades no espaço externo são fundamentais. O contato com a terra, com a natureza, permite a experimentação com novos elementos. A imagem a seguir é de um Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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espaço externo de um Centro Municipal de Educação Infantil da cidade de Londrina – Paraná, aproveitado com pneus reciclados, pintados com ajuda das famílias e utilizado para plantar e manipular a terra.

Foto 1: A riqueza do ambiente externo (arquivo da autora).

Foto 2: Experimentando a cenoura que haviam plantado

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Nesse dia, as crianças exploraram ferramentas como pás, baldes, regadores (haviam regado a horta ao lado anteriormente) e colheram cenoura que haviam plantado. A professora aproveitou o próprio espaço para lavar o legume e incentivar que as crianças experimentassem. Plantar, regar, cuidar, colher foram ações ensinadas para as crianças pequenas, que acompanharam cuidadosamente a horta e puderam desfrutar da “colheita”. Nas duas cenas anteriores (Figuras 1 e 2), foi possível acompanhar a utilização do ambiente externo, no qual crianças de aproximadamente um ano e oito meses de idade tiveram a oportunidade de conviver com seus pares, com sua professora e, ainda, manipular objetos e elementos da natureza, intencionalmente organizados naquele ambiente para promover o desenvolvimento das crianças. Outro ponto a ser destacado é a questão da comunicação e o desenvolvimento da linguagem das crianças: enquanto exploravam aquele ambiente, as crianças recorriam à professora e falavam “o tomate” (quando encontravam um tomatinho na horta), bem como nomearam a cenoura e, ainda, alguns objetos com ajuda da professora. Essa atividade de comunicação (...) constitui um dos fatores fundamentais do desenvolvimento infantil. É por seu intermédio que a criança pode assimilar a experiência acumulada pela humanidade e, nesse processo, desenvolver suas capacidades, habilidades, aptidões e a sua personalidade. (BISSOLI, 2014, p. 836).

Quando a atividade objetal manipulatória vai se esgotando como fonte de desenvolvimento, a criança começa a interessar-se pelo sentido social dos objetos e, então, uma nova atividade se engendra, a saber: a brincadeira de papéis sociais. Essa brincadeira emerge da contradição apresentada à criança que, por um lado, quer fazer coisas do mundo adulto e não pode, por exemplo, não pode dirigir, cozinhar, viajar sozinha, porém, por Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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outro lado, por meio da brincadeira, pode realizar essas e muitas outras ações. “Objetivamente, isso significa que a criança vê o adulto, sobretudo, pelo lado de suas funções. Quer atuar como o adulto, sente-se dominada por esse desejo” (ELKONIN, 2009, p. 404). Por meio da brincadeira, a criança reproduz o mundo dos adultos, as relações sociais, as formas de comportamento humano. Nesse sentido, a organização do ambiente pode contribuir significativamente para o surgimento de tal atividade. Significa criar condições para potencializar a brincadeira, inicialmente compreender sua importância para o desenvolvimento infantil, o que não se restringirá a apenas observá-la. A próxima imagem retrata a organização do ambiente que possibilita a brincadeira de faz-de-conta. Os materiais disponíveis permitem a imitação do “mundo dos adultos”.

Foto 3: Escola em Évora – Portugal (Arquivo da autora).

Como esse espaço é organizado dentro de uma sala, significa que diariamente as crianças podem desfrutá-lo. No caso específico Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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desta vivência 36 , as crianças escolhem os espaços que desejam explorar naquele dia, por meio de um quadro preenchido pelas crianças com ajuda das professoras. O importante em relação à imagem é refletir o quanto o ambiente é convidativo para brincar, que os elementos dispostos naquele lugar permitem às crianças estabelecer relações entre si e com as professoras. E especialmente, possibilitam vivências da vida cotidiana, possuem objetos variados, móveis, roupas e acessórios que permitem ampla manipulação, criação de personagens e imitação da vida adulta. Nessa mesma perspectiva de vivência do faz-de-conta, um Centro Municipal de Educação Infantil da cidade de Londrina, no Paraná, aproveitou o espaço externo para construir uma “cozinha de barro”. Neste ambiente, as crianças têm possibilidade de manipular os objetos reais de uma cozinha, juntamente com os elementos da natureza (terra, água, grama, folhas secas). No espaço da cozinha, as crianças experimentam novas Foto 4: Cozinha de barro. sensações, texturas, derramam, desorganizam e aprendem a organizar. Conseguem perceber “o

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É uma sala do Movimento da Escola Moderna, na cidade de Évora em Portugal, que possui outros espaços como: Marcenaria, Laboratório, Jogos, Leitura, Artes e outros. Para saber mais, acesse: http://www.movimentoescolamoderna.pt/

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que cabe dentro do que”, fazem bolos, almoços, recebem colegas e até visitas inesperadas. Na Educação Infantil, os ambientes externos ganham muito importância. É preciso lembrar que algumas crianças permanecem o Foto 5: Fogão de lenha. dia todo na escola; com isso, as atividades ao ar livre, o contato com a natureza, tomar sol são essenciais para o seu desenvolvimento. Esses espaços também promovem encontros com as crianças de diferentes idades, criam novas necessidades, como compartilhar objetos, elaborar enredos para as histórias, assumir papéis sociais, por exemplo. Assim, as ações próprias da criança se objetivam na forma de ações de outra pessoa e, com isso, facilita-se sua conscientização, seu controle consciente. A criança controla com dificuldades suas próprias ações; porém as controla de maneira relativamente mais fácil quando elas estão, por assim dizer, exteriorizadas e dadas na forma de ações de outra pessoa. Por isso, o papel executado pela criança tem uma importância excepcional na conscientização de suas ações, ao pôr-se diante de seu olhar interior e a ajudá-la a tomar consciência delas. (ELKONIN, 1987, p. 99, tradução nossa).

Para além da importância do papel que assume na brincadeira, até porque por meio dele pode-se dizer que a criança tem condições de aprender o autodomínio da conduta, destaca-se, ainda, o desenvolvimento da imaginação. Para Vygotski (2009, p. 25), A imaginação é o novo que está ausente na consciência da criança na primeira infância, absolutamente ausente nos Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


192 | animais, e representa uma forma especificamente humana de atividade da consciência; e, como todas as funções da consciência, forma-se originalmente na ação.

Nesse sentido, cabe à escola criar as condições adequadas para o desenvolvimento da imaginação. Tanto por meio da organização do espaço, como pela participação intencional do(a) professor(a) na brincadeira de papéis sociais. Os desafios da transformação do espaço em ambiente Não é simples transformar um espaço em ambiente. Horn nos dá uma pista, O olhar de um educador atento é sensível a todos os elementos que estão postos em uma sala de aula. O modo como organizamos materiais e móveis, e a forma como crianças e adultos ocupam esse espaço e como interagem com ele são reveladores de uma concepção pedagógica. (HORN, 2004, p. 14).

Essa revelação é preocupante, já que o modo de organização do espaço traduz uma concepção pedagógica. Muitos espaços são permeados de enfeites, imagens midiáticas que pouco revelam a identidade das crianças. Espaços decorados por professores(as) no início do ano, com materiais prontos, estereotipados, em sua maioria fixados longe dos olhos e das mãos. Certamente, esses espaços são reveladores de uma criança incapaz, incapaz de interagir com os materiais a sua volta, de atuar como pertencente aquele lugar. Ao contrário, (...) Vigotski reafirma a concepção de criança como capaz e a responsabilidade dos adultos – educadores – na formação da humanidade em cada ser humano: ao criar um novo objeto, criamos as habilidades necessárias ao seu uso, assim como aptidão para seu uso. (MELLO, 2015, p. 5).

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Alguns espaços são reveladores dos percursos, do que as crianças dizem e fazem. Documentam a vida do grupo, os projetos de trabalho, as aprendizagens. Possivelmente, esses espaços são potencialmente capazes de se transformar em ambiente; ambiente que promove o encontro com a cultura, com o que há na comunidade, com as notícias da cidade, do país e do mundo, com os olhos de quem vê crianças capazes. Nas palavras de Folque, A exposição dos produtos ou dos relatos dos processos nas paredes da sala convida a conversas recorrentes sobre os mesmos, entre crianças e entre crianças e adultos, ressignificando as atividades, aumentando o sentido social do trabalho desenvolvido, guardando a memória do trabalho do grupo, convidando a novas produções, alimentando, assim, a reconstrução cooperada da cultura. (FOLQUE, 2014, p. 968).

Essas exposições são permeadas de sentido para as crianças porque remetem a percursos da sua aprendizagem. Quando retomam as imagens podem conversar entre si sobre o que fizeram, contar para colegas de outras turmas, visitantes e familiares. Em outras palavras, conhecem a “exposição” ou o cartaz, as fotografias, os registros, enfim, fizeram e fazem parte dessa história. A disposição dos móveis também pode ser alterada de acordo com as atividades e os novos interesses. As crianças não precisam permanecer sentadas a maior parte do tempo, muito menos enfileiradas. Recursos como tapetes e almofadas são muito bem-vindos na Educação Infantil. Não existem regras rígidas ou modelos. Existem possibilidades de atuação conjunta e exploração do espaço que pode gradativamente se transformar em ambiente a depender das condições criadas.

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Considerações Finais Ao refletir sobre as possibilidades de o espaço se transformar em ambiente, reportamo-nos à Teoria HistóricoCultural e concordamos com Mello (2007), que, amparada nas ideias de Leontiev (1978), afirma, Apenas na relação social com parceiros mais experientes, as novas gerações internalizam e se apropriam das funções psíquicas tipicamente humanas – da fala, do pensamento, do controle sobre a própria vontade, da imaginação, da função simbólica da consciência –, e formam e desenvolvem sua inteligência e sua personalidade. Esse processo – denominado processo de humanização – é, portanto, um processo de educação. (MELLO, 2007, p. 88).

Ao concordar que, quando educamos, humanizamos e, portanto, são processos indissociáveis, a reflexão: “O espaço que se transforma em ambiente: experiências humanizadoras na Educação Infantil” buscou destacar o processo vivido nas escolas, pelas e com as crianças, especialmente por meio das implicações da organização dos ambientes para a promoção do desenvolvimento das crianças na Educação Infantil. Destaca-se que o modo de organização do espaço afeta diretamente o modo de participação das crianças nos contextos educativos. A disponibilização de materiais cria a necessidade de exploração, tateio e manipulação por parte das crianças. No entanto, não são quaisquer materiais que despertam interesse e promovem o desenvolvimento. Por isso, a importância da seleção e organização intencional por parte dos adultos/professores(as) para que haja interação das crianças com o ambiente, com seus pares e com seus(suas) professores(as) e, ainda, a intervenção adequada dos adultos ao participarem do processo de humanização das crianças.

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Referências BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Camara da Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 05/2009, de 17 de dezembro de 2009. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brinquedos e Brincadeiras de Creches. Manual de Orientação Pedagógica. Brasília, DF: MEC/UNICEF, 2012. BISSOLI, Michele de Freitas. O desenvolvimento da linguagem oral da criança: contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a prática pedagógica na creche. Perspectiva, Florianópolis, v.32, n.3, p. 829854, 2014. CHEROGLU, Simone. Educação e desenvolvimento de zero a três anos de idade: contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a organização do ensino. 2014. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP, Brasil. 2014. ELKONIN, Daniil Borisovich. Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia. In: DAVYDOV, Vasily; SHUARE, Marta. (Orgs.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS (antología). Moscú: Progreso, 1987, p. 104-123. ELKONIN, Daniil Borisovich. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. FOLQUE, Maria Assunção. Reconstruindo a cultura em cooperação mediado pela pedagogia para a infância do Movimento da Escola Moderna Portuguesa. Perspectiva, Florianópolis, v. 32, n. 3, p. 951975, 2014. FORNEIRO, Lina Iglésias. A organização dos espaços na Educação Infantil. In: ZABALZA, Miguel A. Qualidade em Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 229-281. HORN, Maria da Graça Souza. Sabores, cores e aromas: a organização do espaço na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004. LAZARETTI, Lucineia Maria. Daniil Borisovich Elkonin: um estudo das ideias de um ilustre (des) conhecido no Brasil. 2008. Dissertação ( Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade

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Literatura com bebês: semear a escuta e o imaginário Daniele Marques Vieira Silvia Pandini Neste texto, buscamos construir algumas referências para a prática da literatura em Berçários, as quais propiciarão às professoras comparar suas experiências efetivas com as que propusemos no projeto em discussão no presente capítulo. Além disso, esperamos que tais profissionais visualizem novas possibilidades a serem experimentadas em seus contextos, certamente complexos, que, inúmeras vezes, revelam grandes desafios para conciliar expectativas, desejos, interesses, demandas e necessidades. De início, destacamos que a dinâmica do trabalho com bebês de 4 a 18 meses exige lançar mão de saberes e conhecimentos que inter-relacionam desde características particulares do tempo de vida, limites e possibilidades frente a ritmos, modos de interagir e de se relacionar até preferências e conquistas acerca do entorno e de si. Deve-se considerar, sobretudo, as especificidades da instituição educativa como ambiente coletivo, as condições estruturais que envolvem espaço, tempo, agrupamentos, características dos profissionais, que resultam em determinações da ação pedagógica, as quais nem sempre favorecem o atendimento daquilo que sabemos ser direito das crianças desde bebês. Nesse sentido, conforme as características da faixa etária e o que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), sobre suas funções sociopolítica e pedagógica, acreditamos na relevância da reflexão sobre como estamos garantindo, ou não, os direitos de Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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aprendizagem – conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se - explicitados na Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil (OLIVEIRA, 2018). Para que essa reflexão seja efetiva, é necessário confrontar concepções, condições de oferta e, no âmbito da prática, a pertinência de propostas e oportunidades para os bebês. Com essa perspectiva, apresentamos uma proposta que se filia no conceito de letramento literário 37 (COSSON, 2006) com bebês, desenvolvida em uma instituição de Educação Infantil privada de Curitiba 38 , iniciada no segundo semestre de 2018, a partir de um projeto compartilhado entre professoras de Berçário intitulado “Literatura com Bebês”. O objetivo desse projeto é o aprofundamento do tema “literatura na Educação Infantil” (LÓPEZ, 2016), pela reflexividade da experiência educativa na confrontação de saberes da prática (CONTRERAS, 2010), privilegiando a observação com foco nas ações das crianças para identificar interesses e atitudes relativas à cultura do letramento. Atrelada a essa proposta, buscamos promover a ampliação de oportunidades desde uma perspectiva estético-didática, sobre a estruturação de vivências e interações no espaço-ambiente da Educação Infantil (VIEIRA, 2016), até o enriquecimento da experiência dos bebês. Em 2019, diversificamos a proposta de letramento com bebês com o projeto “Ateliê de Narrativas – com Bebês e Crianças bem pequenas”.

Processo de apropriação da literatura enquanto linguagem, como ato contínuo e em movimento que inicia com as cantigas de ninar e se prolonga ao longo da vida em situações diversas que inter-relacionam a experiência do sujeito com diversas narrativas – romance, novela, filmes. 38 A Escola Parlenda, tem se constituído campo de inúmeras investigações acerca do trabalho com bebês, o que pode ser verificado em textos publicados em revistas e eventos, citados nas referências bibliográficas: ARAÚJO; VIEIRA, 2019; COUTINHO; VIEIRA, 2019; VIEIRA, 2018. 37

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Projeto Literatura com Bebês Ao observar o trabalho com literatura no Berçário, nos deparamos com a recorrência de práticas que, muitas vezes, se resumiam a disponibilizar livros específicos à faixa etária – de materialidade durável – para sua manipulação, apresentar momentos de contação de histórias com enredos curtos e imagéticos. Essas ações ocorrem, geralmente, em situações de pequeno grupo que permanece por um tempo reduzido em volta da professora, invariavelmente com interesse pelo objeto-livro. Desafiadas a problematizar o tema “literatura com bebês” a fim de vislumbrar outras possibilidades para a experiência de letramento, com oportunidades que pudessem contemplar e enriquecer a potencialidade desses sujeitos para a escuta e imaginação implicadas pelo universo literário, nosso grupo, formado por 4 professoras de Berçário e uma coordenadora pedagógica, voltou-se à construção de um projeto compartilhado, orientado pelo estudo de textos e delineado a partir da discussão que confrontou a realidade observada em situações cotidianas e as reflexões anteriores feitas coletivamente. Inicialmente, foi necessário criar um espaço para estudo, reflexão e discussão acerca da prática no cotidiano, o que foi possível pela organização de momentos regulares e previstos em reuniões destinadas ao Berçário. Além disso, foi programado um tempo para as leituras e para os encontros com finalidade de discussão no coletivo. Com a intenção de promover o diálogo sobre a “literatura com bebês” propôs-se a leitura dos textos do Caderno 4 do Projeto “Leitura e Escrita na Educação Infantil”, foram discutidas, especialmente, as Unidades 1 e 3, de Maria Emília Lopez (BRASIL, 2016). Da leitura, discussão e reflexão coletiva, delineamos a premissa do projeto: - ter como perspectiva pensar a relação entre Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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linguagem, imaginário e simbolização por meio da cultura que permeia o cotidiano da Creche - canções de ninar; o objeto-livro; o adulto como sujeito da cultura que apresenta a palavra e narrativas ritualísticas. E, também, a partir de questões iniciais propostas pela coordenadora do grupo39, mediante a observação no cotidiano e relacionando ao que o texto nos ensejou pensar, pudemos mapear a prática corrente com a literatura no Berçário, a partir destas questões: - Como aproximar os bebês da literatura? - De que modo demarcamos a linguagem como instrumento interativo? - Em que momentos do cotidiano valorizamos a cultura letrada na vivência dos bebês - como, onde, com o quê? Após o grupo discutir e compartilhar saberes e compreensões acerca do tema em estudo, constatamos que: 1. A aproximação entre bebês e literatura se dá criando uma rotina diária de leitura ou contação de histórias, com imagens ou outros recursos que despertem o interesse dos bebês – bonecos, fantoches, dedoches, elementos que representem personagens recorrentes nas histórias. 2. O modo de demarcar a linguagem como instrumento interativo se constitui a partir das histórias contadas ou inventadas, quando fornecemos repertórios que as crianças, posteriormente, acionam para se expressar, imaginar e criar as próprias versões das histórias ou relacionarem tais histórias, imagens ou outros recursos com seu cotidiano. 3. Os momentos no cotidiano em que valorizamos a cultura 39

A referida coordenadora, à época, é também uma das autoras deste texto.

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letrada com os bebês - como, onde, com o quê – são todos aqueles em que nos comunicamos com eles, utilizando a cultura letrada seja nas rotinas diárias de alimentação, higiene ou nas propostas, mas, principalmente no momento em que reservamos para o contato com o livro que representa a cultura, assim como outros recursos de leitura e contação de histórias. Com a finalidade de estabelecer uma estrutura didáticopedagógica com o trabalho de literatura que já vivenciávamos e delinear possibilidades a serem implementadas, nos dedicamos a inventariar os saberes que alicerçavam a prática cotidiana, confrontando com o que os textos estudados ressoavam em nossa percepção e suscitavam na reflexão da experiência educativa com bebês. Assim, sistematizamos uma proposta de trabalho no projeto “Literatura com Bebês”, dando visibilidade e sentido ao que já realizávamos a partir de um entendimento construído coletivamente e vislumbrando a possibilidade de oferecer situações comuns em que pudéssemos também experimentar o compartilhamento da experiência de letramento entre as turmas, organizadas em grupamentos de 4 a 12 meses e de 12 a 18 meses. Quadro 1: Sistematização da proposta do Projeto Literatura com Bebês Mapeamento didático-pedagógico do projeto literatura com bebês Saberes Propostas Elementos Repertório de vivência da infância - cantigas, culturais e versos, parlendas...; livros de bebês para materiais manipulação; Livros de literatura infantil; diversos Panos - voal, tapetes, lenços; disponíveis no Personagens - bonecos; fantoches, dedoches; cotidiano Caixas para acondicionar elementos das histórias; Sacola para acondicionar o livro a ser lido pela professora; Imagens referentes às histórias. - Estratégias Contação de Histórias; Leitura de Histórias;

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- Possibilidades comuns

Narrativas; Manipulação de elementos das histórias e do objeto-livro. Momento Literário Na Sala de Referência; na Praça; no Recanto do Quintal; na Varanda.

Fonte: autoras, 2019.

A partir da evidenciação de práticas comuns, confrontamos o que já realizávamos com o que estudamos e percebemos que aquilo que já fazia parte do nosso repertório constituía conhecimento da literatura com bebês, denominado por López (2016) como “reservatório de vivências próprias associadas à infância” preenchido de afeto, linguagem e patrimônio cultural cantigas de ninar, acalantos, brincadeiras com os dedos a tocar o corpo do bebê, canções balbuciadas no ritmo do olhar, do sorriso ou do choro do bebê, parlendas, brincadeiras de roda. Compreendemos que esses saberes estéticos da cultura cotidiana têm valor educativo relevante para a prática, tanto pela possibilidade de fortalecer os vínculos entre adultos e crianças, como pela qualidade linguística que provoca os bebês em sua potência e condição social de seres de linguagem. Vislumbramos, no compartilhamento da experiência de letramento entre grupos, uma possibilidade de enriquecimento das vivências dos bebês. A partir disso, pudemos refletir sobre as relações educativas decorrentes da nossa prática e problematizar a pertinência das nossas intencionalidades, revendo posturas, modos culturais e encaminhamentos, para então, propiciar continuidades e diversificar oportunidades com vistas a fomentar as vivências de letramento das crianças de modo significativo. O próximo passo foi estruturar um projeto compartilhado entre as professoras, com tema geral comum e aspectos definidos por elementos que se diferenciaram conforme as particularidades Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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dos grupos. Foi organizado por um quadro construído coletivamente e socializado virtualmente para que todas pudessem acompanhar o transcorrer do projeto, tanto em termos de planejamento como em relação ao que foi acontecendo em cada grupo. Quadro 2: Projeto Compartilhado - Literatura com Bebês Estruturação do Projeto Literatura com Bebês Nutrir com palavras e sentidos o TEMA GERAL cotidiano dos bebês ASPECTOS DO GRUPO I GRUPO II GRUPO III GRUPO IV PROJETO Um tema que nos mobiliza Intencionalidades Ambientação Propostas Previsão de momentos oferecidos Fonte: autoras, 2019.

Esta forma de socializar aspectos e encaminhamentos do projeto promoveu, de um lado, a atualização dos registros – propostas pensadas e previstas nas salas de referência e em espaços comuns –, e de outro, a circularidade dos grupos no sentido de integrar propostas e compartilhar oportunidades de vivências entre os grupos. O planejamento de ações proposto pelas professoras pôde, assim, ser otimizado tanto pela possibilidade de utilização da ambiência relativa ao projeto, com cenários e organização dos espaços a partir do que cada grupo estava vivenciando, como constituiu uma troca efetiva de saberes e conhecimentos entre as crianças. Destacamos ainda que a intencionalidade do projeto como

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uma ação didático-pedagógica voltada à literatura propiciou a intensificação do letramento não só pela socialização de elementos peculiares – livros, fantoches, dedoches – mas também pelas oportunidades diversificadas para a escuta de histórias em ambientes favoráveis ao envolvimento e compartilhamento de saberes acerca dos modos de leitor, ouvinte e narrador. Pudemos perceber também que a regularidade oferecida pelo projeto favoreceu os bebês na constituição de uma experiência literária qualificada pela expectativa positiva em relação às situações específicas oferecidas pela instituição. Assim, as vivências culturais diferenciadas, como teatro e contação de história, protagonizadas por artistas convidados, constituíram oportunidades de experienciar o tempo da escuta e a corporeidade livre a uma expressão responsiva por gestos e palavras, enunciados pelo outro protagonista, sinalizando cumplicidade e encantamento com o jogo lúdico da narrativa literária, não mais desconhecida, sobrepondo o estranhamento a um repertório construído cotidianamente. Destacamos que a partir da reflexão relativa à prática, as professoras puderam aprender mais sobre os saberes que vinham exercendo intuitivamente, ou tinham sido apreendidos no âmbito da Creche pela recorrência de práticas comuns e peculiares, alicerçadas na cultura. No âmbito do projeto compartilhado, tais saberes, problematizados e complexificados pela compreensão da experiência educativa, na confrontação de elementos eleitos ao observar as interações e refletir a pertinência das propostas, conformam um constructo coletivo que aciona conhecimentos, amplifica possibilidades e ressoa novos saberes. Assim, a oportunidade do projeto propiciou às professoras oferecer uma ação consciente e com intencionalidade declarada e mais qualificada à constituição de repertórios impregnados de afeto, palavras e gestos, com sentido humanizador e culturalmente Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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enriquecido. No ano seguinte (2019), partiu-se para uma nova possibilidade à experiência de letramento literário dos bebês, na qual uma profissional específica, a atelierista 40 , oferecia regularmente, o contato com a leitura, contação e manuseio do livro em um coletivo formado pelas turmas dos bebês. Ateliê de Narrativas com Bebês e Crianças bem pequenas Considerar o contexto da Educação Infantil como oportunidade de aproximação de bebês e crianças bem pequenas do texto literário, se funda na intencionalidade de colocá-los em contato com outras realidades, a fim de ampliar seu repertório imagético, banhá-los com referências bem cuidadas de ilustração, enredos, vocabulário e metáforas pela constituição de um ambiente que acolhe a complexidade humana, em que possam se alicerçar e ensaiar suas relações com o mundo. Desse modo, em 2019, iniciamos um projeto que denominamos “Ateliê de Narrativas” cujo foco era propiciar encontros periódicos entre bebês e crianças de até 3 anos com um repertório selecionado de histórias composto por gêneros diferenciados, tais como: contos de fadas, histórias sem texto, poesia, haicais e acalantos. Nosso intuito foi fomentar a regularidade de situações literárias com modos de contar, ler e narrar histórias, realizadas por alguém que fosse da escola, mas não professora dos grupos de 40

O termo atelierista deriva da abordagem de Reggio Emilia e designa o profissional com um tipo de pensamento livre que promove a integração entre linguagens da cultura e que provoca a criatividade e expressão artística. De acordo com o glossário organizado no livro “As cem linguagens da criança”, o atelierista é o “professor com formação artística ou um artista local encarregado do atelier. Este profissional tem a função de auxiliar no desenvolvimento do currículo, bem como de registrar e documentar as atividades realizadas” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016).

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referência dos bebês e das crianças bem pequenas. Esse contexto representa uma oportunidade de contemplar a complexidade inerente ao potencial comunicativo humano, a fim de provocá-los ao acontecimento novidadeiro e a exercer sua autonomia diante da própria experiência de letramento literário que vinham constituindo no cotidiano. Desde o início nos propusemos a investigar quais os espaços da escola eram mais adequados para oferecer esse momento de contato com a literatura e experimentamos diferentes configurações de grupos de bebês e crianças. Preparávamos o espaço pensando no conforto e segurança dos bebês, que necessitavam da presença das professoras de referência mais próximas, e das crianças pequenas, considerando a possibilidade de movimentação espontânea que poderiam adotar durante a vivência. Notamos que a delimitação de duas turmas de crianças em cada sessão, resultava em uma quantidade pertinente, não só pelos espaços que dispúnhamos, mas também para lhes oferecer a oportunidade de se manter próximas aos livros ou dos objetos e cenários preparados para contextualizar o tema e propiciar explorações. Tal observação derivou de momentos em que grupos com uma quantidade maior geraram mais ruído, enaltecendo estranhamento e desconforto para alguns bebês e crianças. É importante relatar que escolhemos a atelierista da escola para estar à frente do Projeto “Ateliê de Narrativas”, em função de seu interesse e conhecimento da literatura infantil. Essa característica da atelierista, como profissional que encaminhou as propostas e momentos com os bebês e as crianças bem pequenas, mostrou-se especialmente relevante para uma curadoria atenta à escolha dos livros e histórias. Além disso, a partilha de sua ampla formação no tema com as professoras dos grupos, trouxe novas referências aos modos de apresentar o livro, realizar a mediação, pensar na postura e nos gestos do adulto que narra ou lê, nos Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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adereços e cenários que poderiam provocar metáforas e convocar os sentidos dos ouvintes. Outro aspecto diferencial do projeto foi a circulação da atelierista41 pelos espaços da escola, propiciando contextos favoráveis à vivência literária. Essa situação permitiu às crianças bem pequenas e aos bebês experimentarem outras ambientações, tendo como referência um adulto que lhes era familiar ao ar novidadeiro que sua chegada anunciava a cada momento de ler e compartilhar um tempo de afeto, sentidos e histórias. Nossa investigação também se voltou às histórias: a qualidade dos enredos, das ilustrações e dos conteúdos que mobilizam. Assim, quinzenalmente, a atelierista selecionava uma história para ser lida ou contada para os diferentes grupos. Inicialmente, apreciamos uma seleção de Contos de Fadas: Chapeuzinho Vermelho, Este é o lobo, Era uma vez e a história A Bela Adormecida, contida no livro Contos de Princesas. Os Contos de Fadas se constituem por uma estética que mobiliza muitos conteúdos emocionais e psíquicos em adultos e crianças, daí a sua perpetuação por tanto tempo e entre tantas civilizações distintas. Ademais, a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e a fantasia, entre o verdadeiro e o verossímil, assim, usa metáforas e representações como disparadores de seu repertório imaginário, encontrando nelas elementos para lidar com os enigmas do mundo e do desejo. Como afirmam os autores Diana Corso e Mario Corso, ao descreverem como as crianças se apropriam da literatura: Nas crianças é mais fácil observar o impacto da ficção, elas se apegam a alguma história e usam-na para elaborar seus dramas mais íntimos, para dar colorido e imagens ao que estão vivendo. Elas o usam como era usado o mito em sociedade antigas, entram na trama oferecida e tentam 41

A atelierista em questão é Silvia Pandini, uma das autoras do presente capítulo.

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208 | encaixar suas questões nos esquemas interpretativos previamente disponibilizados. Ou então se apropriam de fragmentos, como tijolos de significação que combinam à sua moda para levantar a obra de determinado assunto que lhes questiona. (CORSO, 2006, p. 28-29).

Além desses aspectos, a escolha pelos contos de fada também se deveu ao fato de que muitos deles fazem parte do repertório conhecido por grande número de pessoas e seus enredos são mais frequentemente contados por adultos, sejam pais, mães sejam professoras. Essa popularização dos contos de fadas contribui para que, cedo, as crianças se iniciem na elaboração de suas protonarrativas e nas primeiras repetições de trechos de falas dos personagens, uma maneira de se aproximarem do texto, seja este fruto da oralização de um texto escrito ou de narração e, portanto, de criação espontânea do adulto mediador. Essa seleção também foi baseada na diversidade estética das narrativas que os livros apresentavam entre si. Chapeuzinho Vermelho é um livro-imagem, e essa característica nos instigou a apresentar o enredo do conto aos grupos de bebês e crianças bem pequenas em um ambiente que Chapeuzinho Vermelho representasse a floresta. Esse Autora: Rosinha Campos cenário foi composto de Editora Callis, Ano: 2015 cones de papel de material reciclado e galhos; os personagens foram produzidos com novelos de lã vermelha, bege e marrom para representar Chapeuzinho, Vovó e Lobo, respectivamente. Iniciamos a apresentação entrando Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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calmamente no espaço preparado para a história, um espaço de uso coletivo da escola, realizando a contação da história enquanto manipulávamos os objetos escolhidos. Por fim, apresentamos o livro-imagem como forma de síntese daquilo que vivenciamos como narrativa estética. No encontro seguinte trouxemos o livro Este é o lobo, cujas ilustrações potentes, delicadas e elegantes giram em torno do lobo e seu encontro com as diferentes personagens dos tantos contos nos quais ele aparece. O formato comprido do livro apresenta ilustrações que evidenciam os personagens por características que convocam o olhar a nomeá-los, assim, as crianças tentavam balbuciar o nome Lobo. Para favorecer a percepção das características Este é o lobo mencionadas na história, escolhemos Autor: Alexandre Rampazzo materialidades para metaforizar o Editora DCL, Ano: 2017 personagem-lobo: galhinhos para serem as garras, pente-de-macaco para ser a língua áspera e tecido peludo para ser seu pelo. Conforme se fazia a leitura e apresentação do personagem, permitia-se aos bebês e crianças tocarem nas materialidades e acordarem seus sentidos. Sentir, tocar, estranhar, negar-se e apalpar são ações esperadas nesses momentos. Respeitamos o ímpeto de cada criança em sua iniciativa por interagir e investigar as materialidades, de repetir o gesto ou contemplá-las ao longe e observar os amigos em suas interações com elas.

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Viver coletivamente o medo, esperar por ele, ansiar pelo personagem que, sabe-se, irá aparecer a qualquer momento, é um dos infinitos deleites propiciados pela leitura na escola. E a escolha do livro seguinte foi guiada pelo forte interesse das crianças por esse personagem tão assustador quanto misterioso e forte: o lobo. Por isso, escolhemos trazer outras Era uma vez histórias em que ele e outros Autor: Benjamim Lacombe Editora Positivo, Ano: 2015 tantos personagens dos contos aparecessem. O terceiro livro eleito também foi um livro-imagem, um poderoso e deslumbrante objeto arquitetural, cujos personagens, de contos de fadas ou da cultura literária, saltam das páginas e tornam-se tridimensionais, provocando espanto e encantamento nos leitores. A cada página, desvendamos as minúcias e os mistérios dos personagens. Envolvendo os pequenos ouvintes em uma atmosfera inebriante, desfilamos diante de seus olhos incrédulos a Chapeuzinho Vermelho, a Alice no país das maravilhas, a Madame Butterfly, o Barba Azul, o Pinóquio, a Bela Adormecida e, claro, o Lobo. Reservar tempo para contemplar a interpretação magistral dos Contos de Fadas presentes em cada uma das ilustrações, brincar com os personagens, fazer adivinhas para intuir qual seria o próximo, preparar-se para o assombro de encontrá-lo, aconchegar-se no colo da professora ou segurar mais firme a mão

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do colega para enfrentar o medo foram alguns dos gestos colhidos dentre os nossos espectadores. Notamos que também os adultos deixavam-se atravessar pela experiência literária e expressavam seu maravilhamento diante desse artefato cultural tão potente e inventivo que é o Contos de Princesas livro. Autora: Su Blackwell Editora WMF Martins Fontes, Como decorrência Ano: 2012. dos personagens apresentados nesse livro, decidimos contar as diferentes histórias dos personagens nele apresentados. Assim, indicamos caminhos possíveis para a continuidade do trabalho com a leitura do livro Contos de Princesas, cujas belíssimas e intrigantes ilustrações, feitas com intrincadas arquiteturas em papel e depois digitalizadas, apresentam uma seleção de bons textos aliados a imagens potentes. O primeiro que narramos foi A Bela Adormecida e conjugamos a essa ação a exibição das páginas e ilustrações. Nessa experiência literária, demarcamos que nosso ímpeto também permitiu criar laços entre as crianças e este artefato cultural que é o livro, e notamos que esses momentos de intimidade, aconchego e partilha que se cria para contar uma história impulsionam a intimidade da criança consigo mesma e com os livros.

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Reflexões finais A proposta de letramento com bebês apresentada constituiu um percurso de trabalho na Creche envolvendo coletivos de professoras, coordenação pedagógica, atelierista – especialista em linguagens – e coletivos de bebês e crianças bem pequenas, como sujeitos imersos na cultura letrada, pela oportunidade de vivências literárias cotidianas e episódicas, em situações didático-pedagógicas – Projeto de Literatura e Ateliê de Narrativas – criadas a partir do estudo e aprofundamento da literatura infantil. A mediação de leitura que se efetua nesses encontros é fonte que sustenta esse trabalho, pois compreendemos que a formação de leitores se baseia na possiblidade de poder fomentar experiências de leitura e relacionar-se com as escolhas guiadas por um leitor mais especializado. A literatura também é um lugar de subjetivação, de atribuir sentido à vida e aos afetos e estar diante do texto literário, cuja natureza é polissêmica, é um convite potente à intimidade e à alteridade. Denota-se, portanto, que tais situações partiram da compreensão da “Literatura com Bebês” como ressignificação de aspectos da cultura que incidem no universo infantil em contextos diversos e o seu aprofundamento pela qualificação da ação educativa por conhecimentos compartilhados tanto como oportunidade para as crianças como para as professoras, tal como se demonstrou pelo aprimoramento da proposta com o Ateliê de Narrativas. Referências BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução CNE/CEB n. 5, 17 de dezembro de 2009. CONTRERAS, José Domingo; PÉREZ, Nuria de L. F. (comps.). Investigar Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 213 la experiencia educativa. Madrid: Ediciones Morata, 2010. CORSO, Diana. L.; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise dos contos de fadas. Porto Alegre: Artmed, 2006. LÓPEZ, Maria Emilia. Bebês como leitores e autores. Coleção leitura e escrita na Educação Infantil. Caderno 4, vol. 5. Brasília: MEC/SEB, 2016. OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Campos de experiências: efetivando direitos e aprendizagens na Educação Infantil /Ministério da Educação. São Paulo: Fundação Santillana, 2018. PARREIRAS, Ninfa. Do ventre ao colo, do som à literatura: livros para bebês e crianças. Belo Horizonte: RHJ, 2012. VIEIRA, Daniele Marques. Imagens da experiência educativa de professores da Educação Infantil no espaço-ambiente do Proinfância. 2016. 228 f. Tese (Doutorado em Educação) - Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. Outras produções a partir do trabalho com Bebês: ARAÚJO, Ana Luisa Manfredini; VIEIRA, Daniele Marques. A prática docente na creche: relações entre cuidado ético, educação e experiência. In: DORNELLES, Leni Vieira; LIMA, Patrícia de Moraes (Orgs.). Por uma luta em defesa dos direitos das crianças: corpo e cultura [livro eletrônico]. Vol. I. Goiânia: Editora Vieira, 2019, p. 91103. Disponível em: http://www.pucgoias.edu.br/ArquivisWordpress/LUSO/EBOOKvolume-1.pdf COUTINHO, Angela Scalabrin; VIEIRA, Daniele Marques. As narrativas visuais na Educação Infantil: diálogos entre pesquisa, formação docente e experiência educativa. In: DORNELLES, Leni Vieira; LIMA, Patrícia de Moraes (Orgs.). Por uma luta em defesa dos direitos das crianças: corpo e cultura [livro eletrônico]. Vol. I. Goiânia: Editora Vieira, 2019, p. 495-506. Disponível em: http://www.pucgoias.edu.br/ArquivisWordpress/LUSO/EBOOKvolume-1.pdf VIEIRA, Daniele Marques; MORO, Catarina. Como podemos apresentar a literatura no cotidiano dos grupos de bebês. In: MORO, Catarina; SOUZA, Gizele de (orgs.). Educação infantil: construção de sentidos e formação. 1. ed. Curitiba: Editora UFPR, 2019, v. I, p. 173Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


214 | 194. Disponível em: https://issuu.com/nepie.ufpr/docs/ebook VIEIRA, Daniele Marques. Imagens benjaminianas para pensar relações entre infância, educação de crianças pequenas e natureza. Revista Contrapontos. UNIVALI (Online). v. 18, p.374 - 389, 2018. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rc/article/view/13221

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A Educação Matemática na Educação Infantil Emerson Rolkouski Introdução Durante muito tempo, o trabalho com a matemática na Educação Infantil se restringiu a colagens de bolinhas de papel ou sementes sobre algarismos representados com traços infantilizados, a intermináveis contornos de formas, à récita descontextualizada de números de um a dez, dentre outras práticas similares. É certo que essas atividades podem contribuir para ampliar a destreza manual e a capacidade de memorização das crianças, mas pouco ou nada contribuem para o desenvolvimento do senso numérico e espacial, para o desenvolvimento da capacidade de argumentação, de localização, dentre outras habilidades cognitivas relacionadas particularmente à matemática. Para compreender melhor esse processo, no entanto, antes de discutir alternativas a essas práticas, é importante refletir sobre como a criança da Educação Infantil se relaciona com alguns conhecimentos matemáticos. De acordo com Lorenzato (2008, p. 5-6): • a criança gosta de saber os “porquês” das coisas e procura respostas fazendo afirmações, algumas vezes sem justificativa, outras justificando-as, apoiando-se em seus próprios desejos, sensações, temores, aparências, e não em fatos; •

ao produzir uma representação gráfica, a criança dá preferência ao que conhece e não ao que vê. Por

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exemplo, ela pode estar vendo um avião, mas desenha o corpo dele como se visto de lado e as duas asas como se vistas de cima; •

no domínio espacial, de início, o centro continua sendo o próprio corpo, mas em seguida a criança consegue avançar, tomando como referência um objeto. Assim, atrás, em frente, em cima, depois, antes já podem ser utilizados comparando a posição de um objeto com a de outro, mas ainda sem sair do concreto;

muitas crianças, apesar de trabalharem corretamente com dois atributos separadamente, apresentam dificuldade em considerar duas características simultaneamente (ser verde e grande, ser fino e triangular). A dificuldade também se apresenta quando lidam com conceitos relativos (por exemplo, diante dos desenhos de um elefante, um cachorro e uma formiga, muitas crianças podem não perceber que o cachorro é maior e menor ao mesmo tempo, já que é menor que o elefante e maior que a formiga);

a percepção visual é mais forte que a correspondência um a um. Por exemplo, quando a criança compara sete bolas grandes com sete bolas pequenas, pode concluir que quem possui as bolas grandes tem mais bolas;

os conceitos que envolvem tempo se apresentam como os mais desafiadores para a criança. Por exemplo, ela confunde o ontem com o amanhã,

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dizendo: - Nós brincamos amanhã. Em uma corrida, diz que quem chegou primeiro, andou mais, sem relacionar tempo e espaço, por não compreender a questão da velocidade; •

por meio da manipulação de materiais concretos, a criança já consegue adicionar e iniciar a contagem com significado.

Tais elaborações não devem ser vistas como um erro, mas sim como parte natural do processo de aprendizagem pelo qual todas e todos nós passamos e que se constituem como essenciais para a construção da identidade da criança. Nesse sentido, as: (...) propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2009a, p. 1).

Levando tais afirmações em consideração, esse capítulo tem como objetivo contribuir para a prática pedagógica nesse campo do conhecimento, apontando possibilidades que tornem o tempoespaço escolar mais prazeroso para as crianças e mais efetivo no desenvolvimento dos primeiros conhecimentos matemáticos. Para tanto, na primeira seção serão apresentados os conhecimentos destacados em referenciais curriculares para a Educação Infantil; na sequência, será apresentada a resolução de problemas como a essência da Educação Matemática em todas as etapas educacionais. Por fim, serão apresentadas duas brincadeiras que podem contribuir para o desenvolvimento dos primeiros conhecimentos matemáticos, bem como da capacidade de argumentação e de resolução de problemas. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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A Educação Matemática na Educação Infantil Considerando as proposições advindas do Ministério da Educação (MEC), desde o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998), até a Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil (BRASIL, 2017), o trabalho com a matemática a ser desenvolvido nessa etapa educacional, se organiza em três campos: Espacial: refere-se às formas, à localização e ao deslocamento e, na escola, apoiará a criança no prosseguimento do estudo da geometria; Numérico: refere-se às quantidades e, na escola, apoiará a criança no prosseguimento do estudo da aritmética; Medidas: refere-se à relação entre os campos espacial e numérico.

A esses campos estão relacionadas as seguintes noções elementares: Campo Espacial: dentro/fora, frente/atrás/ao lado, direita/esquerda, para cima/para baixo; Campo Numérico: mais/menos, muito/pouco, igual/diferente, primeiro/último/entre, ganhar/perder; Campo das Medidas: antes/agora/depois, começo/meio/fim, devagar/depressa, cedo/tarde, dia/noite, ontem/hoje/amanhã, vazio/cheio, grande/pequeno, maior/menor, grosso/fino, curto/comprido, alto/baixo, largo/estreito, perto/longe, leve/pesado, aumentar/diminuir.

O trabalho com as crianças da Educação Infantil deve então (...)priorizar, em contextos e situações significativos, a exploração e uso de conhecimentos matemáticos na apreciação das características básicas do conceito de número, medida e forma, assim como a habilidade de se orientar no tempo e no espaço. (BRASIL, 2009b, p. 16). Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Trata-se de recriar contextos e situações que permitam o desenvolvimento de conhecimentos relativos à quantidade, às medidas, formas e orientações espaço temporais. Como veremos a seguir, esses conhecimentos podem e devem ser desenvolvidos em um ambiente lúdico que instigue a criança a levantar hipóteses, desenvolvendo sua capacidade de argumentação, ampliando suas ferramentas para a leitura do mundo e à resolução de problemas. Resolução de Problemas na Educação Infantil: é possível? Na área de Educação Matemática, de um lado, há um certo consenso sobre ser a Resolução de Problemas a essência do trabalho com a matemática em todos os níveis. Por outro lado, há uma quantidade significativa de definições sobre o que vem a ser um problema. A partir de Pozo e Echeverría (1998), entendemos um problema como uma situação que se deseje/necessite solucionar/compreender mas para a qual não dispomos de um mecanismo imediato para fazê-lo. Nesse contexto, o professor assume o papel central para transformar as atividades rotineiras em legítimos problemas. Embora tais conhecimentos possam parecer distantes da Educação Infantil, o exemplo a seguir pode ser inspirador. Tratase de uma atividade embasada no artigo de Grando e Moreira (2012), sugestivamente intitulado: Como crianças tão pequenas, cuja maioria não sabe ler nem escrever, podem resolver problemas de matemática?. Inicialmente, a seguinte cena retirada de um gibi, foi apresentada a crianças de quatro e cinco anos:

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Figura 1: Revista em Quadrinhos. Fonte: SOUSA, M. Chico Bento, n. 333, out. São Paulo: Globo, 1999.

Depois de esclarecido o contexto em que tal situação se deu, perguntou-se às crianças o motivo pelo qual Zé Lelé não estava pescando nenhum peixe. Esse questionamento possibilitou que elas elaborassem diversas hipóteses. Muitas delas, se baseavam em suas próprias experiências, ocorrência comum nessa faixa etária, como no relato de Carlos: - “Quando minha tia estava Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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pescando, ela colocou a minhoca e o peixe comeu e não ficou preso!”, sugerindo que isso pudesse estar ocorrendo com Zé Lelé. Depois de várias conjecturas e hipóteses, o final da história foi mostrado:

Figura 2: Revista em Quadrinhos. Fonte: SOUSA, M. Chico Bento, n. 333, out. São Paulo: Globo, 1999.

As crianças passaram então a discutir a situação, momento em que diferentes conhecimentos matemáticos foram mobilizados. Sophia, por exemplo, explicou o motivo pelo qual Zé Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Lelé não pegava nenhum peixe: - “Ele (Chico Bento) ’tá’ embaixo e ele (Zé Lelé) ‘tá’ em cima. Por isso que ele não consegue pegar”. Já a Mariana explicou que a vara dele (Zé Lelé) estava muito curta e ele não conseguia pescar. A professora então questionou: - “É a vara que está curta ou é o Zé Lelé que está lá em cima?” E a resposta de Victor foi: - “É ele que está lá em cima!”, enquanto a Mariana falava que eram os dois, começando então uma discussão entre eles. Observa-se, nesses relatos, que diversos conhecimentos matemáticos foram explorados a partir de uma situação problema, que, nesse caso, consistia em descobrir o motivo pelo qual Zé Lelé não conseguia pegar nenhum peixe. Na sequência, ao propor às crianças a dramatização da situação e perguntar como poderiam ajudar Zé Lelé a pegar peixes como o Chico Bento, outros saberes foram mobilizados, além de possibilitar às crianças argumentarem e exporem suas ideias. Essa história em quadrinhos não foi produzida para ser utilizada em sala de aula e muito menos para trabalhar com matemática. Sua escolha pela professora deveu-se a um olhar atento e à sua intencionalidade pedagógica de trabalhar com resolução de problemas com os alunos. Mas há uma série de desenhos animados que foram produzidos com finalidade didática. Destacamos a série da TV Escola42 “As Fabulosas Aventuras do Professor Gonçalo”. Nessa série, três crianças e um ‘fado” entram em um baú cheio de coleções, para tentar salvar o professor Gonçalo, pai de Vica, uma das crianças. Durante a aventura, as crianças são expostas a várias situações que devem ser solucionadas, muitas delas envolvendo conhecimentos matemáticos. Além da série que está disponível em http://hotsite.tvescola.org.br/fabulosascolecoes/#episodios, pode-se encontrar uma coletânea de sequências didáticas relacionadas à série em http://hotsite.tvescola.org.br/fabulosascolecoes/professor.html. 42

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Em uma dessas situações as crianças se deparam com um mapa feito por um esqueleto e precisam percorrê-lo:

Figura 3: Imagem da série As Fabulosas Coleções do Professor Gonçalo. Fonte: TV Escola

Uma das crianças menores usa seus próprios passos para seguir as instruções do mapa. Ao finalizar, descobre estar no lugar errado. A professora pode parar o vídeo, e questionar as crianças: - “O que teria acontecido? - O mapa estaria errado?” O problema é solucionado, na sequência, os passos do mapa se referem aos passos do esqueleto, maiores que os da criança. – “E agora? – Como resolver o problema?” Dramatizar a situação e fazer os registros pode ampliar ainda mais as possibilidades de exploração de conhecimentos matemáticos e de desenvolvimento de conjecturas. Nessa seção, destacamos a Resolução de Problemas e discutimos a viabilidade de incorporá-la na Educação Infantil. Compreendemos que a Resolução de Problemas deve ser o pano de fundo do trabalho com a matemática em qualquer nível de ensino. Atividades orientadas nesse sentido têm o potencial de

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desenvolver o poder de argumentação das crianças além dos conhecimentos matemáticos envolvidos. Na próxima seção, destacaremos o papel das brincadeiras na Educação Matemática da Educação Infantil. Brincando, aprendendo e se desenvolvendo Para além da possibilidade de trabalho com a matemática, as brincadeiras constituem-se como um recurso ímpar de desenvolvimento de consciência corporal, consciência do outro, percepção de si como um ser social, percepção do espaço que os cerca e de como a criança pode explorá-lo (SMOLE; DINIZ; CÂNDIDO, 2000). Esses são os motivos pelos quais brincar é tão importante nessa fase e, por isso, decidimos apresentar algumas sugestões e discussões nesse sentido. Para ampliar as potencialidades das brincadeiras no desenvolvimento de diversas aprendizagens, em particular de aprendizagens matemáticas, é importante que se discuta quais conceitos estão envolvidos em cada uma delas e, sobretudo, que problemas podem ser disparados antes, durante e depois de sua realização, e que se reflita sobre isso. Antes da brincadeira, pode se conversar sobre as regras. Se há um tabuleiro ou um diagrama a ser desenhado, como é o caso da Amarelinha, a professora pode perguntar sobre como ele é feito e quais são suas características. Durante a brincadeira, a professora, sempre atenta, pode questionar as crianças sobre as melhores estratégias, usando e abusando da expressão “E se...?” Com isso, estimulam-se a imaginação e a resolução de situações hipotéticas. Se a brincadeira envolver a contagem de pontos, pode ser oportuna a anotação em uma tabela, o que pode ser feito de diferentes maneiras: risquinhos, bolinhas, quadradinhos e algarismos. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Depois da brincadeira, deve-se registrar o que foi vivenciado. Trata-se de uma oportunidade para que as crianças desenhem, reinventem e reelaborem regras. A criação de um texto coletivo, com a professora servindo de escriba, é um momento importante para o registro do que foi vivenciado. No campo específico da matemática, uma possibilidade é a criação de diferentes tipos de gráficos para marcar quem gostou e quem não gostou da brincadeira e assim por diante. A seguir, apresentamos duas brincadeiras que envolvem os campos espacial, numérico e de medidas. O jogo da Amarelinha Dentre as brincadeiras clássicas de crianças, talvez a Amarelinha seja a mais popular, tanto no Brasil, como em outras partes do mundo. Tão popular quanto antiga, já que gravuras com crianças brincando em diagramas numerados foram encontradas na Roma antiga, a Amarelinha tradicional consiste em um diagrama com 10 retângulos numerados de 1 a 10. Dessa maneira, apresenta um evidente potencial para o trabalho com o campo numérico, mas, como veremos, pode ser utilizada, também, para a exploração dos campos espacial e de medidas. As regras da amarelinha são simples, um jogador, situado antes do número 1, joga uma pedrinha no número 1. Salta então sobre esse número caindo com os dois pés nos números 2 e 3, alternando entre um e dois pés, continua o percurso até o número 10, dá meia volta e faz o percurso ao contrário, resgatando a pedrinha. Repete a jogada, mas agora jogando a pedrinha no número 2, até finalizar a sequência numérica. O jogador não pode pisar no retângulo em que está a pedrinha e não pode pisar com os dois pés em quaisquer dos retângulos. Os diagramas podem ser de diferentes tipos: Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Diagrama Clássico

Diagrama Alternativo

Figura 4: Diagramas de Amarelinha. Fonte: Desenho do Autor.

Antes da brincadeira, a professora poderá perguntar quais são as características dos diagramas, que números as crianças já conhecem, contar de um a dez com elas indicando as casas, perguntar quantos retângulos contam, conversar sobre as formas geométricas que ali aparecem e em que outros lugares essas mesmas formas são percebidas, dentre outras possíveis explorações. Depois dessa conversa, pode-se combinar as regras. Durante a brincadeira, deve-se ficar atento, pois há uma grande variedade de situações problemas que podem ser formuladas. Por exemplo:

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Ao decidir quem deve começar, muitas possibilidades se abrem. Do mais velho para o mais novo ou vice-versa (o calendário é um item obrigatório no ambiente da sala de aula), do mais alto para o mais baixo ou vice-versa, usando a ordem alfabética, por sorteio etc.

O que é mais fácil acertar, o número 1 ou número 9? Por qual motivo? A resposta a essas perguntas auxilia as crianças a ampliarem as noções de perto ou longe, que, nesse caso, correspondem a jogar a pedrinha com mais ou menos força e a relação mais fácil ou mais difícil.

Você jogou no número 3, e, depois, em quais casas você deve jogar? Com perguntas desse tipo, as crianças constroem a sequência numérica de maneira natural e dentro de um contexto que tem sentido para elas.

Seu colega irá jogar a pedrinha no número 4 e você no número 8, quem está ganhando? Nesse caso, implicitamente, discute-se qual número está mais perto de 10 ou qual deles é o maior.

Depois do jogo, sistematizam-se os aprendizados, possibilitando extrapolação daquele momento. O registro pode ser feito por meio de desenhos e pela escrita, em que a professora atue como escriba. Novas perguntas podem ser elaboradas: - E se quiséssemos continuar a sequência numérica da amarelinha? Olhar o calendário pode ajudar a responder a esse questionamento. Pode-se também construir outras amarelinhas, com outras sequências numéricas. Finalmente, pode-se contabilizar quem gostou e quem não gostou da brincadeira, ou quem a achou fácil ou difícil, construindo um pequeno gráfico de barras ou mesmo de setores. No material de formação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (BRASIL, 2014a), encontramos uma possibilidade nesse sentido. As crianças dão as mãos, aqueles que gostaram da brincadeira ficam de um lado e do outro ficam os que não gostaram. Todos fazem uma roda e no centro se faz um círculo que Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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pode ser colorido na sequência.

Figura 5: Construção de Gráficos de Setores com Crianças. Fonte: Brasil (2014a, p. 24).

Gráficos de coluna podem ser feitos facilmente com as crianças, basta entregar pequenos quadrados de papel para cada uma delas e pedir que colem sobre um eixo devidamente identificado ou distribuir caixinhas para que componham gráficos como abaixo.

Figura 6: Gráfico de Colunas. Fonte: Brasil (2014a, p. 22).

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O gráfico do exemplo representa a quantidade de aniversariantes por mês, no entanto, pode ser adaptado para uma grande quantidade de pesquisas a serem feitas pelas crianças. Um gráfico como esse, feito com material manipulável, é especialmente útil para o trabalho com crianças cegas e, assim como qualquer gráfico de colunas pode gerar interessantes problemas. Equilíbrio Geométrico Esse jogo foi descrito no caderno de jogos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa de Matemática do ano de 2014 (BRASIL, 2014b). Para jogá-lo, é necessário um tabuleiro com figuras geométricas básicas (triângulo, círculo, quadrado e retângulo) pintados com diferentes cores (verde, vermelho, azul e amarelo). O tabuleiro e as figuras devem ser suficientemente grandes para que caiba uma das mãos ou um pé das crianças e não muito espaçados, pois as crianças deverão colocar seus membros sobre as figuras simultaneamente, por exemplo, um pé em um triângulo verde e uma mão em um retângulo azul. Pode-se confeccionar três dados, um com o nome das figuras, um outro com as cores e um terceiro com os membros: mão esquerda, mão direita, pé esquerdo e pé direito. Ou pode se eleger uma criança para dar o comando da figura, outra da cor e a outra do membro. Duas crianças devem então seguir o comando das outras crianças ou seguir o resultado dos dados, posicionando o membro indicado na figura e cor informadas. A criança que se desequilibrar e cair, perde o jogo. Trata-se de uma divertida brincadeira que permite que a criança perceba as características e conheça a nomenclatura de figuras geométricas elementares, bem como desenvolva sua coordenação e lateralidade. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Figura 7: Tabuleiro do Jogo Equilíbrio Geométrico. Fonte: Brasil (2014b, p. 22).

Antes do jogo, a professora pode perguntar às crianças sobre as características e nomenclatura de cada uma das figuras e cores. Um passeio na escola, pode ajudar a visualizar essas mesmas formas em outros lugares. Conversar sobre direita e esquerda e formas de assimilarmos esses conhecimentos, lembrando que não é correto fazermos associações a características pessoais, como “direita é a mão que escreve” ou “a mão da pulseira”. Contar quantos triângulos, quadrados, retângulos e círculos há no tabuleiro, e assim por diante. Durante o jogo, deve-se verificar atentamente se as crianças estão seguindo as regras de modo correto. Para isso, pode-se fazer outras perguntas: • Qual figura está mais perto de voce? Qual figura está mais

longe? Esses questionamentos auxiliam a criança a desenvolver as noçõ es de distanciamento. • Quantas figuras voce pode cobrir de uma só vez? Perguntas como essa trabalham com uma importante noçã o matemá tica: a correspondencia um a um – uma Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 231 figura para cada membro.

Depois do jogo, o registro com desenhos e texto coletivo sempre é bem-vindo. Pode-se também convidar as crianças a elaborarem desenhos com as formas que conheceram e ainda finalizar com a contação de uma história relacionada à Geometria. Dentre as possibilidades, o livro As Três Partes, com texto e ilustração de Edson Luiz, pode ser uma boa opção. O livro conta a história de uma casa que se divide em dois triângulos e um trapézio e se transforma em várias outras formas. Comentários Finais Nesse texto, destacamos os conhecimentos matemáticos a serem trabalhados na Educação Infantil defendendo a Resolução de Problemas como o seu eixo central em três campos: numérico, espacial e medidas. Apresentamos então duas brincadeiras e suas potencialidades para o desenvolvimento de diferentes conhecimentos, sempre tendo como intenção o desenvolvimento da capacidade de argumentação das crianças. Nesta última seção, apresentaremos as considerações finais. Se, por um lado, o Brasil não possui uma quantidade expressiva de publicações que versam sobre Educação Matemática na Educação Infantil, por outro lado, esse número vem crescendo ano a ano e já se pode afirmar que são suficientes em quantidade e qualidade para apontar caminhos que podem tornar a sala de aula das crianças ambientes prazerosos de aprendizagem e desenvolvimento também em matemática. Lamentavelmente, ainda são comuns salas de aula da Educação Infantil, que apresentam em suas paredes, como únicos portadores numéricos, quadros de 1 a 10 (número um, uma bolinha, número dois, duas bolinhas etc), retirados da internet, ao lado do abecedário que, invariavelmente aponta A de avião, B de Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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bola e assim por diante. Esperamos que os comentários feitos nesse texto, despertem ideias de que a sala de referência deve ser transformada em um ambiente de aprendizagem e que as informações ali expostas devem ser representativas das vivências das crianças com jogos, brincadeiras, músicas, literatura, dança entre outras, além de deverem ser mobilizadas em outras aprendizagens. Calendários e relógios, portadores numéricos presentes em nossa vida devem estar ao lado de receitas culinárias; desenhos feitos pelas crianças das brincadeiras vivenciadas e gráficos simples devem ser mobilizados rotineiramente, auxiliando a criança a perceber que há números que possuem diferentes significados em nossa vida. Além desse cuidado com o ambiente da sala de aula, é necessário desenvolver o hábito de fazer coleções. Coleções de sucatas, de tampinhas, de embalagens. Contando-as e recontandoas, as crianças vão, de forma significativa, aprendendo a sequência numérica, não sendo sequer necessária, a utilização e a exposição de varais numéricos de cuja construção as crianças não participaram. Para além de aspectos numéricos, o estudo da forma das tampinhas, das embalagens, oferece a oportunidade da exploração dos aspectos geométricos que nos rodeiam. Enfim, para além de atividades desconexas que visem tão somente a passar o tempo e divertir e a responder a demandas familiares de contar de 1 a 10 e escrever o nome, o trabalho na Educação Infantil deve ser intencionalmente planejado de forma a desenvolver noções elementares, inclusive as matemáticas e a capacidade de argumentação, convidando as crianças a inserir-se na sociedade letrada em que vivemos, na qual aspectos matemáticos, sejam numéricos, espaciais, sejam de medidas, assumem importante papel.

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| 233 Referências BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional da Educação. Camara de Educação Básica. Parecer Nº 20, de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Camara da Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 05/2009, de 17 de dezembro de 2009. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: caderno de Educação Estatística. Brasília, 2014a. BRASIL. Ministério da Educação. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: caderno de jogos. Brasília, 2014b. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017. ECHEVERRÍA, Maria del Puy Pérez; POZO, Juan Ignacio. Aprender a resolver problemas e resolver problemas para aprender. In: POZO, Juan Ignacio (org.). A solução de problemas: aprender a resolver, resolver para aprender. Porto Alegre: ArtMed, 1998, p. 139-165. GRANDO, Regina Célia; MOREIRA, Kátia Gabriela. Como crianças tão pequenas, cuja maioria não sabe ler nem escrever, podem resolver problemas de matemática? In: CARVALHO, Mercedes; BAIRRAL, Marcelo de Almeida (orgs.) Matemática e Educação Infantil: investigações e possibilidades de práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 121-143. LORENZATO, Sérgio. Educação Infantil e percepção matemática. 2ª. ed. Campinas: Autores Associados, 2008. SMOLE, Kátia Stocco; DINIZ, Maria Ignez; CÂNDIDO, Patrícia. Brincadeiras Infantis nas Aulas de Matemática. Porto Alegre: Artmed, 2000. SOUSA, Mauricio. Chico Bento, n. 333, out. São Paulo: Globo, 1999. TV Escola. As Fabulosas Coleções do Professor Gonçalo. Recuperado

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234 | de http://hotsite.tvescola.org.br/fabulosascolecoes/#episodios, 2019.

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A arte e a criança: uma discussão teórico-prática para a Educação Infantil com ênfase nas artes visuais Andréa Bertoletti Catarina Moro Dentre as artes, a arte visual, tendo a imagem como matéria-prima, torna possível a visualização de quem somos, onde estamos e como sentimos. Ana Mae Barbosa

O trabalho educativo com a arte no século XXI configura-se mediante mudanças significativas no percurso histórico do ensino da arte. Evidencia-se um maior compromisso com a cultura e com a história, objetivando, por meio do contato com o legado histórico-cultural, a possibilidade de conhecer, fruir, interagir e compreender diversas manifestações artísticas e culturais. A apreensão da cultura pelas suas manifestações artísticas contribui efetivamente para o desenvolvimento cultural individual, de cada ser humano e, da coletividade, em seus grupos sociais específicos. Desde a Educação Infantil é significativo oportunizar o contato com a arte nas suas múltiplas linguagens, bem como com aspectos culturais da sociedade em que as crianças estão inseridas. O perceber, o vivenciar, o construir, suscitados pelo universo cultural e artístico, propicia a construção de conhecimentos e o desenvolvimento da sensibilidade, ampliando nossa percepção de mundo. Tal perspectiva confronta-se com o que ainda é muito presente nas instituições educacionais para a pequena infância. Não é incomum observarmos atividades, rotinas, tempos e Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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espaços nos quais prepondera uma postura e visão adultocêntricas e escolarizadas da infância, a partir das quais não parece necessário predispor tempo e autonomia às crianças, seja para aprofundar a exploração de diferentes materialidades gráfico-plásticas, assim como, para o estabelecimento de interações significativas entre as crianças em diversos momentos do cotidiano educativo e de cuidados. Quase sempre o tempo é curto, permitindo práticas educativas e interações rápidas, entrecortadas, que são interrompidas (pois nem sempre as crianças as concluem) no momento em que o adulto decide que o “trabalhinho” ficou pronto; pois se a criança fosse além, “a atividade poderia ficar feia” ou “seria estragada” ou porque “as crianças começariam a bagunçar”, “já tinham usado as cores certas”, “não daria tempo das outras crianças fazerem a atividade”. Certamente há inúmeros outros “ou”. Contrariamente, pensar o trabalho com a arte, atualmente, implica colocar ênfase na inter-relação entre o processo de criação, a apreciação interpretativa de proposições artísticas e a contextualização histórica, social, antropológica e/ou estética de produções culturais. Na Educação Infantil, se destaca a contextualização estética, ou seja, o contato com a própria produção artística tanto no fazer como no fruir. E a leitura de imagens nas múltiplas relações com o imaginário infantil, entrelaçado com o processo lúdico de perceber, interagir, criar. “Imaginação é o substrato do processo criador e, consequentemente, o traço fundamental do humano” (DUARTE JR., 1998, p. 100). Entendemos que é possível atingir um conhecimento mais amplo e aprofundado da arte, incorporando ações como: ver, ouvir, mover-se, sentir, pensar, descobrir, exprimir, fazer, a partir dos elementos da natureza e da cultura, analisando, refletindo, formando, transformando-os. (FERRAZ; FUSARI, 2001, p. 24). Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Boa parte das práticas educativas em arte, atualmente, mantém suas raízes na Abordagem Triangular43 para o ensino da arte, sistematizada pela professora e pesquisadora Ana Mae Barbosa no final dos anos de 1980. A construção do conhecimento se desenvolve no cruzamento entre experimentação, codificação e informação. Assim, “é construtivista, interacionista, dialogal, multiculturalista e é pós-moderna por tudo isso e por articular arte como expressão e como cultura na sala de aula” (RIZZI, 1998, p. 41). Toda proposta de trabalho pedagógico deverá, desta forma, ser elaborado a partir de três ações: ler imagens (decodificar e apreender seu significado); contextualizar (buscar subsídios, pela pesquisa, para a apreensão das manifestações culturais) e fazer (expressar-se e comunicar-se por meio de linguagens artísticas – visual, sonora, cênica, corporal). Essas ações, contudo, não indicam um procedimento hierárquico, possibilitando várias ações e conteúdos, enfatizando a coerência entre intencionalidade e formas diversificadas de trabalho. “Conceitos como organicidade e flexibilidade no arranjo da proposta pedagógica também são muito importantes” (RIZZI, 2008, p. 338). Para Rizzi (2008, p. 345), "A Abordagem Triangular permite uma interação dinâmica e multidimensional entre as partes e o todo e vice-versa", tanto na interrelação das três ações básicas já mencionadas - fazer, ler e contextualizar - como de "outras quatro ações decorrentes: decodificar, experimentar, refletir e informar." (RIZZI, 2008, p. 345). Desconstruir para construir, selecionar, reelaborar, partir do conhecido e modificá-lo de acordo com o contexto e a A Proposta ou Abordagem Triangular surgiu das reflexões a partir de estudos de abordagens epistemológicas das Escuelas al Aire Libre (1910, México), do Critical Studies (1970, Inglaterra) e da Discipline Based Art Education – DBAE (1982, Estados Unidos). Em paralelo o movimento da Escola Nova, nos anos de 1960, fomentou propostas educacionais na área de arte que incentivavam o espontaneísmo diante do processo criador. 43

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238 | necessidade são processos criadores, desenvolvidos pelo fazer e ver arte, fundamentais para a sobrevivência no mundo cotidiano. (BARBOSA, 2002, p. 18).

O desenvolvimento da percepção ganha uma conotação mais ampla, aguçando os sentidos na apreensão do mundo circundante. O conceito de criatividade também se amplia. O processo criativo é desenvolvido por meio do fazer, do vivenciar, do interagir, do apreciar e interpretar as manifestações culturais e artísticas diante de sua contextualização. Firma-se, portanto, a elaboração e a flexibilidade como essenciais fatores à criatividade. Segundo Ana Mae (2002), por meio da arte propicia-se o desenvolvimento da percepção e da imaginação, apreendendo gradativamente a realidade do meio circundante, desenvolvendo a capacidade crítica, permitindo a análise da realidade percebida e o mais importante, propiciando a conscientização da possibilidade de mudanças da realidade analisada. Cultural visual e leitura de imagens: a criança imersa no universo artístico O ensino da arte na contemporaneidade também enfatiza o compromisso com a interculturalidade. Segundo Ana Mae (2002), a interação entre culturas, na inter-relação entre diferentes códigos culturais de diferentes classes sociais, integrando o erudito e o popular; permitem reafimar a perspectiva freireana de não admitir a segregação cultural na educação. As ações educativas em arte devem abarcar a cultura hegemônica, numa perspectiva crítica, bem como a de outros grupos, ampliando as relações destes com o código estético dominante. Um enfoque intercultural também propõe a abordagem dos códigos estéticos e culturais dos contextos familiares e comunitários dos quais as crianças participam. Para Richter (2003, p. 84), o trabalho com a

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arte nos espaços escolares, (...) deve se caracterizar por uma educação predominantemente estética, em que padrões culturais e estéticos da comunidade, da família, sejam respeitados e inseridos na educação, aceitos como códigos básicos dos quais se deve construir a compreensão e imersão a outros códigos culturais.

Outro aspecto relevante diante das mudanças no trabalho com a arte, também com as crianças pequenas, é a associação desta com a cultura visual. O reconhecimento da imagem é de sua fundamental importância na construção de conhecimentos em arte. O universo imagético é vislumbrado não só na constituição das subjetividades, mas na construção da nossa história, dos nossos mundos sociais. A noção de cultura visual, segundo Hernandez (2000), corresponde a mudanças nas noções de arte, cultura, imagem, história, etc., produzidas nos últimos 20/30 anos, vinculando-se à noção de mediação de representações, valores e identidades. Assim é, em sua essência, interdisciplinar, organizando-se nas relações e significações culturais. A cultura visual caminha para um olhar reflexivo diante de um novo regime de visualidade. O contexto atual é dominado por dispositivos visuais e tecnologias da representação, (...) disponibilizadas cotidianamente, através dos meios de comunicação e das corporações de entretenimento, acabam se tornando as principais referências para que as crianças elaborem seus imaginários e construam suas imagens, tendo em vista que outros repertórios visuais, como os das artes visuais e de outras produções culturais, não participam frequentemente de suas vidas. (CUNHA, 2007, p. 1).

Firma-se, portanto, a necessidade de propiciar experiências sensíveis e significativas em Arte por meio de imagens presentes

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no cotidiano e na cultura local. É primordial, nas práticas educativas em arte, estreitar relações com as manifestações da cultura com a qual as crianças estão em contato fora da escola. “Trata-se de explorar como as imagens adquirem significado e, sobretudo, como este significado ‘se relaciona às experiências de subjetividade e aos padrões culturais’” (HERNANDEZ, 2007, p. 87, grifos no original). (...) a leitura de imagens na escola prepararia os alunos para a compreensão da gramática visual de qualquer imagem, artística ou não, na aula de artes, ou no cotidiano, e que torná-los conscientes da produção humana de alta qualidade é uma forma de prepará-los para compreender e avaliar todo o tipo de imagem, conscientizando-os do que estão aprendendo com estas imagens. (BARBOSA, 1995 apud ROSSI, 2006, p. 10).

Desde os anos de 1980, o contato com o universo artístico e cultural por meio de imagens tornou-se uma prática eminente em todos os níveis educacionais. As crianças, desde muito pequenas, devem “ter a oportunidade de interpretar os símbolos da arte, pois a dimensão estética é constitutiva do potencial humano” (ROSSI, 2006, p. 9). Por meio da imagem e da decantação de suas narrativas, o trabalho com a Arte deve propiciar o desenvolvimento da percepção do mundo, nas suas múltiplas linguagens, ampliando o repertório imagético, contribuindo para a construção de um “olhar” questionador, sensível e curioso. Considerando as crianças pequenas na Educação Infantil, precisamos pensar que ao observar um objeto, uma imagem, uma obra de arte, é comum que elas logo revelem, narrem suas impressões pessoais. A percepção subjetiva e objetiva funde-se diante do processo de leitura de imagens. É de extrema importância o exercício de percepção dos elementos caracterizadores da própria imagem rumo à construção da significação. As crianças devem perceber-se como coautores na Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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busca de sentidos nas múltiplas relações diante do contato com o universo artístico e cultural. (...) é preciso resgatar a dimensão do homem como ser social e cultural, leitor e intérprete, criador e criatura. A obra de arte parece ser um objeto especialmente facilitador desse resgate, não só porque aglutina múltiplas formas do saber, mas principalmente porque uma obra de arte não é apenas objeto de apreciação estética; é fruto de uma experiência de vida desvelada pelo processo de criação do artista e pelo sistema de signo da obra. Partilhamos da sua criação quando no momento da leitura somos interpretantes, criando signos-pensamentos, habitando a obra, recriando-a. (BUORO, 2003, p. 31).

É essencial notificar que o processo de leitura de imagens deve fazer parte dos próprios processos e práticas educativas, tanto no fruir, no conhecer, no refletir, no interagir, quanto no fazer, no experimentar, no descobrir. Comunicar-se e expressarse por meio das linguagens artísticas, bem como conhecer os códigos que as compõem são premissas de qualquer proposta de trabalho em arte. Segundo Rossi (2003), o trabalho com a arte na contemporaneidade amplia o conceito de alfabetização, como capacidade de compreensão e expressão não apenas verbal, mas também visual, sonora, corporal, e inclui a possibilidade de desenvolver essas capacidades por meio da leitura de imagens em todos os níveis do processo educacional. A consciência, que hoje emerge, destaca que a seleção de imagens a serem analisadas deve ser diversificada, incluindo a arte erudita, as manifestações populares, as imagens da mídia. Contudo, a relação de interação das crianças com o mundo imagético, sonoro, sinestésico, não deve basear-se apenas na identificação dos códigos ou dos seus elementos constituintes, mas, essencialmente, na inserção destas no meio, ou seja, na medida em que estejam carregadas de sentido, de significação. Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Alfabetização estética e educação dos sentidos: perspectivas para o trabalho com as artes visuais na Educação Infantil Segundo Duarte Jr. (2003), é preciso colocar o sujeito no centro das considerações educacionais, suas dimensões imaginativas, sensíveis, emotivas como ponto de partida, como origem de qualquer ação educacional. “Nosso corpo (e toda a sensibilidade que ele carrega) consiste, portanto, na fonte primeira das significações que vamos emprestando ao mundo, ao longo da vida.” (DUARTE JR., 2003, p. 130). Quando atentamos para as crianças como sujeitos estamos predispostos a pensar e propor práticas educativas como espaços e tempos nos quais elas estarão de modo interessado e curioso construindo experiências e comprovando conceitos de forma autônoma e protagônica, percorrendo caminhos próprios a fim de construir e encontrar sentidos para o vivido. “Produzir sentido, interpretar a significância, não é uma atividade puramente cognitiva, ou mesmo intelectual ou cerebral, é o corpo, esse laço de nossas sensibilidades, que significa, que interpreta” (HERMAN PARRET, apud DUARTE JR., 2003, p. 130). Desta forma, deve-se ficar atento ao papel do professor nas proposições sobre e com a arte na Educação Infantil, no sentido de alicerçar o trabalho numa educação da sensibilidade. Projetos educacionais em arte, sobretudo com as crianças pequenas devem privilegiar o apreciar, o fazer, o sentir, o experienciar. A educação estética faz parte da educação estésica ou educação do sensível (DUARTE JR., 2003). Por meio do entrelaçamento da educação estésica com a educação estética, propiciar o desenvolvimento dos sentidos, para que estes sejam mais acurados, tornando-nos gradativamente mais sensíveis ao mundo circundante, mais atentos, conscientes e, consequentemente, mais capazes de refletir sobre ele. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Desta forma, o mundo é um campo de investigação para as crianças e a arte faz parte deste universo. A experimentação é fundamental nos processos em arte, tanto no contato com proposições artísticas quanto na construção imagética, sonora, corporal. Potencializar as relações por meio das especificidades artísticas em consonância com o perceber, o experienciar, o construir mediante seus elementos caracterizadores, é essencial. Também na Educação Infantil, o fazer deverá estar articulado com produções artísticas das diversas linguagens. Vale ressaltar que, além do contato com manifestações artísticas e culturais, a criança deve concomitantemente expressar-se e comunicar-se usando as linguagens artísticas. E a produção artística infantil, bem como sua percepção na interação com o universo artístico cultural, em seus diversos aspectos, emerge a partir da imaginação e da fantasia. Segundo Vygotsky (2003), a fantasia parte de experiências acumuladas; desta forma, quanto mais ricas forem as experiências vivenciadas pelas crianças, mais abundante será a fantasia. Quanto mais olhar, experimentar, ouvir, sentir, quanto mais explorar, manipular, quanto mais elementos a criança dispuser em sua experiência, mais rica e complexa será sua atividade imaginativa. E o potencial criativo humano não se limita a reproduzir, conservar, mas combina, reelabora, cria com os elementos experienciais anteriores, alicerçado pela imaginação e pela fantasia. Assim sendo, as crianças não reproduzem o que veem, mas recordam e recriam a partir das experiências vividas, elaborando-as criativamente, construindo novas realidades. A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que a fantasia erige os seus edifícios. Quanto mais rica seja a experiência humana tanto maior será o material de que dispõe essa imaginação. (VYGOTSKY, 2003, Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


244 | p. 17).

Vislumbra-se, desta forma, a importância de estender a experiência da criança, ampliando seu universo imagético e consequentemente o seu potencial criativo. O contato com a arte e com as manifestações culturais amplia a experiência estética e propicia o desenvolvimento da imaginação, da percepção, da criatividade, contribuindo para o desenvolvimento global, social e cultural do ser humano. O impulso criador não reproduz, não se limita a reproduzir, mas combina, reelabora, cria com os elementos, fazendo surgir rearranjos imbuídos de expressividade, imaginação e fantasia. A atividade criadora surge das experiências vividas, quando as crianças as reelaboram criando novas realidades como reflexo de sua atividade imaginativa. Segundo João Francisco Duarte Jr. (1995), a arte para a criança constitui-se num fazer que envolve três fatores fundamentais: a organização de suas experiências, a auto compreensão (comunicação por meio da expressão partindo da organização de seu mundo) e o relacionamento com os outros por meio de seu trabalho. Desta forma, seu pensamento, sentimento, percepção, suas relações com o ambiente configuram-se a partir de seu processo criativo. A criança, por meio do fazer, reordena elementos extraídos da realidade, organiza-os, cria situações imaginárias, ou seja, elabora seu conhecimento sobre o mundo físico e sócio cultural. O fazer artístico passa a ser uma comunicação significativa consigo mesma e com o meio. Por meio do desenho, da pintura, dos jogos dramáticos, a criança seleciona aspectos de sua experiência, articulando-os e integrando-os num todo significativo. Na infância, o percurso, a trajetória do criar, se sobrepõe ao produto final. Deve-se então incluir, nas práticas educativas em arte, a documentação dos processos individuais, organizando a produção, datando e retomando de tempos em tempos para que a Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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criança possa progressivamente perceber-se como sujeito de uma ação, com escolhas, gostos e percepções. Desde muito cedo, na infância, é significativo o contato com obras de arte, por meio de visitas a museus, ateliês, peças teatrais, apresentações de música, etc. Pois a criança começa a estabelecer relações sobre o que faz e a produção do mundo circundante. Contudo, deve-se tomar cuidado para não impor comparações ou mesmo a estética adulta como modelo. O contato com o universo artístico deve visar à ampliação do repertório para que a produção infantil se torne gradativamente mais significativa, autoral e criativa. Quanto mais puder experimentar, ouvir, ver, vivenciar, aprender, de quanto mais elementos da realidade puder dispor em sua experiência, tanto mais rica e produtiva será a atividade de imaginação e produção, expressão e comunicação. A apropriação dos elementos da linguagem artística se faz no contato com manifestações artísticas, no fruir, pensar e produzir sentidos pessoais diante delas. Para que as crianças possam exercer sua capacidade de criar, é imprescindível que haja riqueza e diversidade nas vivências que lhes são oferecidas. Um espírito curioso, questionador, inventivo prepara-a para melhor interpretar a realidade e manifestar-se ativamente na sociedade. Ampliar o repertório cultural por meio do conhecimento de novas representações, novos significados, amplia seu olhar e consequentemente seu lugar no mundo. Considerando as crianças bem pequenas, mesmo bebês, podemos pensar e propor oportunidades nas quais elas possam explorar os materiais, o corpo, o toque, o movimento e a linguagem e estabelecer interações significativas entre elas e com o adulto através de situações focalizadas, por exemplo, na experimentação de diversas texturas e sensações. Uma das primeiras questões a se considerar é que: “A criança [sempre] está Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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mais ligada ao processo que ao produto.” (LEITE, 2010, p. 66). Ao se referir ao desenho das crianças, Leite assinala que ele “é pleno de transitoriedade, movimento, idas e vindas, como a tessitura de uma narrativa, no caso, visual” (LEITE, 2010, p. 66). Ao entendermos os desenhos das crianças como um processo expressivo que apresentam em si uma história (LEITE, 2010), nosso modo de nos relacionar com a criança, ganha outras nuances diante das etapas da criação e do desenho construído. Nesse sentido, nos faz acompanhar o processo de modo respeitoso, estabelecendo com as crianças uma conversa atenta e curiosa sobre o que ela narra ali. Não trazendo interferências sobre o desenho com a escrita adulta para nomear e identificar o que a criança fez, pois consideramos o dinamismo e a provisoriedade de algumas das suas inscrições gráfico-plásticas, concernentes aos diferentes momentos do desenvolvimento e aos interesses presentes, assim como às pluralidades da infância. É interessante criamos um contexto de produção que possibilite às crianças um espaço de exploração, de investigação e de comunicação através do qual ela possa se expressar e se colocar em relação com o mundo; variando o tamanho dos grupos de trabalho que interferirá nos modos de interagir entre si (duplas, grupos pequenos) e os locais no CMEI (explorar diferentes espaços dentro e fora do prédio) a fim de que elas possam se expressar e disfrutar do processo, levando consigo suas emoções, impressões de outras vivências e experiências. A ideia é poder proporcionar às crianças o estabelecimento de uma nova relação com a linguagem artística, de sensibilização estética e exploração artística – diferente da frequente realização dos “trabalhinhos” em sala – na qual elas sejam respeitadas e escutadas e na qual haja espaço e tempo para as interações, o toque, os desejos, as sensações, o movimento e o corpo. Para Richter (2007, p. 13), Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


| 247 A experiência poética com a materialidade plástica é ato que reúne lucidez e embriaguez ao deflagrar um pensamento imagético que exige tanto o devaneio da mão quanto sua precisão. Implica valorizar os ritmos – as velocidades e as lentidões – dos gestos nos momentos de encantamento e admiração. Antes, porém, implica compreender que não basta manipular materiais ou ocupar espaços para provocar no corpo das crianças a devida atenção aos sentidos que emergem do vivido, isto é, provocar em cada uma e no grupo a experiência de decifrar esse vivido. Toda realização transformativa solicita a manipulação. Manipular algo nunca é um simples mexer com as mãos. Manipular é extrair valores do movimento, do encontro do corpo com a materialidade, é dar forma – transformar – agregar à coisa um pensamento. (grifos do original).

Mediante todas as considerações anteriores e com a disposição por propor vivências em arte mais significativas, as professoras podem ter de antemão perguntas que poderão orientar as escutas e observações das crianças durante as vivências em arte levadas a efeito, tanto para sua mediação, durante; como para a documentação, depois. Entre as questões podemos pensar: ✓ Como as crianças reagem diante de uma atividade menos direcionada em relação às que estão acostumadas? ✓ Como as crianças se comportam mediante a oferta de tintas diferentes? Quais sensações experimentam ao tocar a tinta com as mãos? Há algum tipo de resistência? Como elas utilizam as mãos? Ou elas preferem pintar com pincel? Diante de uma diversidade de pincéis há alguns preferidos por elas? Elas misturam as tintas? Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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✓ Quais são as reações e construções delas diante de um suporte coletivo (pedaço grande de papel, papelão)? Como elas se relacionam e trabalham numa proposta coletiva, na qual o intuito seja fazer algo juntas? Qual é a reação e como são as produções de cada uma mediante suportes diferenciados (plástico, tecido, ou outros)? ✓ De que maneira as crianças se relacionam com um suporte tridimensional (caixas, cones, cilindros de papelão)? Quais narrativas surgem durante a pintura do suporte tridimensional? ✓ Quando variamos os tipos e tamanhos de papéis que servem de suporte, conseguimos observar preferências? Há alteração nos desenhos ou nas pinturas em função das diferenças nos e dos suportes? Quando variamos os riscantes (lápis, giz, giz de cera de tamanhos diversos, canetas, canetões, outros) ou materiais para a pintura (tinta líquida, material pastoso, pigmento em pó, materiais com texturas e temperaturas diversas, outros) quais sensações as crianças revelam? ✓ Como elas reagem à proposição de usar os pés para mexer com materiais de modelagem e de pintura? Qual a reação delas ao pisarem descalças em suportes diversos, papel, tecido, plástico bolha, outros? ✓ Ao propormos retomar uma atividade iniciada em dia anterior de que maneira conseguem aprofundar ideias e vivências realizadas anteriormente? ✓ Como temos permitido ou podemos permitir que as crianças criem novas propostas e estabeleçam relações distintas daquelas que como adultos havíamos pensado? Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Na medida em que as professoras se permitem tais questionamentos, além de outros que podem ser elaborados, elas se instigam a ampliar e enriquecer as proposições com base na multiplicidade de possibilidades do que se pode vivenciar na e com a arte. A arte se apresenta como uma das linguagens através das quais as crianças estabelecem relações com o seu contexto, com a cultura, com o outro e consigo mesmas em um processo de expressão e comunicação criadora. Assim, as crianças devem poder vivenciar a arte no contexto cotidiano da Educação Infantil, bem como ter a oportunidade de fruir, criar, explorar materiais, enfim, expressar-se com autonomia e liberdade. Referências BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1996. BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002. BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: Com/Arte, 1998. BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 1996. CUNHA, Susana V. Entre Van Goghs, Monets e desenhos mimeografados: pedagogias em artes na Educação Infantil. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 30a., 2007, Caxambu. Anais (...) Caxambu, 2008. Disponível em: http://30reuniao.anped.org.br/grupo_estudos/GE01-3033-Int.pdf. DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Campinas: Papirus, 1998. DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar,

Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


250 | 2003. FUSARI, Maria F. de R.; FERRAZ, Heloísa C. de T. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 2001. HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000. HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educacional. Porto Alegre: Mediação, 2007. LEITE, Maria Isabel. A criança desenha ou o desenho criança? A ressignificação da expressão plástica de crianças e a discussão crítica do papel da escrita em seus desenhos. In: OSTETTO, Luciana Esmeralda; LEITE, Maria Isabel (org.). Arte, Infância e Formação de Professores: autoria e transgressão. Campinas: Papirus, 2010, v. 1, p. 61-78. MARTINS, Mirian C.; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, Maria Terezinha T. Didática do ensino da arte: a língua do mundo - profetizar fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998. RICHTER, Ivone Mendes. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes visuais. Campinas: Mercado das Letras, 2003. RICHTER, Sandra. S. Experiência poética e linguagem plástica na infância. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 30, 2008, Caxambu. Anais (...), Caxambu, 2007. Disponível em: http://30reuniao.anped.org.br/grupo_estudos/GE01-3538--Int.pdf. RIZZI, Maria Christina de Souza Lima. Reflexões sobre a abordagem triangular do ensino da arte. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Ensino da arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 335-348. ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003.

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. La imaginación y el arte en la infancia. Madrid, Espanha: Akal, 2003.

Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Sobre as Autoras e Autores (de acordo com a sequência dos Capítulos)

Rita Coelho Socióloga pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui ampla experiência, na formulação, implementação e regulamentação de políticas de Educação Infantil. Uma das articuladoras da criação do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), do qual é membro. Foi presidente da União Nacional de Conselhos Municipais de Educação e Coordenadora Geral da Educação Infantil do Ministério da Educação/MEC. Atuou em vários projetos de pesquisa e possui publicações e artigos na área. Atualmente é coordenadora da equipe de avaliação da Educação Infantil no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Catarina Moro Professora Associada junto ao Setor de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Fez pós-doutorado na Università degli Studi di Pavia (Itália). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil - NEPIE. Coordenadora da ReVirEI – Revista Virtual de Educação Infantil. Daniele Marques Vieira Doutora em Educação, Mestre em História e Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil NEPIE. Atua na Educação há 28 anos e, atualmente, é assessora Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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pedagógica e consultora em Educação Infantil, em programas de formação continuada em instituições públicas e privadas. É ativista do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil - MIEIB. Adrianne Ogêda Guedes Professora Adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Coordenadora do Grupo de Pesquisa FRESTAS, do Núcleo Infância, Natureza e Arte (NINA) e do Curso de Extensão Infâncias Cariocas. Lívia Larissa de Lima Lage Professora da Técnica de Alexander, graduada em dança contemporânea na Faculdade Angel Vianna, Especialista em Educação Infantil e Mestre em Educação (PUC-Rio). Pesquisadora do Grupo FRESTAS. Michelle Dantas Ferreira Professora da Rede Pública do Rio de Janeiro (SME-RJ), ocupando atualmente a função de Diretora Adjunta de um CIEP. Pesquisadora do Grupo FRESTAS vinculado ao NINA, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)nessa mesma instituição é mestranda em Educação. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Márcia Buss-Simão Professora na Universidade Federal de Santa Catarina no Departamento de Estudos Especializados em Educação UFSC/EED. Doutora em Educação pelo Programa de PósGraduação em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina na linha de pesquisa Ensino e Formação de Educadores. Atua como editora da Revista Zero-a-Seis e Vice-líder do Núcleo Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância (NUPEIN/UFSC) e integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Infância e Gênero (GEDIG) do PPGE/UNISUL. Mônica Correia Baptista Professora Associada do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Educação pela Universidade Autônoma de Barcelona. Coordenadora da linha de Pesquisa Educação Infantil, do Mestrado Profissional da FaE/UFMG e do Grupo de Pesquisa em Leitura e Escrita na Primeira Infância – LEPI. Pesquisadora do Centro de Alfabetização Leitura e Escrita - CEALE e do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Infância e Educação Infantil - NEPEI da FaE/UFMG. Desenvolve pesquisas nas áreas de leitura e escrita junto a crianças de zero a seis anos, com ênfase nas questões relacionadas a literatura infantil. Camila Petrovitch Estudante do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG. Bolsista do programa de extensão “Bebeteca”. Pesquisadora do grupo Leitura e Escrita na Primeira Infância (LEPI). Atuou como bolsista do Pacto Nacional pela Educação na Idade Certa Pré escola (PNAIC/Pré escola) e no Pibid - Anos Iniciais. Realiza investigação monográfica sobre temas relacionados à censura nos livros infantis, no Brasil. Mariana Parreira Lara do Amaral Psicóloga e Pedagoga. Professora na rede particular de Educação Infantil de Belo Horizonte. Integrante do grupo de pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância (LEPI/UFMG) e estudante do Promestre – Programa de Mestrado Profissional da UFMG. Suas pesquisas se concentram nas áreas da Educação Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Infantil, Literatura e Primeira Infância. Cybelle Andrade Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como Professora de Educação Infantil na rede pública municipal de Curitiba desde 2007. Etienne Baldez Professora adjunta da Faculdade de Educação, da Universidade de Brasília (UNB). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do Grupo de Pesquisa em História e Historiografia da Educação da Universidade de Brasília (GRUPHE-UnB) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (NEPIE-UFPR). Atualmente com pesquisa intitulada Jardins de Infância no Distrito Federal: uma história da sua institucionalização (1960-1980). Ana Julia Lucht Rodrigues Mestranda em Educação pelo PPGE/UFPR. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (NEPIE – UFPR). Graduada em Pedagogia pela UFPR com período de graduação-sanduíche na Universidade de Barcelona (UB Espanha). Atualmente atua como coordenadora pedagógica em instituição de Educação Infantil. Giselle Silva Machado de Vasconcelos Doutora em Educação Infantil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Núcleo de Pesquisas e Estudos da Educação da Pequena Infância (NEPEIN/UFSC). Coordenadora Pedagógica do Núcleo de Educação Infantil Municipal Vila Cachoeira - Rede Municipal de Florianópolis. Catarina Moro & Daniele Marques Vieira


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Cassiana Magalhães Pós Doutora em Educação pela Universidade de Évora Portugal. Doutora em Educação pela UNESP – campus de Marília. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), atualmente é professora Adjunto D do Departamento de Educação desta Universidade. Coordenadora do Feipar/Pé Vermelho e do Blog BaguncEI. Líder do Grupo de Pesquisa Travessias Luso-Brasileiro na Educação da Infância Silvia Pandini Mestre em Educação e Pedagoga pela Universidade Federal do Paraná. Tem experiência com formação de professores, já atuou como coordenadora pedagógica, assessora pedagógica e docente na Educação Infantil, Ensino Fundamental e no Ensino Superior. Trabalha como atelierista na Parlenda Berçário Escola desde 2018. Tem feito pesquisas e formação junto a instituições italianas sobre o papel do atelieirista na escola de Educação Infantil e acerca das linguagens infantis. Emerson Rolkouski Licenciado em Matemática pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Realizou estágio pósdoutoral no Institute of Education da University College London. Foi professor da Educação Básica durante vários anos e coordenou a escrita do material de formação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa dos anos de 2014 e 2015. Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Paraná.

Leituras em Educação Infantil: contribuições para a formação docente


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Andréa Bertoletti Doutoranda em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Mestre em Artes Visuais pela Universidade de do Estado de Santa Catarina (UDESC). Especialista em Fundamentos Estéticos para Arte-Educação pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Fez o Curso Superior de Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e Artes Plásticas pela FAP. Atualmente é professora no curso de Licenciatura em Artes Visuais do Instituto Federal do Paraná, Campus Palmas.

Catarina Moro & Daniele Marques Vieira




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